A decisão do governo federal de reduzir as metas de superávit primário para 2024 e 2025 provocou bastante mal-estar entre economistas e analistas, gerando dúvidas sobre como isso pode prejudicar o afrouxamento monetário conduzido pelo Banco Central (BC) desde agosto.

Para Solange Srour, diretora de macroeconomia para o Brasil do UBS Global Wealth Management, porém, a decisão sobre se a taxa básica de juros (Selic) cairá para a tão esperada casa de um dígito não está 100% nas mãos do Comitê de Política Monetária (Copom).

Tudo depende agora de sua contraparte americana, o Comitê Federal de Mercado Aberto (Fomc), do Federal Reserve (Fed, o banco central americano).

“Se fosse apenas a questão fiscal, acho que o BC não teria mudado muito o discurso como mudou”, diz Srour, em entrevista ao NeoFeed. “Seria um ponto que o BC chamaria atenção, mas não o impediria de continuar reduzindo os juros no ritmo que estava.”

Apesar de ponderar que a situação externa é o fator determinante para o Copom reavaliar o ritmo de corte de juros, Srour destaca que a situação fiscal do País é delicada. Para ela, o plano do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de realizar o ajuste fiscal primordialmente via receita chegou ao limite, afirmando que é preciso começar a olhar o lado da despesa.

“Para 2025, vemos muita dificuldade da meta ser atingida, justamente porque será necessário uma arrecadação muito maior do esperado”, diz. “O grande problema no Brasil é que a despesa obrigatória está crescendo num ritmo muito acelerado.”

Srour diz ainda que a Reforma Tributária pode ser positiva para elevar o PIB potencial do País, mas que não dá para contar que resultará num aumento de arrecadação no curto e médio prazo.

“Ela é uma reforma que simplifica o sistema e pode vir aumentar o PIB potencial, mas é muito incerto esse impacto. Tudo vai depender desses detalhes da regulamentação”, afirma.

Acompanhe os principais trechos da entrevista:

Como você vê a Reforma Tributária, o formato que vem ganhando? A proposta dela é simplificar o sistema, mas críticos apontam para uma série de pontos e detalhes que podem manter o sistema tributário complexo.
O que podemos falar é da reforma que foi aprovada no Congresso, porque o que será regulamentado ainda está muito duvidoso, diante do ambiente político conturbado. Tem muita pauta acontecendo ao mesmo tempo, principalmente relacionada ao fiscal, como a desoneração da folha de pagamento, das prefeituras. Mas, hoje, eu acho que a Reforma é algo muito positivo para o Brasil, porque simplifica o sistema. Não quer dizer que vai deixar de ser completamente caótico – a transição é lenta, tem regimes diferenciados. Mas acho que é o possível a ser feito. Agora, eu não tenho a visão super otimista de que, com a Reforma, o Brasil vai aumentar o produto potencial e que isso vai ajudar o fiscal.

Por quê?
Ela é uma reforma que simplifica o sistema e pode vir a aumentar o PIB potencial, mas é muito incerto esse impacto. Tudo vai depender desses detalhes da regulamentação. Quanto mais o Congresso modificar ou colocar detalhes de setores específicos, mais complexo o sistema vai ser. E ainda tem toda discussão sobre os fundos criados com a Reforma [fundos de compensação de perdas estaduais], que ao serem regulamentados podem trazer um pouco de confusão. Precisamos ver como ficam esses fundos, porque tenho uma preocupação com o impacto fiscal por serem bancados pelo governo federal.

Economistas apontam que as reformas feitas nos últimos anos acabaram elevando o PIB potencial. A Reforma Tributária não terá efeito, como as outras reformas?
Eu acho que a Reforma Tributária aumenta o produto potencial sim. Mas eu não acho que pode ser vista como a reforma que vai ajudar no ajuste fiscal, aumentando o PIB potencial, trazendo mais arrecadação. Isso é uma coisa que vamos ver daqui a décadas, porque a transição é longa e não dá para se medir agora qual o efeito sobre o PIB potencial. O que dá para dizer é que é uma reforma boa, que pode aumentar o PIB potencial no futuro, mas para o ajuste fiscal que precisa ser feito no curto e médio prazo, não acho que vá ajudar muito.

Sobre o ajuste fiscal, o governo acabou abandonando a meta de zerar o déficit em 2024, postergando para 2025. Para você, essa mudança denota os limites do plano de ajuste do ministro Haddad, de buscar o equilíbrio via aumento de arrecadação?
Infelizmente, hoje temos um ajuste totalmente calcado na arrecadação. E não estou vendo medidas de ajuste pelo lado das despesas, nem por parte do governo nem pelo Congresso. Para 2025, vemos muita dificuldade dessa meta ser atingida, justamente porque será necessário uma arrecadação muito maior do esperado. O próprio governo anunciou que vai mandar outro pacote na parte de arrecadação para conseguir cumprir a meta. Mas o grande problema no Brasil é que a despesa obrigatória está crescendo num ritmo muito acelerado.

"Não estou vendo medidas de ajuste pelo lado das despesas, nem por parte do governo nem pelo Congresso. Para 2025, vemos muita dificuldade dessa meta ser atingida"

O ajuste fiscal pelo lado da receita chegou ao limite?
A arrecadação não pode ser aumentada ano após ano. Acho pouco provável que neste ano o governo consiga aumentar impostos, porque já fizemos um aumento significativo da carga tributária no ano passado e porque estamos em ano de eleições municipais. Vai ser complicado juntar uma base e aprovar aumento de imposto, por mais que sejam medidas como taxação de lucros e dividendos. Isso é muito difícil num Congresso esvaziado.

Então, o ajuste terá de vir pelo lado da despesa…
Um ajuste sustentável precisa vir pelo lado da despesa. O ajuste pelo lado da arrecadação é só um tapa buraco. O governo foi bem-sucedido, mas é difícil achar que a meta vai ser cumprida esse ano. Ajuste sustentável só com a despesa crescendo menos do que está crescendo hoje, precisa ter uma revisão dos gastos.

O arcabouço fiscal não consegue ajudar nessa frente?
O problema é que tem muito gasto obrigatório, que cresce acima da arrecadação. O gasto com salário mínimo vai crescer acima da arrecadação, o gasto com saúde e educação também, o gasto com o Fundeb e as emendas. Mesmo que a regra proponha um ajuste mais gradual que o Teto de Gastos, o próprio ajuste se torna não factível pelas regras que voltaram a vigorar no Brasil, como a regra do salário mínimo. O arcabouço terá que ser revisto, porque as despesas obrigatórias não estão compatíveis com o arcabouço.

Olhando para política monetária, como esse cenário fiscal prejudica a trajetória de queda da Selic?
Se fosse apenas a questão fiscal, acho que o BC não teria mudado muito o discurso como mudou. Apesar de eu achar que o problema fiscal é grave no País, se o cenário externo fosse mais benigno, esse problema até preocuparia o mercado, mas não estaria expressa em expectativa de inflação mais alta, num câmbio mais depreciado. Seria um ponto que o BC chamaria atenção, mas não o impediria de continuar reduzindo os juros no ritmo que estava e eventualmente chegar em uma Selic terminal de 9%, como o mercado estava trabalhando.

Os Estados Unidos e o Fed têm pesado mais do que o lado fiscal?
A piora do cenário externo e o adiamento do corte de juros nos Estados Unidos aumenta o risco de termos um diferencial de juros muito pequeno. Com isso, mais a situação fiscal, a probabilidade é de que as expectativas de inflação continuem subindo e que tenhamos um câmbio mais depreciado. O problema fiscal do Brasil não mudou tanto, na minha opinião, com o anúncio da revisão da meta. Se o cenário externo não tivesse mudado, acho que o mercado não estaria tão preocupado com o fiscal quanto está hoje.

Como fica o BC nesta situação? Ele consegue cortar os juros como imaginava?
Eu acho que o BC tem feito uma comunicação bastante eficaz, porque disse que o cenário mudou. Temos agora vários cenários sobre o que pode acontecer com a Selic. Se a incerteza continuar elevada, o BC sinalizou que pode avaliar uma mudança de ritmo de corte, de 0,50 ponto percentual para 0,25 ponto percentual. Se a incerteza diminuir, poderiam manter o mesmo ritmo. Hoje, há uma dúvida enorme se o BC nesta reunião vai mudar o ritmo para 0,25 ponto percentual e se a decisão vai ser unânime, o que faz bastante diferença, porque existe ainda a incerteza sobre o próximo BC. Se começar a ter divergências no BC neste momento, o mercado pode colocar em questão o comportamento do próximo BC, afetando as expectativas futuras.