Poucos atores do cenário nacional, com atuação econômica e também política relevantes, se destacaram e colecionaram desafetos nos últimos 60 anos como Antonio Delfim Netto, cuja morte foi anunciada nesta segunda-feira, 12 de agosto, pela família. Delfim tinha 96 anos e estava internado havia uma semana no Hospital Albert Einstein, em São Paulo.

Com uma carreira acadêmica irretocável - era catedrático da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da Universidade São Paulo desde 1963 –, Delfim participou e influenciou diretamente vários ciclos econômicos do País. Foi ministro da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento, embaixador na França, deputado federal por São Paulo e consultor de vários presidentes da República desde a redemocratização.

A partir de depoimentos de economistas de diferentes tendências ouvidos pelo NeoFeed é possível entender alguns aspectos do legado deixado por Delfim Netto, um dos grandes articulistas na condução da política econômica do governo em dois momentos antagônicos da história do País: como ministro da Fazenda durante a ditadura militar e nos dois primeiros mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando atuou como consultor.

Outro eixo foi a política, atuando como deputado federal por 20 anos. Ele participou da elaboração da Constituição de 1988 e desde então foi uma voz influente, graças à sua desenvoltura em transitar entre os meios políticos e empresariais.

Para muitos, Delfim era um intelectual refinado, que influenciou boa parte de toda uma geração de economistas paulistas. De acordo com um perfil feito pela USP, defendia ideias da teoria neoclássica e era "keynesianista" no plano macroeconômico, mas sempre se mostrou aberto ao debate.

“Delfim Netto foi um economista pragmático, que navegava entre as diferentes escolas de pensamento” diz Cristiano Oliveira, economista-chefe do Banco Pine. “E tinha o respeito de todas essas escolas justamente por fazer pontes intelectuais entre elas.”

Nelson Marconi, coordenador do Fórum de Economia da Fundação Getúlio Vargas da São Paulo e professor visitante da Universidade Harvard, define Delfim Netto como um “desenvolvimentista conservador” e um dos grandes incentivadores das exportações de manufaturados como eixo de política econômica.

“Ele sempre pensava numa estratégia de desenvolvimento para o País, sua morte representa uma grande perda para o debate econômico”, diz Marconi.

Outros dois economistas destacam por que Delfim Netto foi uma figura central no debate econômico brasileiro. “Para a minha geração, ele foi exemplo de atualização contínua e de formação de quadros e de equipes – muitos economistas começaram com ele”, diz Roberto Padovani, economista-chefe do Banco BV.

Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos, afirma que Delfim Netto publicou estudos sobre o problema do café e da taxa de câmbio de modo pioneiro, era um leitor voraz e tinha uma sede permanente de contribuir para o seu País. “Seu legado poderia ser sintetizado na importância do estudo na transformação social.”

Delfim Netto teve uma trajetória complexa. Entre 1967 a 1974, por exemplo, como ministro da Fazenda dos governos dos generais Costa e Silva e Emílio Garrastazu Médici, foi o principal articulador do “milagre econômico” brasileiro, período no qual a economia avançou 14% - um crescimento recorde – e o PIB praticamente dobrou.

Sua estratégia foi estimular empréstimos para a classe média que impulsionaram o consumo, especialmente de eletrodomésticos e automóveis, num período de crescimento da indústria nacional de bens duráveis. Além disso, marcou sua gestão pela forte atração de capital externo e de exportações de manufaturados.

Tese do bolo

Delfim  ficou famoso no período pela tese de que era necessário “fazer crescer o bolo antes de dividi-lo” – frase que ele assegurava nunca ter dito -, referindo-se ao crescimento da economia sem a distribuição de benefícios para a parte pobre da população. Por essa razão, seus críticos apontam esse período pelo aumento da concentração de renda no Brasil.

O fato é que a ação centralizadora de Delfim na condução da política econômica do regime foi facilitada por um dos episódios mais graves da história recente do País – a decretação do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), de dezembro de 1968, que endureceu o regime militar e permitiu a perseguição a rivais políticos do governo.

Sem precisar dar muitas satisfações, conteve gastos públicos e concentrou impostos na União, levando Estados e municípios a perderem participação na divisão dos impostos de renda e produção industrial. De quebra, foi acusado de manipular os dados de inflação a partir de 1973, quando a crise mundial do petróleo implodiu o crescimento e deu início a um longo processo de endividamento dos países do Terceiro Mundo.

Delfim não só foi um dos signatários do AI-5 como elogiou a medida na época, tentando usar o espaço no poder para cavar uma candidatura (indireta) ao governo de São Paulo. Não conseguiu convencer parte do núcleo do regime e foi enviado como embaixador na França, entre 1974 e 1978.

Nesse período, Delfim se viu às voltas com um escândalo, o suposto “Relatório Saraiva” – de autoria do adido militar em Paris, coronel Raimundo Saraiva – que conteria denúncias de corrupção envolvendo o embaixador, como a cobrança de comissão sobre empréstimos de bancos franceses.

O relatório nunca veio a público e Delfim sempre assegurou que o documento era uma armação da ala linha-dura dos militares que queriam queimá-lo. Tanto que sua segunda passagem pelos governos militares, entre 1979 e 1985, foi marcada pela atuação de bombeiro.

Como ministro do Planejamento e, depois da Agricultura, Delfim teve de administrar os efeitos do segundo choque de preços do petróleo, marcado pelos aumentos dos juros internacionais, com impacto no pagamento da dívida externa.

A paralisação dos empréstimos ao País abriu caminho para uma longa crise cambial em 1982, quando o Brasil chegou a ficar sem reservas. Delfim passou boa parte dessa passagem negociando empréstimos com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Quando deixou o governo, em 1985, a inflação já batia em 200% ao ano.

Fora do poder, já como deputado federal, continuou influente no debate econômico nacional. Elogiou o Plano Real, de 1994, em especial a “engenhosidade” do plano de estabilização, com a criação da Unidade Real de Valor (URV) como transição para a nova moeda. Mas advertiu para dois aspectos: o câmbio valorizado e a falta de esforço fiscal nos primeiros quatro anos do real como moeda.

Aproximação ao PT

Sua surpreendente aproximação ao então governo Lula ocorreu em 2005, quando atuou como consultor pessoal do presidente na formulação de política econômica - em especial, a proposta do déficit nominal zero, que teria como objetivo equilibrar, até 2010, o resultado das contas públicas incluindo os gastos com juros.

Delfim manteve-se próximo do governo petista nos anos seguintes. Participou da banca de doutorado do atual presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, e, em 2011, apoiou a guinada na política monetária promovida pelo presidente do BC, Alexandre Tombini, com sucessivos cortes da taxa Selic.

Em 2018, Delfim acabou sendo envolvido em outra denúncia de corrupção, pela Operação Lava-Jato. A suspeita é que ele teria ajudado o governo federal a formar o consórcio Norte Energia, que venceu o leilão para construir a hidrelétrica de Belo Monte.

A acusação diz que Delfim teria recebido parte da propina destinada a PT e MDB. Até o fim da vida, Delfim assegurou que os valores recebidos foram por consultoria prestada.

Em nota, o presidente Lula lamentou a morte de Delfim, de quem disse ter passado 30 anos criticando-o, no período que o ex-ministro atuou nos governos militares. "Na minha campanha em 2006, pedi desculpas publicamente porque ele foi um dos maiores defensores do que fizemos em políticas de desenvolvimento e inclusão social que implementei nos meus dois primeiros mandatos", afirmou o presidente.