As palavras “pobreza” e “corrupção”, figurinhas fáceis nos debates eleitorais, frequentes na discussão sobre gestão pública, fazem parte do arsenal de políticos populistas e, também, da lista de desafios impostos aos economistas.

O tratamento pragmático e original que a franco-americana Esther Duflo dá a essas questões torna oportuno, neste ano de acalorada disputa política no Brasil, o relançamento, pela Zahar, com apoio da Embaixada da França, de seu livro “A Luta Contra a Pobreza”, em que trata esses dilemas com os engenhosos métodos de análise que lhe garantiram, em 2019, o prêmio Nobel de Economia.

Como outro notável economista com quem às vezes é comparada, o francês Thomas Pickety, Duflo dribla as abstrações dos modelos econométricos e parte a campo para testar, no mundo real, o desempenho de algumas certezas acalentadas pela teoria. Diferentemente de Picketty, porém, ela não se debruça sobre a desigualdade, mas sobre a pobreza, pura e simples.

Sua lente não é a da militância política, mas a de uma pesquisadora interessada em realizar as promessas do capitalismo, de geração de riqueza e bem-estar. Ao tratar das maneiras como a promoção do desenvolvimento pode combater a pobreza, ela inverte a ordem dos termos, e conclui que o combate à pobreza é fundamental para promover o desenvolvimento.

A economista chama atenção para a importância econômica da educação e da saúde, a partir dos conceitos de Theodore Schultz, introdutor da ideia de “capital humano”; de Gary Becker, divulgador dessa noção; e Robert Lucas, para quem o capital humano é a resposta às aspirações de crescimento sustentável.

Na atual encruzilhada em que se vê o Brasil, ameaçado pelo fantasma mundial de estagflação e por limitações no orçamento público, vale a pena conhecer as reflexões da economista, úteis para avaliar as propostas para o governo do país.

Duflo questiona avaliações sobre programas sociais baseadas em indicadores excessivamente genéricos, ou decisões calcadas principalmente no custo desses programas. E sugere saídas para conferir, na prática, a eficácia desse tipo de programas em relação aos custos gerados por eles, optando pelos que oferecerem melhor custo-benefício – algo aparentemente óbvio, que costuma receber, porém, pouca atenção de governos e especialistas.

A economista franco-americana Esther Duflo

Ela busca exemplos concretos em nações com grande quantidade de pobres, como a Índia, Indonésia, África do Sul, Quênia, México e até o Brasil, e mostra em detalhes como é preciso ir além da constatação de sucesso ou fracasso, e avaliar motivações e comportamento das populações envolvidas.

Duflo também revela os limites e alcance da ação estatal e da fiscalização da sociedade para o sucesso dessas iniciativas. O método é comparável ao da testagem clínica de vacinas e medicamentos, aplicando soluções em comunidades comparadas a outras semelhantes, como grupos de controle, para medir resultados de determinados remédios para problemas crônicos de múltiplas causas.

“As grandes reformas sistêmicas (envolver mais os pais, privatizar a escola etc.) têm efeitos bem menos claros do que seus defensores querem admitir”, alerta Duflo ao analisar experiências em educação voltadas a aumentar os recursos e matrículas de alunos que não chegam a entrar a fundo em questões como a qualidade do serviço pedagógico prestado e sua capacidade de motivar pais, alunos e professores.

“As grandes reformas sistêmicas (envolver mais os pais, privatizar a escola etc.) têm efeitos bem menos claros do que seus defensores querem admitir”

Ela faz o mesmo trabalho com programas de saúde, analisando de perto as interações entre as comunidades e os governos e as razões de seu bom ou mau desempenho, nem sempre replicáveis.

O Brasil é citado apenas na segunda parte do livro, que trata de corrupção. E com um bom exemplo, dos sorteios periódicos de fiscalização em municípios pela Corregedoria Geral da República.

A ênfase em casos da Ásia e África traz lições nem sempre úteis à conjuntura brasileira; mas as soluções encontradas para medir resultados das iniciativas voltadas às comunidades pobres ajudam a trazer luz sobre experiências brasileiras bem-intencionadas e pouco eficientes.

São instrutivos, por exemplo, os exemplos sobre frustrações na execução de orçamentos participativos; razões e métodos de controle para o absenteísmo de alunos ou de funcionários públicos como professores e enfermeiras; mecanismos para desestimular o voto guiado por razões emocionais em políticos desonestos.

A segunda parte do livro traz também experiências com lições relevantes para o público brasileiro, com uma avaliação dos programas de microcrédito e uma análise sobre a corrupção que afeta diretamente os mais pobres em seu cotidiano e torna ineficientes certas ações do governo.

A corrupção de que trata o livro não é a dos bilhões desviados dos cofres públicos por ilustres picaretas de gravata e capital, mas a pequena corrupção, da propina para o guarda, ou do funcionário público que recebe uma “ajuda” para dar benesses a quem não tem o direito a elas por lei.

A corrupção de que trata o livro não é a dos bilhões desviados dos cofres públicos, mas a pequena corrupção, da propina para o guarda, ou do funcionário público que recebe uma “ajuda” para dar benesses

“A corrupção que prejudica diretamente os mais pobres é um fenômeno mais difundido e amplo que os desvios espetaculares cometidos por autoridades”, justifica a autora, que critica também as distorções de percepção provocadas por análises sobre corrupção baseadas em questionários respondidos por grandes empresas.

Os relatos do livro reforçam a necessidade de criar mecanismos de controle e punição transparentes e impessoais, a serem exigidos pela sociedade; e mostram as razões para o insucesso de alguns desses mecanismos.

Como define a economista, num raciocínio instigante, a corrupção surge muitas vezes para introduzir mecanismos de mercado no provimento de benefícios prestados pelo Estado a públicos específicos, definidos por critérios de interesse público (entre esses mecanismos, por exemplo, está o pagamento de certo “preço” para acessar ou ter prioridade indevida em um serviço público).

É o “paradoxo da democracia”, aponta Duflo: uma melhor representação dos segmentos mais pobres na gestão pública pode ajudar a alcançar os objetivos de maior justiça e equidade, mas, ao violar a lógica de mercado, abre caminho também para os atalhos da corrupção.

No caso do microcrédito, Duflo menciona os equívocos de certas expectativas desse tipo de programa, como a ideia de que por trás de todo pobre existe um empreendedor (ainda que estatísticas mostrem países onde, de fato, é alta a percentagem de pessoas de baixa renda com negócios próprios, indispensáveis para complementar os ganhos).

Duflo menciona os equívocos por trás de certas expectativas em programas de microcrédito, como a ideia de que por trás de todo pobre existe um empreendedor

A análise detalhada das agruras dos programas de microcrédito ganha enorme espaço, no livro, a elementos muito particulares do caso indiano, mas também traz interessantes descobertas, aplicáveis até pela iniciativa privada interessada em explorar esse mercado gigantesco e desafiador.

“Compreendemos mal os fatores que determinam a demanda de crédito, pois nossos modelos tradicionais comportam apenas o prazo para a quitação e as taxas de juros”, ensina Duflo, para quem os analistas de crédito nesse segmento de clientes potenciais deixam de fora “parâmetros que, no entanto, revelam-se decisivos”.

Não faltam nem exemplos curiosos, como a descoberta que, na África do Sul, a inclusão da foto de uma jovem na propaganda de oferta de crédito provocou um aumento equivalente ao dobro do que foi gerado com a redução de um ponto percentual na taxa de juros.

Duflo ressalta que, ainda que o microcrédito seja uma alavanca eficiente para impulsionar iniciativas de cidadãos vocacionados ao empreendedorismo, é falso ver esse mecanismo como uma saída mágica para lidar com a pobreza – que, reafirma ela, exige ações básicas em matéria de saúde e educação, entre outras, capazes de gerar um ambiente de prosperidade para os negócios.

“É ilusão achar que dessas microempresas poderá nascer a Microsoft de amanhã”, diz ela. “O acesso dos mais pobres aos serviços financeiros não pode substituir uma política de desenvolvimento que permita o surgimento de empresas com mais alcance”.

“É ilusão achar que dessas microempresas poderá nascer a Microsoft de amanhã”

A edição do livro mereceria mais cuidado, com notas, por exemplo, para atualizar algumas estatísticas, superadas desde a primeira edição da obra, de 2010. Um trecho do texto traz uma inadmissível confusão entre percentuais e números absolutos, a ponto de falar em redução de 144% (!) em um índice de mortalidade infantil. Raros, embora graves, esses erros não comprometem o entendimento, porém.

Dos casos examinados no livro, Duflo extrai uma conclusão prática: não há resposta única nem à prova de falhas; a melhor solução para eliminar o ônus econômico representado pelo déficit de capital humano é a experimentação contínua, com criatividade e mecanismos inovadores de avaliação de resultados, alguns deles descritos no livro.

É um conselho que nos põe em alerta contra respostas fáceis a problemas complexos, e, quem sabe, ajude a avaliar a qualidade de candidatos a importantes postos públicos, neste ano de eleições.

SERVIÇO:
Lutar contra a pobreza, Esther Duflo
Tradução: Jorge Bastos
Número de páginas: 232
Preço: R$ 74,90 / e-book: 39,90