Foi-se o tempo em que o rótulo "made in China" era sinônimo de produtos baratos e de qualidade duvidosa, jocosamente chamados de "xing ling".

A nova geração de marcas chinesas chega ao Brasil investindo pesado em design, inteligência artificial e marketing. Vem para disputar um espaço antes reservado aos europeus, americanos e japoneses: o mercado de luxo. São artigos sofisticados cujos preços rivalizam com seus equivalentes ocidentais — por vezes, são até mais altos.

A mudança de status dos produtos chineses é resultado de um longo processo. Desde o final dos anos 1970, quando o país começou a deixar para trás seu passado agrário e abraçou a industrialização sob o comando de Deng Xiaoping, a China adotou um planejamento estatal de longo prazo que lhe garantiu mais de 40 anos de crescimento quase ininterrupto.

Em 2015, o governo lançou o programa Made in China 2025, com a meta de transformar o país em potência tecnológica global em setores estratégicos como robótica, biotecnologia, inteligência artificial, energia renovável e trens de alta velocidade.

Para tanto, estabeleceu parcerias entre universidades, startups e grandes empresas. Além disso, o governo chegou a destinar mais de US$ 200 bilhões anuais para linhas de crédito, subsídios e fundos de inovação.

Como explica ao NeoFeed Leandro Consentino, cientista político e professor do Insper, a China vem se posicionando como um player tecnológico importante desde o início do século 21, mas o movimento se tornou "mais escancarado" depois da crise sanitária imposta pela Covid-19.

“O ponto alto veio no pós-pandemia, quando os fluxos comerciais se aceleraram ao mesmo tempo em que Estados Unidos e Europa enfrentavam problemas internos”, diz ele. “A China soube aproveitar esse momento.”

No setor automotivo, modelos elétricos e híbridos chineses surgem com tecnologia de ponta e valores que reposicionam a percepção de marca: o BYD Seal parte de R$ 249,9 mil; o GWM Haval H6 PHEV varia entre R$ 245 mil e R$ 325 mil; e o GWM Ora 03 custa de R$ 169 mil a R$ 199 mil, preços que encostam em sedãs alemães consagrados, enquanto oferecem autonomia, conectividade e sistemas de assistência de última geração.

Alexandre Baldy, vice-presidente sênior da BYD Brasil, ainda destaca ao NeoFeed outros dois modelos elétricos na categoria premium de grande porte: o sedã Han e o SUV de sete lugares Tan, que custam entre R$ 420 mil e R$ 550 mil.

Em outubro, a BYD pretende lançar no Brasil a Denza, sua marca de luxo, com a presença do fundador e CEO global da companhia, Wang Chuanfu, anunciando a entrada definitiva da empresa no país e a chegada de novas tecnologias exclusivas.

A marca Denza foi fundada em 2010, em uma parceria com a Mercedes-Benz, mas hoje é 100% da BYD. De acordo com Baldy, a chegada da Denza no Brasil reforça o quanto a companhia está focada no potencial do mercado premium brasileiro.

A construção do desejo

No segmento de informática e mobilidade, as marcas chinesas também buscam posicionar seus produtos no topo do segmento premium. A Lenovo oferece o Yoga Book 9i, com tela dupla, por cerca de R$ 19,7 mil, além das linhas Yoga e Legion, que variam entre R$ 12 mil e R$ 18 mil.

A Huawei, por sua vez, investe em dobráveis e wearables sofisticados: o smartphone Mate XT Ultimate é vendido a R$ 33 mil, o Mate X6 a R$ 23 mil, e o notebook dobrável MateBook Fold tem preço estimado em R$ 18,7 mil.

Entre os relógios, o grande destaque é o Huawei Watch Ultimate, pensado para golfistas e praticantes de atividades ao ar livre. Com caixa em metal líquido à base de zircônio, acabamentos em titânio e cerâmica nanotec e tela de cristal de safira, o modelo oferece modo Campo de Golfe com mapas de mais de 15 mil campos no mundo, visualização 3D de fairways, greens e bunkers.

O modelo conta ainda com medições precisas de distância e função plays-like, que ajusta a metragem conforme a inclinação do terreno. Resistente à água em até 100 metros de profundidade, é comercializado no Brasil a partir de R$ 4.499.

Em meados de setembro, a Huawei promoveu em Paris um evento global que reforçou sua estratégia de unir tecnologia de ponta e moda. A empresa apresentou a série GT 6, prevista para chegar aqui em outubro, com bateria de até 21 dias, mais de 100 modos de treino e, para ciclistas, um medidor de potência que calcula a força máxima da pedalada.

Também lançou o Watch Ultimate 2, que tem resistência para mergulhos de até 150 metros, comunicação sonar entre relógios e botão SOS subaquático.

Outros destaques foram o Watch D2, que acrescenta monitoramento aprimorado de pressão arterial, e a nova Série 14, com câmera de 50 MP e recursos de inteligência artificial para retratos.

Entre os relógios, o grande destaque é o Huawei Watch Ultimate, pensado para golfistas e praticantes de atividades ao ar livre (Foto: Divulgação)

Com três telas, o smartphone Mate XT Ultimate, da Huawei, é vendido a R$ 33 mil (Foto: Divulgação)

O BYD Seal, um dos mais luxuosos da marca, parte de R$ 249,9 mil (Foto: Divulgação)

O recém-lançado notebook dobrável MateBook Fold tem preço estimado em R$ 18,7 mil (Foto: Divulgação)

“Os chineses entenderam que precisam construir desejo. Branding é peça-chave no processo de força de marca. Eles já provaram que sabem produzir em escala e agora querem ocupar o imaginário aspiracional”, diz o professor Marcos Hiller, fundador da The Hiller and Branding e doutor em consumo pela ESPM.

Hiller destaca que a China combina design sofisticado, tecnologia e um projeto de país de longo prazo: “Eles dominam todas as camadas da cadeia de produção, da matéria-prima ao design, do know-how tecnológico à logística. Para construir uma imagem aspiracional, só precisam continuar mostrando que sabem fazer o que há de melhor.”

A estratégia chinesa não é replicar o luxo clássico europeu e, sim, criar uma nova categoria, consolidando-se no segmento de tecnologia de alto padrão, explica Roberto Kanter, professor de MBAs da FGV. “O movimento chinês é calculado: eles querem ocupar o imaginário de quem busca diferenciação por meio de tecnologia e design”, diz: “Não é mais apenas sobre custo-benefício; é sobre status tecnológico.”

Uma das características mais essenciais do luxo é a confiança de que o produto vai resistir ao tempo, além, claro, de acabamento impecável e materiais nobres. E esse é o grande desafio para os chineses, lembra Galileu Nogueira, especialista de marca e fundador da consultoria Galileu Branding. “A tecnologia nunca foi um problema”, completa.

E reputação se constrói na prática: “Nos próximos anos, será essencial que carros e eletrônicos chineses demonstrem performance consistente, revenda sólida e ausência de defeitos recorrentes. Só assim o brasileiro vai associar o ‘made in China’ a algo duradouro e de alto padrão, e não apenas a um design moderno.”

Para Nogueira, a trajetória da DJI, gigante chinesa de drones e estabilizadores de imagem, é um exemplo do caminho a ser seguido. A companhia chegou a um patamar de reconhecimento global comparável ao da Apple no seu segmento.

É a prova de que dá para uma marca chinesa conquistar status de referência mundial em qualidade e inovação — exatamente o que outras empresas do país buscam alcançar agora em áreas como carros e eletrônicos.

A chegada desses produtos de alto padrão deve provocar uma reconfiguração competitiva. Apple, Samsung e marcas de carros tradicionais precisam acelerar inovação para justificar seus preços, enquanto os chineses devem forçar um novo patamar de qualidade e desejo.

Ironicamente, quem pode frear essa ascensão é o próprio governo chinês. Na visão de Consentino, o modelo estatal, que traz vantagens para o planejamento, também cria limites por concentrar o poder, não abrir estruturas tecnológicas e evitar estruturas mais horizontais.

"A China pode ter dificuldades de adaptação, algo que a União Soviética viveu. Colapsou em si mesma porque não conseguiu se reinventar”, diz o professor do Insper. “Essa é a grande questão: se a China vai manter a capacidade de se renovar ou se esse modelo mais rígido vai impor um teto."