BIARRITIZ - A plateia predominantemente francesa não resiste e cai na risada quando o astro do documentário “Garrincha, Alegria do Povo” (1962) zomba de seus adversários em campo – os “Joões”, como ele mesmo os chamava. São imagens deliciosas do craque carioca driblando seus marcadores, para lá e para cá, sempre deixando-os para trás, atordoados, sem perder a bola.

Uma espécie de testemunho sobre o “grande ilusionista do futebol”, “Garrincha, Alegria do Povo” é uma das atrações desta 31ª edição do Festival Biarritz Amérique Latine, com encerramento neste domingo (dia 2). O Brasil é o país homenageado no evento, como parte das comemorações do seu bicentenário da Independência.

E este, que é ainda um ano de Copa do Mundo, marca não só o 60º aniversário de lançamento de “Garrincha, Alegria do Povo” como os 60 anos da conquista do bicampeonato para o Brasil na Copa do Mundo de 1962, no Chile. Para os brasileiros, o evento é mais conhecido como a “Copa de Garrincha’’, pelo “Anjo das Pernas Tortas’’ ter sido eleito o melhor jogador do torneio.

“Esse filme de futebol não é sobre Garrincha um jogador, mas Garrincha o artista”, diz o cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, escolhido como o curador da seção brasileira de filmes. Ele ganhou a “carte blanche” de Biarritz para escolher 10 longas-metragens (além de curtas), onde buscou traçar “um panorama humano e social diverso, confuso e assimétrico do Brasil”.

“Garrincha é um personagem de enorme importância na cultura brasileira. Sua estatura é comparada à de Pelé, mas eles seguiram caminhos diferentes. Pelé virou uma marca internacional, enquanto Garrincha é um fenômeno mais brasileiro. Talvez por isso, mais emotivo, para nós”, conta Mendonça Filho, no cinema Le Royal, no centro de Biarritz.

“E o diretor do documentário, Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), é um dos nossos grandes realizadores”, comenta o curador, ao justificar a escolha. Mendonça Filho também lembra que “Garrincha, Alegria do Povo”, registrado em preto e branco, foi restaurado pela Cinemateca Brasileira há cerca de 15 anos.

Disponível no Youtube, o documentário resgata quem foi Manoel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha (1933-1983), tanto dentro quanto fora de campo. E ainda dá uma ideia da paixão do brasileiro pelo futebol, explicando-a como uma válvula de escape, para afogar as frustrações do torcedor acumuladas na vida cotidiana durante a semana.

“O universo lúdico do estádio é um campo mais cômodo para o exercício das emoções humanas. O último apito do juiz (no domingo) devolve o torcedor à sua realidade”, diz aqui o narrador. Ainda que o documentário use narração, ela é bem econômica, assim como os depoimentos – inclusive os de Garrincha, que são escassos.

As fotografias e as cenas de arquivo acabam falando por si mesmas, se encarregando de conferir dramaticidade ao filme. O mais interessante é acompanhar as imagens com as reações do torcedor no estádio diante das jogadas de Garrincha, que atuava como ponta-direita. Seu drible matador desconcertava a marcação de qualquer time. Por mais que ele costumasse repetir as manobras, era muito difícil detê-lo em campo.

Era como se suas pernas tortas conseguissem confundir os adversários com algo relativamente simples. Ao fazer o marcador pensar que ele o cortaria por um lado, Garrincha o fazia pelo outro. Era uma marca pessoal, da qual o atleta não abria mão. E seus dribles eram quase tão festejados como um gol, por proporcionarem justamente o chamado futebol espetáculo, fazendo a multidão enlouquecer.

Num dado momento, o doutor Nova Monteiro, professor de traumatologia, afirma que a condição de Garrincha deveria incapacitá-lo para a prática do futebol. Mostrando radiografias do jogador, ele diz que se trata de um caso de “desvio bilateral de ambos os membros inferiores”.

A prova do que Garrincha podia fazer, mesmo que a ciência não estivesse a seu lado, foi registrada na Copa de 1962, com destaque para o jogo contra a Inglaterra, imagens que o documentário resgata. Na vitória do Brasil por 3 a 1, pelas quartas de final, no Chile, seus dribles permitiram que Garrincha entrasse pelo meio ou pelas pontas, desestruturando completamente o rival. Com o “Diabo no corpo”, como o narrador descreve, ele ainda marcou dois gols.

E nas partidas contra o Chile, pela semifinal, e na final, contra a Checoslováquia, Garrincha também foi peça decisiva para a consagração do Brasil, no Estádio Nacional de Santiago. Algo que o jornal chileno “El Mercurio” capturou muito bem com uma pergunta em sua manchete: “De que planeta veio Garrincha?”

Em Biarritz, os dribles de Garrincha dividem espaço com clássicos e produções mais contemporâneas do cinema brasileiro. Também integram a seleção assinada por Mendonça Filho as obras "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de 1964, de Glauber Rocha, "Pixote - A Lei do Mais Fraco", de 1981, de Héctor Babenco, "Cabra Marcado para Morrer", de 1984, de Eduardo Coutinho, e "A Hora da Estrela", de 1985, de Susana Amaral.

Entre os títulos mais recentes estão "Cinema, Aspirinas e Urubus", de 2005, de Marcelo Gomes, "Que Horas Ela Volta?", de 2015, de Anna Muylaert, "Arábia", de 2017, de Affonso Uchôa e João Dumans, "Azougue Nazaré", de 2018, de Tiago Melo, e "Mato Seco em Chamas", de 2022, de Adirley Queirós Andrade e Joana Pimenta.

"Espero que esses filmes transmitam uma lógica e um estado de espírito do Brasil, não importando a geografia, a temática, o orçamento da produção ou o ano de lançamento", afirma o curador.