Thiago de Aragão tem o perfil ideal para analisar a recente crise política-comercial entre Estados Unidos e Brasil, aberta em três frentes pelo presidente americano Donald Trump nos últimos sete dias.
CEO da Arko Internacional, empresa de consultoria financeira com sede em Washington (EUA), Aragão acumula a função de executivo do mercado financeiro com a de cientista político, atuando como associado sênior do Programa das Américas no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), um think-tank com sede na capital americana.
Apesar do furor causado pela ofensiva de Trump contra o País, Aragão analisa a crise com frieza de uma analista de risco político. “A questão econômica-tarifária é de fato séria, mas está conectada com o componente político”, afirma Aragão, nesta entrevista ao NeoFeed.
Segundo ele, das três demandas de Trump na carta enviada ao governo brasileiro em que impõe tarifa de 50% aos produtos brasileiros, em duas o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não tinha nada a fazer – o processo do STF contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e a disputa das Big Techs americanas com o Judiciário brasileiro.
“O objetivo de Trump era mais de colocar pressão no governo brasileiro e causar comoção do que esperar algo dali, por isso foi a melhor coisa que poderia ter acontecido ao presidente Lula”, afirma Aragão, lembrando que o presidente brasileiro rapidamente ligou Bolsonaro à manobra de Trump.
A investigação aberta na sequência pelo Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR, na sigla em inglês) sobre o que chamou de práticas comerciais "desleais" do Brasil, na visão do CEO da Arko Internacional, foi outro presente de Trump ao presidente brasileiro.
Inclui denúncias ligadas ao comércio digital e aos serviços de pagamento eletrônico – numa referência à preferência para o Pix entrar em operação no País antes do Whatsapp Pay –, à proteção à propriedade intelectual e a tarifas de etanol, entre outras questões.
Para Aragão, o comportamento errático de Trump ao impor tarifas é mais jogo de cena para obter alguma vantagem comercial. Apesar do risco do impacto à economia do País com as tarifas, o governo dispõe de um trunfo: a possibilidade de retaliar com quebra de patentes de propriedade intelectual de criações culturais (como músicas, filmes e livros) e industriais (como medicamentos, softwares e tecnologias).
“É a única resposta do Brasil que pode incomodar os EUA, pois criaria um precedente global muito ruim para os americanos”, diz ele.
Aragão acredita, porém, que o Brasil deve chegar antes a um acordo no qual certamente terá de fazer concessões. Mesmo assim, o presidente brasileiro deve sair beneficiado, mas com prazo de validade. “Até um mês de tarifas em vigor beneficia o Lula. Passando disso, ele passa a ser visto como mau negociador”, adverte.
Leia, a seguir, outros trechos da entrevista de Aragão concedida por telefone da Guiana, onde estava a trabalho:
Depois de impor tarifas de 50% ao Brasil, o presidente americano Donald Trump lançou uma ofensiva dupla, abrindo investigação comercial contra o País e pressionando os Brics. Qual o impacto para o País?
É bastante impactante para o nosso comércio, mas foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para o presidente Lula. Tem dois aspectos envolvidos, um político e outro tarifário. A questão econômica-tarifária é de fato séria, mas está conectada com o componente político. Quando Trump envia a carta, ele faz três demandas. Em conversas que tive com interlocutores da Casa Branca, eles reconheceram que em duas dessas demandas Lula não tinha o que fazer: a questão do Bolsonaro e das Big Techs. Ou seja, o objetivo era mais de colocar pressão no governo brasileiro e causar comoção do que esperar algo dali.
Isso beneficiou o presidente Lula?
Sim, ficou mais fácil para ele colocar como alvo o ex-presidente Jair Bolsonaro. Essa ameaça contra o pix, por exemplo, que o PT tende a usar, piora tudo para a direita brasileira. Dá a Lula o argumento de que Bolsonaro é contra o pix. Isso num contexto em que o presidente estava com dificuldade com o Congresso, na questão do IOF e agora tem até o presidente da Câmara e do Senado ao seu lado.
“A negociação com Trump é difícil porque ele não diz claramente o que quer”
Como o governo deve conduzir essa negociação?
A negociação com Trump é difícil porque ele não diz claramente o que quer. É um processo de negociação vago, basicamente ele impõe condições e exige em troca algo bom para os EUA. Neste sentido, o Brasil está melhor posicionado hoje em retaliar os EUA do que em apresentar uma solução. Porque a retaliação que o Brasil ensaia fazer é inovadora no mundo - a quebra de patentes na área de propriedade intelectual. É a única resposta do Brasil que pode incomodar os EUA. Criaria um precedente global muito ruim para os americanos. É um contra-ataque que chamaria a atenção do mundo. Poderia levar amanhã países como Moldávia, Filipinas, Tailândia, Tanzânia a fazerem o mesmo.
Essa crise do Brasil com Trump pode chegar a esse ponto?
Se chegar a essa situação é porque a negociação degringolou. Acredito que o Brasil vai ter de fazer concessões em algumas áreas, o que é péssimo – o governo está pressionado do ponto de vista fiscal, significa perder receita. Mas, politicamente, o Lula está numa posição muito boa: o problema o beneficia e uma solução também o beneficia. Se ele chegar a um acordo de solução tarifária, ele pode argumentar que protegeu a soberania nacional contra os ataques do ex-presidente Bolsonaro – não precisa nem citar o Trump.
Como Bolsonaro precisaria agir?
Nem o ex-presidente nem Eduardo Bolsonaro têm controle tático do que o Trump vai fazer. O governo percebeu isso e já está falando da “tarifa do Bolsonaro”, não da tarifa do Trump. O fato é que Lula ganhou um presentão de Trump. Mas esse presente tem prazo de validade.
“As reações foram exageradas, essa tarifas prejudicam empresas americanas, que vão pressionar a Casa Branca”
Quando vence esse prazo de validade?
Até um mês com tarifas em vigor beneficia o Lula. Passando disso, ele passa a ser visto como mau negociador. Ou seja, ele precisa achar um caminho de negociação e fechar um acordo num prazo relativamente rápido. É uma linha muito tênue. Essa investigação pedida por Trump ao Escritório da Representação Comercial não deveria surpreender ninguém – estava escrito na carta enviada ao Lula quando impôs as tarifas de 50%, era só ler até o fim. Até a conclusão dessa investigação, cujo prazo é setembro, essa discussão pode estar solucionada, não é uma caixa de pandora, algo que vá perdurar por meses. Ou seja, é mais uma forma de pressão.
Se forem adotadas sanções nesta investigação aberta pelo Escritório da Representação Comercial dos EUA, qual das áreas afetadas pode causar mais impacto na economia brasileira?
É uma incógnita, pois estão sendo abertas investigações. Eventualmente os EUA podem tomar decisão em relação a tudo de forma negativa, aí o impacto seria ruim. Mas qualquer um desses impactos pode ser ruim temporariamente porque em comércio exterior não existe um vácuo – ele acaba sendo preenchido, surge outro comprador. É problemático, claro, exige um tempo de transição onde o impacto é negativo, mas nada é terminativo.
Em que sentido?
Vi reações no Brasil exageradas. Não vai acabar com o comércio com os EUA, mesmo porque essas tarifas também geram problemas para empresas americanas. Estão falando que o Whatsapp Pay pode sair ganhando se o Pix for sancionado. E se o governo brasileiro simplesmente bloquear o Whatsapp – e somos um dos três países do mundo que mais usam esse aplicativo? Ou se impor tarifas de 50% em todas as compras da Amazon no Brasil? A expectativa do governo brasileiro é que as empresas americanas afetadas no País façam pressão na Casa Branca para um recuo.
A pressão de Trump contra os Brics para atingir o presidente russo Vladimir Putin pode obrigar o governo brasileiro a rever a posição de usar outras moedas em detrimento do dólar no comércio do bloco?
Para mim nunca houve risco de o Brics usar outra moeda que não o dólar em negociações do bloco. O Lula disse isso da cabeça dele, foi infeliz. O mundo inteiro quer dólar, não é uma decisão técnica viável abrir mão do dólar. É possível até criticar o Brics como ideia, mas Trump não consegue punir os países do Brics, pois o bloco tem a China, maior rival dos EUA; um dos maiores aliados estratégicos dos americanos, que é a Arábia Saudita; e, por fim, o país que os EUA querem mais seduzir, que é a Índia. Ou os EUA atacam o Brics como ideia ou selecionam os países que querem atacar, aí de forma bilateral.
“A questão do Bolsonaro no Brasil e do fentanil no México são iscas para levar a uma negociação comercial. Esse é o 'modus operandi' de Trump”
Para que serve o Brics, afinal?
Não faz sentido a existência dos Brics. Discutem muito e não implementam nada. A grande vantagem para os países que fazem parte do bloco são as reuniões de cúpula. Garantem reuniões bilaterais, ou seja, é um clube de networking.
O fato de Trump se sentir livre para impor tarifas comprova o fim da Organização Mundial do Comércio, que deveria mediar disputas tarifárias?
O problema é que a OMC só serve se dois países quiserem recorrer a ela. Quando Trump ignora o poder da OMC, não há nada que ela possa fazer. Isso é algo novo, porque com isso Trump força uma negociação bilateral – ou seja, não é uma questão de justiça, e sim de acordo. A OMC gira em cima da lógica da justiça e essa não é abordagem de negociação do Trump.
Até onde Trump pode ir? Com as tarifas, os EUA arrecadaram US$ 47 bilhões a mais no segundo trimestre do que no mesmo período de 2024. Essa estratégia é sustentável?
Esse valor arrecadado com tarifa é relativo, pois precisa calcular quanto dinheiro as empresas dos EUA perderam, entre outros efeitos dessas tarifas. Trump prometeu, no início do governo, fechar 90 acordos comerciais em 90 dias. Fechou dois, um com o Reino Unido e outro com o Vietnã. Portanto, está pressionado, precisa acumular acordos. A questão do Bolsonaro no Brasil, da anexação do Canadá, do fentanil no México, tudo isso são iscas para levar a uma negociação comercial. Existe um modus operandi facilmente identificado. Se o Trump não chegar a um acordo com o México vai mandar tropas para o país? Não, a questão é chegar a um acordo comercial.
Então é isso que Trump quer com o Lula?
Seria como se, quase silenciosamente, ele estivesse falando para o Lula: ‘Vamos fazer um acordo aqui, joga o seu jogo que eu jogo o meu e tudo se resolve’. Só que não pode falar isso, pois os dois são showmen, atuam melhor na frente das câmeras. Tem de ser feito de uma forma em que os dois países saiam vitoriosos e o resultado final tende a ser menos emocionante do que muita gente imagina. Algo na linha o Brasil paga 15% ou 18% de tarifa. Ou seja, é ruim, mas não é péssimo.