Quem ainda torce o nariz para os vegetais “feios” é melhor começar a destorcer. Com o recrudescimento da crise climática, cresce a quantidade de frutas, verduras e legumes de formatos estranhos, cores atípicas e tamanhos desproporcionais. Cenouras de várias “pernas”, batatas com calombos, pepinos tortos, tomates rachados, abóboras pálidas e cebolas que parecem chalotas tendem a ser cada vez mais comuns nas gôndolas dos supermercados e nas bancas das feiras.
O preconceito contra esses “esquisitos” vem diminuindo, é verdade. Mas três em cada dez consumidores globais ainda seguem presos a um padrão estético cada vez mais difícil de ser alcançado, mostram os dados mais recentes da Organização das Nações Unidas (ONU). E eles mandam para o lixo 40% dos vegetais produzidos no mundo anualmente — alimentos que, em sabor, aroma e nutrientes, não deixam nada a desejar aos “perfeitinhos”.
Seja por mutações genéticas ou pelas condições de plantio, hortifrútis de aparência diferente sempre existiram. Mas o aquecimento global está subvertendo a lógica dominante e transformando probabilidade em quase certeza. Todos os fenômenos climáticos decorrentes do aquecimento global comprometem, em maior ou menor grau, o desenvolvimento pleno das plantas.
O aumento das temperaturas do planeta, por exemplo, prejudica a fertilidade do solo, diminuindo a concentração de nutrientes como nitrogênio, fósforo e potássio.
Nas regiões costeiras, por causa do aumento do nível do mar, há ainda o risco de salinização da terra. E o excesso de sais dificulta a absorção de água doce pelas culturas, o que mina o aporte de “comida” para os vegetais e dificulta a fotossíntese, entre outras consequências.
Tem muito mais. As alterações nas estações do ano alteram os ciclos de cultivo, alterando o tempo de amadurecimento das espécies. As secas e as chuvas cada vez mais intensas e frequentes também podem alterar o "biotipo" das frutas, verduras e legumes.
O calorão facilita ainda o surgimento de pragas e doenças, que encontram nas lavouras já enfraquecidas o cenário ideal para a sua proliferação. Para combatê-las, recorre-se então aos defensivos agrícolas que ameaçam a qualidade do solo. É o jogo de perde-perde das mudanças climáticas “enfeiando” os vegetais e mandando para os lixões e aterros sanitários uma quantidade enorme de comida em perfeitas condições de uso.
Pelo fim da ditadura da beleza
Quando rejeitam os vegetais esteticamente estranhos, o varejo alimentício e os consumidores contribuem para a perpetuação de um ciclo de degradação ambiental, miséria e fome.
“Em nosso mundo, de eventos climáticos cada vez mais extremos, salvar as frutas ‘feias’ não é apenas uma questão de ética, mas de preservação de valiosos recursos naturais”, lê-se no relatório Beauty (and taste!) are on the inside (em tradução livre: "Beleza (e sabor!) estão no interior"), elaborado por analistas da FAO, a agência para alimentação e agricultura, da ONU.
Quase 40% de todos os recursos energéticos usados pelo sistema agroalimentar global são gastos na produção de alimentos que jamais são consumidos. Para produzir uma única laranja, por exemplo, são necessários 50 litros de água, sem contar o uso do solo, o gasto de energia, a mão de obra dos agricultores e o combustível usado no transporte dos produtos.
“Todos esses recursos são perdidos quando o fruto (trocadilho intencional) desse trabalho é desperdiçado”, informa o mesmo documento.

A boa notícia é que, nos últimos anos, os inovadores do ecossistema agrifoodtech vêm criando soluções para evitar o desperdício dos vegetais feios. A americana The Ugly Company, por exemplo, transforma as frutas enjeitadas por sua aparência em snacks. E há muitas startups dedicadas a vender os vegetais “diferentes” por preços reduzidos.
Há também uma série de campanhas deflagradas por ONGs e varejistas ao redor do mundo pela conscientização sobre o fim da “ditadura da beleza” imposta aos hortifrutis. Uma das mais celebradas foi lançada pela terceira maior rede de supermercados da França, a Intermarché.
A ação Fruits et Légumes Moches aumentou o tráfego de clientes na seção de hortifruti das lojas, com um aumento de 24% no número de visitas. Ainda que restrita aos franceses, a iniciativa mostra que as pessoas estão dispostas a levar os “feiosos” para a mesa.
“Em última análise, aceitar os vegetais imperfeitos é uma parte importante de uma mudança muito necessária de hábitos e atitudes”, avaliam pesquisadores do Fórum Econômico Mundial sobre o assunto. “Incentivar as pessoas a refletir sobre seu consumo e desperdício de alimentos (...) terá um impacto positivo na quantidade de produtos que descartamos.”
Como aponta um fazendeiro da Califórnia em levantamento da ONG americana Natural Resources Defense Council: “Se escolhêssemos nossos amigos da mesma forma que colhemos e selecionamos nossos produtos, seríamos muito solitários”. E a "solidão vegetal" definitivamente faz mal ao planeta — e, consequentemente, a nós.