Em 20 de março de 2023, o artista  Ilê Sartuzi visitou o British Museum, em Londres, pela primeira vez. Na sala de numismática, observou um educador manusear moedas diante do público e contar suas histórias.  “Pensei no truque dos ‘cups and balls’, numa figura meio trickster. E também na pintura The Conjurer, do Bosch. Foi aí que me ocorreu: eu deveria fazer um truque de mágica e roubar uma moeda do British Museum”, contou ao NeoFeed.

Na época, Sartuzi cursava mestrado na Goldsmiths, University of London, e vinha refletindo sobre como os acervos de muitos museus europeus foram formados: objetos trazidos de outros países, muitas vezes em contextos de colonização, pilhagem ou assimetria política. Essa reflexão o levou a conceber Sleight of Hand, performance gravada no British Museum, que faz parte da mostra Truque, em cartaz no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP) até 15 de junho.

A ação consistia na substituição da única moeda britânica em exposição no museu, à época, por uma réplica feita pelo artista, numa encenação de furto. A original, ele deixou na caixa de doações da instituição.

“Passei um ano me preparando: consultei advogados, pesquisei brechas legais e escrevi uma narrativa para sustentar o gesto juridicamente. A consultoria me ajudou a navegar nas leis britânicas para que a ação se mantivesse nas bordas da legalidade”, diz Sartuzi. “Entendi que ser malandro é não se ferrar.”

A provocação, segundo ele, não está apenas na troca de moedas, mas no que ela revela sobre o sistema. “Há uma interpretação da legislação como atos históricos de violência”, afirma. “O caso britânico não é exceção. O British Museum Act de 1963 impede que as peças roubadas do museu sejam devolvidas para seus países de origem. Portanto, há um processo de legitimação da pilhagem como ferramenta para fundação de 'museus universais' como a instituição em questão.”

Ao deixar a peça original na caixa de doações do museu, o gesto não se propôs um ato de reparação. “Se relaciona mais como um gesto que entrega, de novo, os problemas com os quais a instituição tem de se confrontar", diz. E, como num truque de mágica, o objeto nunca saiu de cena — apenas mudou de lugar no mesmo palco.

Nascido em Santos, no litoral paulista, Sartuzi, de 29 anos, transita por por diversas áreas artísticas. De objetos escultóricos e projeções de vídeo a instalações e peças teatris. E, a crítica embutida em Truque ecoa um debate mais amplo sobre a presença de acervos coloniais em museus europeus e norte-americanos.

Nos últimos anos, o tema da repatriação ganhou visibilidade internacional. Pressionados por governos e pela opinião pública, museus da Europa e dos Estados Unidos passaram a devolver itens adquiridos em contextos coloniais ou de profunda desigualdade de poder.

Quando conservar é deixar se decompor

Um dos casos mais célebres envolve os Mármores do Partenon, uma coleção de esculturas levadas por Thomas Bruce, o Lord Elgin, no início do século 19, para Londres, quando a Grécia estava sob domínio britânico. As peças continuam até hoje no British Museum

“Muitos desses museus alegam que são mais capazes de preservar, proteger e exibir adequadamente os objetos que se apropriaram ao longo do tempo”, explica Fernanda Pitta, professora da USP, ao NeoFeed. Mas ela lembra que o próprio British Museum esteve no centro de um escândalo recente, quando um funcionário foi acusado de furtar peças e vendê-las online. “Esse caso desmonta o argumento de que essas instituições estariam mais preparadas para cuidar desses patrimônios”, diz.

A repatriação também pode ocorrer dentro de um mesmo país. Desde os anos 1980, museus brasileiros vêm devolvendo objetos a povos indígenas. Pitta cita, por exemplo, a devolução de uma machadinha do povo Krahô, que estava no acervo do Museu de Arqueologia e Etnografia da USP.

Para ela, esse tipo de processo precisa ir além de gestos simbólicos: “Muitas vezes, os povos indígenas não querem apenas o objeto de volta, mas acesso contínuo a ele. Isso exige dos museus relações duradouras, que atendam às demandas reais das comunidades.

Mais do que um fim, diz Pitta, a repatriação pode ser o início de conexões. “Há muitos estudos mostrando que o retorno de objetos pode abrir caminhos para diálogos mais profundos — nos Estados Unidos, na América do Sul, em vários lugares.”

Ilê Sartuzi usou uma técnica de mágica para trocar uma moeda original por uma réplica. Na saída, deixou a peça de 1645, na caixa de doações do British Museum (Foto: MAC USP)

No início do século 19, quandoa Grécia estava sob domínio britânico, Lord Elgin levou para Londres uma coleção enorme de esculturas, os chamados "Mármores de Partenon, que seguem até hoje no British Museum

O debate leva os museus a repensarem noções fundamentais. “A responsabilidade com o acervo, do ponto de vista das comunidades originárias, vai muito além — e às vezes até contraria — os critérios convencionais do que deve ser conservado, cuidado ou mantido intacto”, afirma.

Enquanto as instituições seguem a lógica da imobilidade — não tocar, não alterar —, para muitos povos, conservar é transformar, usar, devolver à natureza. Um exemplo é o totem do povo Haisla, do Canadá, que foi devolvido pelo Museu de Etnografia de Estocolmo.

Após mais de 70 anos na Suécia, o artefato voltou à comunidade. Uma réplica foi esculpida por artesãos locais para permanecer no museu sueco. O original foi deixado ao ar livre no território da comunidade para se decompor, de acordo com a tradição Haisla.

“Para esse povo, preservar é deixar o totem ao ar livre se decompondo. Esse era o gesto mais autêntico de respeito e memória”, explica Pitta.

No Brasil, os canhões

Um dos casos brasileiros mais emblemáticos de repatriação é de um dos quatro mantos Tupinambá, que estava sob a guarda do Museu Nacional da Dinamarca, o Nationalmuseet, desde o século 17. Há ao menos 20 anos, o povo Tupinambá reivindicava acesso a esses mantos.

Esta mesma peça, que estava em Copenhague, participou da mostra do Redescobrimento: Brasil +500, no ano 2000, em São Paulo. Foi a primeira vez que os Tupinambá viram a peça de perto.

“Foi uma mobilização pelo manto, mas também pelo reconhecimento do nosso povo e pela demarcação do território”, lembra ao NeoFeed Glicéria Tupinambá, artista e pesquisadora.

A luta em torno da peça foi essencial para que, em 2002, a Funai reconhecesse oficialmente a existência do povo, até então considerado extinto oficialmente.

Enquanto se negociava a repatriação, o Nationalmuseet convidou Glicéria para visitar o museu. Ao ver o nó que amarrava as penas, assinatura de quem faz os mantos, no verso das peças, ela não teve dúvida: “Reconheci quem ainda sabe tecer daquele jeito: minhas tias, minha avó de 95 anos. Eu chamo isso de cosmotécnica.”

Ao observar os exemplares, Glicéria “escutou” qual dos exemplares deveria voltar. “Alguns têm de regressar, outros podem permanecer — mas todos precisam de cuidado. São peças ritualizadas, com espírito”, explica. O que voltar ao Brasil deve ficar exposto no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, a ser reaberto em 2026.

A pesquisa de Glicéria na Europa revelou que os mantos não foram saqueados, mas levados como presentes diplomáticos. “Eles marcam a presença Tupinambá na Europa. Houve diálogo com autoridades. No Brasil, ficaram os canhões. E para lá foi o que havia de mais precioso: os mantos feitos há 400 anos.”

Para ela, o debate sobre repatriação precisa ir além da devolução física. “É preciso evitar o apagamento da presença Tupinambá na Europa. Não se trata de apagar a história, mas de acessá-la com base no que nós sabemos. Muitas informações nos arquivos sobre outros povos estão erradas. O acesso aos museus é essencial para corrigir isso também.”

O verdadeiro valor dessas peças, segundo Glicéria, está no reconhecimento de um saber e de uma existência dos Tupinambá. "Por que vou pegar uma peça histórica, que exige tanto cuidado técnico, se minha comunidade não tem recursos para manter um museu adequado? A gente nem tem terra demarcada”, ela provoca.

A partir do contato com as peças, a pesquisadora pôde confeccionar novos mantos, reavivando um saber milenar de seu povo.