O sucesso de “Perdidos na Noite” (1969), drama sobre dois excluídos que tentam encontrar o seu lugar no mundo, pegou Hollywood de surpresa. Foi a prova de que o público já estava pronto para temáticas mais adultas, incluindo homossexualidade, em filmes realistas e com preocupação social.

As circunstâncias culturais e sociais no final dos anos 60, algo que o filme capturou com maestria, são importantes para entender por que “Perdidos na Noite” foi um divisor de águas na indústria do cinema. E é nisso que se apoia o documentário “Desperate Souls, Dark City and the Legend of Midnight Cowboy”.

Não se trata de mais um documentário sobre os bastidores da produção protagonizada pela dupla Jon Voight e Dustin Hoffman. “É a oportunidade de examinar um filme feito nos anos 60, uma década de grandes reviravoltas e mudanças”, conta Nancy Buirski, diretora do documentário apresentado nesta 79ª edição do Festival de Veneza, encerrada ontem (sábado dia 10).

“A proposta de ‘Desperate Souls’ é analisar como o clássico impactou aquela época e, consequentemente, como ele ainda impacta hoje, onde também vivemos mudanças sociais.”, diz Nancy, referindo aos movimentos atuais pelos direitos das mulheres, dos negros e da comunidade LGBT. “A comparação está no subtexto do nosso filme”, completa ela.

“Perdidos na Noite” é sempre lembrado como o primeiro filme de estúdio a explorar, com sucesso, a temática gay. E ele ainda entrou para a história como o primeiro título classificado nos EUA como “X”, impróprio para menores de 18 anos (algo quase exclusivo de segmento pornográfico, o que não é o caso), a conquistar o Oscar de melhor filme.

O drama explorou como o sonho americano é quase sempre inalcançável para os mais marginalizados. Como Joe Buck (Voight), um falso caubói que se prostitui ao chegar a Nova York, e Ratso (Hoffman), um vigarista doente que só se dá mal na vida. É o fracasso que acaba unido essas duas almas penadas, além do desespero.

Jon Voight no filme que marcou época - Foto: Biennale di Venezia/Divulgação

A trajetória deles surge em momento marcado por onda de desencanto que estava no ar nos EUA, com a guerra do Vietnã, as mortes trágicas de Robert F. Kennedy (1925-1968) e Martin Luther King (1929-1968) e ainda os movimentos de protestos.

O território de inquietação social era fértil para a abordagem mais crua e honesta que o cinema americano acabaria adotando a partir dos anos dos 1970. Alguns exemplos foram “Amargo Pesadelo” (1972), “Operação França” (1971), “Caminhos Perigosos” (1973) e “Taxi Driver” (1976), entre outros.

“Estamos lidando não apenas com uma era que produziu um filme como ‘Perdidos na Noite’, mas também com um filme que resumiu uma era”, afirma Nancy. A diretora usou muitas imagens de arquivo do período, além de entrevistar personalidades que participaram do projeto ou analisam o que o clássico representou.

Quando “Perdidos na Noite” foi concebido, a abordagem mais realista já era uma tendência no cinema europeu. Não por acaso, o drama foi dirigido pelo britânico John Schlesinger (1926-2003), que vinha de uma leva de filmes ingleses semidocumentais ou de caráter pessimista.

E Schlesinger, que era homossexual, também soube traduzir o que significava ser gay naquela época. Ele trouxe muito de sua experiência no Reino Unido, onde sexo entre pessoas do mesmo sexo foi ilegal até 1967. Embora os protagonistas não fossem amantes aqui, sendo apenas amigos, Schlesinger soube introduzir a temática, sem esfregá-la na cara do espectador, com cenas explícitas.

Ainda sem previsão de estreia no Brasil, o documentário mostra como “Perdidos na Noite” abriu caminho para o cinema abordar o comportamento sexual nas telas de maneira geral e não apenas o “queer”. “Muitas barreiras caíram por terra quando a indústria percebeu que até uma produção imprópria para menores de 18 anos poderia ganhar um Oscar de melhor filme”, afirma Nancy.

O “timing” foi perfeito, já que a sociedade estava mesmo questionando as regras e o sistema, o que fez o cinema também seguir essa tendência. “Foi um momento não só de libertação para os gays, os negros e as mulheres, mas também para o próprio cinema”, diz a documentarista.