Na última Paris Fashion Week, a estilista inglesa Stella McCartney levou sua coleção de Verão 2024 para a feira. Zanzando entre as barracas do Marché Saxe-Breteuil, os modelos exibiram muito mais do que conjuntos de alfaiataria, amplos e confortáveis; vestidos esvoaçantes e jeans.

Com a Torre Eiffel ao fundo, a designer desfilou seu compromisso com a moda ética e sustentável: 95% das peças foram confeccionadas com matérias-primas alternativas - ecológicas e livres de crueldade animal.

De todos os materiais usados, a grande inovação estava discretamente representada nas já icônicas bolsas Frayme e sandálias Elyse. Os acessórios parecem ter sido produzidos com couro; só que não. Vieram dos restos das uvas da fabricação dos champanhes Veuve Clicquot. Ambas as marcas pertencem ao grupo de alto luxo LVHM.

Além das três versões da bolsa e das duas variações da sandália, a linha inclui ainda um porta-garrafas feito sob medida para acomodar a garrafa de Veuve Clicquot Yellow Label. Os produtos estarão disponíveis para pré-encomenda a partir de 11 de dezembro. E à venda em março de 2024 (os preços ainda não foram divulgados).

“Essa colaboração é a mistura perfeita da minha visão de sustentabilidade com os incríveis ingredientes naturais da Veuve Clicquot, usando resíduos para criar uma alternativa circular e luxuosa ao couro animal, que pode mudar radicalmente a indústria”, diz Stella, em comunicado. “Você realmente não consegue perceber a diferença.”

O “couro de champanhe” levou cerca de um ano e meio para ficar pronto e foi desenvolvido com os engaços das uvas colhidas manualmente, nos vinhedos da província de Champagne, no nordeste da França. A fórmula do novo tecido é composto ainda por óleos vegetais e fibras naturais, provenientes também de resíduos agrícolas.

As alternativas à pele de animal e até mesmo aos sintéticos vêm sendo estudadas pela indústria da moda há um bom tempo. Um couro feito de uva, porém, é inédito. Conforme relatório das duas grifes, a inovação tem um impacto 40% menor no aquecimento global, bem como uma redução de 50% no uso de água, em comparação às soluções baseadas em combustíveis fósseis.

Voz pela moda consciente

Aos 51 anos, com o desfile no Marché Saxe-Breteuil, Stella se firma como a voz mais potente do movimento pela moda consciente. Uma preocupação constante desde o lançamento de sua marca em 2001, que já lhe rendeu prêmios importantes como Comandante da Ordem do Império britânico, no início de 2023, e o Green Fashion Ground Breaker Award.

Poucas indústrias têm uma pegada ambiental e social maior do que a da moda. Em termos de poluição, por exemplo, fica atrás apenas da petrolífera.

A bolsa de "couro de uva" foi apresentada no desfile em Paris (Crédito: Stella McCartney)
A bolsa de "couro de uva" foi apresentada no desfile em Paris (Crédito: Stella McCartney)

Ao longo de sua carreira, Stella se transformou na grande incentivadora do ecossistema de inovação fashiontech. Ela já se associou à startup britânica Colorfix, fabricante de corantes naturais, a partir de micróbios geneticamente modificados.

No ano passado, a designer se juntou à biotech californiana Bolt Threads, fabricante de couro à base de micélio, os organismos vivos que alimentam os fungos. A colaboração deu origem à primeira bolsa de luxo à base de plantas, a Frayme Mylo, vendida por cerca de 1,8 mil libras esterlinas.

Aliás, o micélio é o material mais usado no mercado global de couro plant-based. Avaliado em US$ 17 bilhões, em 2022, o setor deve movimentar US$ 44 bilhões, em 2032, crescendo a uma taxa anual composta de 10,1%, nos cálculos da consultoria Polaris Market Research.

E pesar que os restos de uva viraram acessórios de moda (Crédito: Stella McCartney)
Restos de uva viram acessórios de moda (Crédito: Stella McCartney)

Em 2015, Stella chegou a suspender a compra de lã do fornecedor argentino Ovis 21, ser acusado pela ONG de defesa dos animais PETA de violência contra as ovelhas.

À época, a estilista publicou em suas redes sociais: “Ela [a Ovis 21] surgiu como uma iniciativa incrível para ajudar a proteger 4 mil quilômetros de pastagens em vias de extinção na Patagônia, aliado ao bem-estar animal (...) Como uma estilista que construiu uma marca sem usar couro, pelo ou peles de animais, eu não posso tolerar isso”.

À decisão da designer de romper contrato com a fornecedora de lã, seguiram-se outras marcas. De roupas esportivas, a americana Patagônia foi uma delas. Depois do acontecido, Stella correu para os inovadores fashiontechs em busca de soluções em lã vegana e de tecnologias, como o blockchain, que garantissem a rastreabilidade dos produtos usados em suas criações.

Nenhuma parceria da grife Stella McCartney, no entanto, está tão carregada de simbolismos quanto a estabelecida com a maison de champanhe.

Duas mulheres, duas revoluções

Como a designer gosta de lembrar, as duas empresas foram fundadas por mulheres que, cada uma em sua tempo e ao seu modo, revolucionaram os mercados que decidiram desbravar.

Nascida em 1771, em Reims, capital da região de Champagne, Barbe-Nicole Ponsardin, viúva, aos 27 anos, de François Clicquot, reinventou a indústria francesa e criou uma das bebidas mais famosas do mundo.

Ao morrer, em 1886, Barbe-Nicole era conhecida como “veuve Clicquot, a grande dama de Champagne”. A ela e à dama da moda sustentável, tim-tim!