Por 28 anos o americano David Marquet serviu a Marinha dos Estados Unidos. Sua trajetória militar o colocou no posto de capitão, mas tudo o que aprendeu sobre liderança parecia afundar junto com o submarino nuclear que comandava, o Santa Fe.
A velha receita de "assumir o controle e dar ordens" não funcionava naquele espaço. Foi então que Marquet tomou uma decisão ousada, em especial numa estrutura hierarquizada e cuja disciplina é fundamental. Não daria mais ordens. Seus subordinados é que teriam que tomar decisões.
"Promovi a troca do 'eles' pelo 'nós' e alterei certos protocolos. Ninguém mais me procuraria para dizer 'peço permissão para fazer X coisa', mas sim 'eu pretendo fazer X coisa por esse e esse motivo", explicou Marquet, nesta entrevista ao NeoFeed.
Sua experiência bem-sucedida na embarcação militar o levou a outros portos. Aposentando o uniforme em 2009, Marquet se viu livre e inspirado para vestir a camisa de escritor.
Lançou o seu "Turn the Ship Around" ("Vire o navio", em tradução literal) em 2012, e no mesmo ano a obra foi listada na primeira posição da classificação de "livros que precisam ser lidos" da revista Fortune. O jornal USA Today também colocou esse título no topo do ranking "12 livros de negócios de todos os tempos".
Agora, Marquet lidera uma consultoria para empresas e foi nomeado pela Associação Americana de Gerência como "líderes para se observar".
Nesta entrevista ao NeoFeed, Marquet fala sobre a comunicação em tempos de coronavírus, sobre sua carreira e sobre seu mais recente livro, "Leadership is Language", publicado há poucos meses pela Penguin House e ainda sem tradução para o português. Acompanhe:
Como foi que você passou a entender que a comunicação, que era o problema, poderia ser também a solução da sua liderança?
Fui ensinado que um líder é quem dá ordens, toma decisões e diz os que as pessoas têm de fazer. Como capitão, fui trabalhar em uma embarcação em que as coisas não funcionavam como no manual. Ali, eu percebi que os desafios surgiam não porque eu fazia opções erradas, mas porque, como líder, as decisões não cabiam exatamente a mim.
"Fui ensinado que um líder é quem dá ordens, toma decisões e diz os que as pessoas têm de fazer"
Como assim?
Se você é o CEO de uma empresa e reúne toda a sua equipe para dizer que vai lançar um determinado produto, num determinado momento e com uma determinada estratégia, seu ego parece que gruda naquilo. Se alguém o critica ou sugere um caminho alternativo, sua racionalidade é afetada pelo seu emocional. Então, entendi que todos os problemas estavam nas perguntas e não nas respostas.
Como mudou suas perguntas, então?
Na verdade, comecei a questionar as coisas que dizia e da maneira que dizia. Por exemplo, eu dizia coisas como "nós vamos agir dessa maneira, faz sentido?" E essa pergunta não leva a lugar algum. Quem acha que o plano não faz sentido, não vai falar e desagradar o chefe. Perceba que isso não mudou as opiniões, apenas as suprimiu. Se todas as perguntas que fazemos são binárias, em que as respostas podem ser apenas "sim' ou "não", todo mundo vai dizer que sim por medo de perder o emprego.
Arriscaria dizer a raiz disso tudo?
Acredito que essa mentalidade começou na era industrial, quando variáveis não eram bem-vindas. Se você olhar imagens de chão de fábrica naquela época, vai perceber que tudo e todos eram iguais: as mesas, os produtos, as roupas. Conformidade e uniformidade.
Você acha que há diferenças na forma de se comunicar entre gerações?
Eu não sei, acho que me adapto inconscientemente para falar com as pessoas. Mas uma coisa que é fato é que os millennials (aqueles que nasceram entre 1980 e 1995) souberam vocalizar melhor seus desejos. Essa coisa de almejar um emprego com propósito, que tenha equilíbrio entre vida e carreira e que tenha uma equipe bacana não é exclusiva deles. Meus pais e meus avós certamente queriam a mesma coisa, só que tinham que colocar comida na mesa. A forma como os millennials pedem para ser tratados é como todos deveriam ser tratados.
E acredita que a comunicação pode mudar a realidade de empresas ou de mercados de trabalho para que se "enquadrem" nessas necessidades de entregar propósito e equilíbrio?
Algum tempo atrás eu fiz uma reserva em um hotel para que eu e minha esposa passássemos um fim de semana juntos. Com tudo o que aconteceu, obviamente, os nossos planos foram cancelados. E o hotel me mandou uma mensagem instruindo que eu ligasse para um telefone a fim de buscar reembolso ou a remarcação da reserva. A moça que me atendeu falava a toda hora coisas do tipo "posso fazer para você" e depois de repetir isso algumas vezes, eu a interrompi e alertei: você não está fazendo isso por mim. Essa comunicação com scripts, em que as pessoas reproduzem palavras como papagaio, é um problema. Lembrei imediatamente de um outro call center, de um grande banco americano, liderado por um rapaz que leu meu livro e mudou tudo. Ele resolveu jogar fora todos os roteiros das ligações e pediu para que os atendentes apenas resolvessem os problemas do cliente, sem se importar com o tempo. Em geral, esses lugares estabelecem um prazo para o fim das ligações. O nível de satisfação aumentou até entre a equipe.
Agora que nossa realidade é bastante diferente, com o home office quase institucionalizado, como fica nossa comunicação?
As pessoas têm promovido muitas videoconferências. É um desafio, porque a imagem nem sempre é nítida, às vezes tem delay e outros probleminhas técnicos. Ao mesmo tempo, eu te vejo em casa, no seu habitat natural. Consigo ver as plantas que você gosta, os seus quadros, saber se você é cinéfilo e as cores da sua parede. Acho que é uma oportunidade e tanto. Eu e a minha equipe nos reunimos por vídeo também. E eu os vejo com filhos no colo, com os cachorrinhos e gatos por perto Eu os vejo como os humanos que são. Na era industrial, as pessoas eram ferramentas para fazer produtos. Não interessava vê-las humanizadas. É impossível seguir da mesma maneira quando você as enxerga com seus maridos, esposas, filhos, sonhos, desafios, hobbies e afins.
Pensando na estrutura da comunicação, o que é mais importante: quando, o que ou como se fala?
Acredito que a prioridade é com certeza o quando. Se você fala com alguém que não pode prestar atenção, está desperdiçando seu tempo. Tenho para mim uma regra que é 100 ou 0: se não pode dar 100% do seu tempo para, de fato, ouvir quem fala contigo, então não dedique nada. Não finja, que é pior. Vá terminar de escrever o e-mail, de ler a mensagem, de fazer o que divide sua atenção. Depois eu acho importante como se fala, ou seja, as palavras que você escolheu para dar seu recado. Em inglês temos um ditado que resume bem o que eu penso "say what you mean" ("fale o que você sente e quer dizer", em tradução livre).
"Se quer que seu time tenha voz, é importante que suas perguntas promovam isso"
E você acha que líderes têm de ter ainda mais cuidado com o que falam?
Você só pode mudar a si e à sua palavra. Se quer que seu time tenha voz, é importante que suas perguntas promovam isso. Por exemplo, quando um chefe diz "confie em mim", ele já sabe que não inspira confiança. E isso não vai mudar com um simples pedido. Ele tem de ser confiável, isso é fundamental para estabelecer uma comunicação verdadeira e horizontal com a equipe.
Como descobriu que a comunicação era uma ferramenta tão poderosa?
Descobri por puro desespero: me tornei capitão de um submarino, digamos, problemático e tinha que mudar as coisas. Aí reparei no padrão de linguagem que usávamos. Era comum alguém do time entrar na minha sala e dizer coisas como, "eu requisito permissão para submergir o submarino". E eu teria de responder "submerja o submarino". E ele teria que concordar verbalmente, com um "aye". Um belo dia resolvi mexer no protocolo e pedi para que ninguém me procurasse pedindo ordens.
O que você fez?
A partir de então, toda vez que um membro do time tomasse uma atitude, eles me procuravam dizendo "eu pretendo submergir o submarino por essa razão e é isso o que eu vou fazer para realizar a tarefa com segurança". Quando a decisão parte deles, há um pertencimento. As palavras emancipam. Outro exemplo foi quando eu pedi para que trocassem a palavra "eles" por "nós". Quando podemos terceirizar a responsabilidade, seja para um outro departamento ou hierarquia, nós o fazemos, e "ele/eles" é uma linguagem de combate e culpabilização. "Nós" é um termo que constrói vínculos. Foi uma revolução ter de dizer coisas como "nós não mandamos o protocolo no tempo hábil" ao invés de "eles, da expedição, não mandaram o protocolo no tempo hábil". Percebe a diferença? Todo mundo corre junto.
Consegue apontar um ponto de virada na sua trajetória, por conta dessa revolução na forma de se comunicar?
Pouco mais de um ano depois de estabelecer essas novas diretrizes de comunicação, nós conseguimos a pontuação mais alta para um submarino em toda a história da Marinha americana. E absolutamente todos, 100% dos marujos escolheram ficar na equipe. Algo inédito, porque há sempre algumas baixas. Aquele submarino era o pior do ranking. Fomos da lanterna para a pole position.
A gente vê que as coisas agora estão bastante conturbadas por conta dessa pandemia, mas acha que parte do problema tem a ver com a comunicação feita acerca da Covid-19?
A comunicação sobre o vírus foi definitivamente problemática. Sobretudo porque escancarou a desconfiança das pessoas em relação aos governos. Se você não acredita no que o Estado te fala, então muito provavelmente você não vai cumprir as medidas propostas por ele.
Mas acha que essa crise pode ser uma oportunidade?
Acho que comunicação é como um músculo: você precisa praticar e fortalecer sempre. Ele não vai funcionar por pura necessidade. Se você é uma pessoa sedentária e um dia precisar escapar de um tigre, por exemplo, por mais que você tente correr, seus músculos não estarão lá para te ajudar. É um trabalho constante. Não é algo que se ativa como num virar de chave.
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