Companhia brasileira de plataformas de e-commerce, a VTEX esteve em destaque no fim de março deste ano na prateleira dos analistas do Itaú BBA e do BTG Pactual. Em um total de 25 páginas e num intervalo de menos de uma semana, os dois bancos divulgaram relatórios destrinchando as perspectivas da empresa.
A despeito das projeções mais fracas no curto prazo, o BTG ressaltou que estava dobrando a aposta na ação, uma “oportunidade rara de compra”. Já o Itaú BBA chegou à conclusão de que a tese da empresa, listada em Nova York, é “muito menos dependente do que se pensava” da expansão internacional.
Listada na Bolsa de Nova York e avaliada em US$ 813,4 milhões, a VTEX vê suas ações acumularem uma queda de quase 47% nos últimos doze meses. Mas já escolheu suas prioridades para virar essa chave, comprovar essas expectativas e justificar tanta atenção dos analistas. A mais nova delas é o B2B.
“O varejo se transformou muito no Brasil nos últimos 10 anos e amadureceu as marcas no B2C”, diz Mariano Gomide, cofundador e co-CEO da VTEX, ao NeoFeed. “Agora, é o momento de a indústria amadurecer. É um mercado praticamente verde.”
Apesar da constatação do Itaú BBA, a expansão além do Brasil, especialmente nos Estados Unidos e da Europa, com a conquista gradual de clientes de maior porte, é mais um foco no pacote para 2025. E esse roteiro deve passar, inclusive, por M&As nesses mercados.
“O preço do private está chegando num bom ponto. Então, temos um pipeline e apetite para fazermos coisas muito maiores”, afirma Gomide. “E Estados Unidos e Europa são o grande foco, pois são os mercados a serem conquistados”.
Nos dados mais recentes, a VTEX apurou uma receita de US$ 226,7 milhões em 2024, alta anual de 12,5%. O Brasil respondeu por 57% desse montante, e, a América Latina e o restante do mundo ficaram, respectivamente, com 32% e 11%. Gomide não se intimida com o desafio de ampliar essa última fatia.
“O Brasil é famoso por carne, frango e soja. Não por software”, diz ele. “Poucas empresas brasileiras usam a engenharia brasileira para gerar valor lá fora e tenho muito orgulho de sermos uma dessas moscas brancas.”
Uma prova de que a VTEX já vem alçando voos mais ambiciosos foi a sua decisão de deixar a Mach Alliance, associação global que reúne cerca de 50 empresas e que promove arquiteturas de tecnologia para o comércio digital, baseada em frentes como microserviços, APIs e computação em nuvem.
A saída da VTEX da aliança gerou bastante repercussão e debates no meio. E é um dos temas da conversa de Gomide, que fala ainda de questões como as tarifas impostas por Donald Trump, os desafios de ser uma empresa brasileira de software no exterior e as mudanças no uso da tecnologia pelo varejo.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Como você avalia as tarifas impostas por Donald Trump?
Estamos olhando com muito cuidado o que está acontecendo. É sem precedentes. O que era a tarifa em si, como um instrumento de equalização de finanças do governo americano, é muito menos importante do que a estabilidade jurídica que os Estados Unidos quebraram. E essa crise de confiança tem muitos efeitos não previsíveis e hidden costs que podem estar subestimados. Mais do que um choque de tarifas, é um choque de confiança.
É um jogo comercial?
É um jogo de intimidação, de guerra. Não um jogo comercial. Estamos encerrando um ciclo de globalização e iniciando um ciclo de tribalismo. E você ainda soma a isso a instabilidade com os governos locais onde somos mais fortes – Brasil, Colômbia e México.
De que maneira isso pode impactar os negócios da VTEX?
Depende muito. Quando existe uma crise, a VTEX sai beneficiada, porque as empresas colocam em prova o set de software que usam para gestão e sempre procuram um ganho de produtividade extra. Mas quando a crise se torna endêmica, contaminando vários países, e é duradoura, naturalmente a atividade econômica no mundo inteiro e o consumer spending arrefecem. E como servimos ao varejo e às marcas, também sofremos. Vimos isso acontecendo no Brasil no fim do ano passado, com uma desaceleração bruta já precificando a toda a instabilidade interna do País.
"Estamos encerrando um ciclo de globalização e iniciando um ciclo de tribalismo"
A empresa está preparada para lidar com essas instabilidades?
A VTEX fez o movimento de aumentar a produtividade de forma brutal nos últimos 24 meses. Então, temos uma capacidade operacional que gera caixa com bastante saúde e nos colocamos na posição de consolidadores do mercado. Várias empresas podem não ter capacidade de sair dessas crises. O que vai possibilitar a VTEX crescer também de forma não orgânica, através de M&As. O preço do private está chegando num bom ponto. Então, temos um pipeline e apetite para fazermos coisas muito maiores.
Qual vai ser o racional por trás desses M&As?
Expansão geográfica. Estados Unidos e Europa são o grande foco, os mercados a serem conquistados. Há algumas possibilidades de acqui-hiring na América Latina, pois algumas empresas estão passando por dificuldades na região, mas são M&As menores. Os maiores serão para somar carteira de clientes.
E quais são as outras frentes no radar para 2025?
É seguir na conquista global de Estados Unidos e Europa, continuar crescendo no B2C em grandes clientes e abrir o mercado de B2B, que é uma linha recente na qual estamos muito focados. O varejo se transformou muito no Brasil nos últimos 10 anos e amadureceu as marcas no B2C, que tem call center, loja física, marketing multinível, loja online, app e marketplace. Agora é o momento de a indústria amadurecer. É um mercado praticamente verde.
O que explica a aposta nesse segmento?
A evolução do B2C provou que, ao expandir canais, você ganha margem operacional, porque dilui a dependência e está mais protegido a movimentos de ruptura. Mas o B2B não ganhou essa multicanalidade. Ele continuou com aquela estrutura arcaica de representantes. E, agora, com a invasão das marcas asiáticas, com estruturas de distribuição muito mais eficientes, as indústrias estão tendo que se reinventar em canais. Só que o software central da indústria é o ERP (sistema de gestão). E o ERP não é feito numa linguagem e numa natureza que permite multicanalidade de forma natural, nativa, o que torna esses projetos muito caros e complexos.
Quais oportunidades você enxerga nesse contexto?
Hoje, a demanda de B2B nos Estados Unidos é 50% dos nossos contratos. No Brasil, estamos falando em menos de 15%. Então, eu acredito que as indústrias americanas, europeias e asiáticas que operam no Brasil vão demandar a substituição do SAP (sistema de gestão da empresa homônima) como front-end. O ERP hoje é um instrumento de colocação de ordens do B2B brasileiro. Só que a tela azul não é mais o que o representante deseja. Ele deseja um site tão bom quanto o B2C. Com catálogo, search, recomendação, instrumentos de inteligência artificial para poder fazer personalização, campanhas de Ads, integração com marketplaces e canais conversacionais. Isso passou a ser demanda.
E como a VTEX quer se posicionar nesse espaço?
Hoje, se você perguntar para qualquer CEO, CIO, CTO, CFO de empresa brasileira de grande porte e qual é a função primária do ERP, eles vão dizer: "Balanço e contábil". E de fato é. Não é vender mais. Então, acho que vai acontecer uma onda de replataforma tornando o B2B multicanal, de fato, e aumentando eficiência de venda, em termos de margem, com o acesso a canais de receita que não existiam. E nós queremos ser a espinha dorsal desse mercado que vai surgir.
"O varejo e a indústria que não simplificar seus processos, não vai sobreviver"
E no B2C, quais são as perspectivas?
Ainda vemos muito espaço para crescer na América Latina, tem muita alavanca, muito software customizado. Muita empresa no Brasil ainda opera com mainframe da IBM. Então, vai ocorrer uma reestruturação da arquitetura do varejo, que também está sendo orientada pela inteligência artificial. Mas ela não é o grande fator, é só um acelerômetro.
Qual é o grande fator por trás dessas mudanças?
Nos últimos 15 anos, o mundo viveu uma liquidez absurda. Qualquer projeto de inovação se pagava já no PowerPoint. Você pagava para não ser eficiente. Só que o mundo mudou. E o varejo e as indústrias estão sofrendo as consequências desse arrocho. Muitos varejos entraram em negação e não apertaram o botão vermelho da emergência, mas outros apertaram. É o que estão fazendo a Casas Bahia e o GPA, por exemplo. A Americanas resolveu fazer um write off de toda uma estrutura de software interna que tinha, caríssima, por uma estrutura da VTEX, que foi ao ar na semana passada. Isso era impensável há 2 anos. O varejo e a indústria que não simplificar seus processos, não vai sobreviver.
O balanço do ano de 2024 foi positivo para a VTEX?
Tivemos um crescimento muito grande em cinco anos e, em 2024, arrumamos a casa com reduções nas áreas que tinham oportunidade de ganho produtivo. Saímos de um time que chegou a ser de 1,8 mil pessoas para cerca de 1,5 mil. E isso fez com que a VTEX conseguisse entregar operacionalmente, o que foi percebido pelo mercado, que sempre nos colocou em duas caixinhas: ou éramos uma proeminente líder do mercado brasileiro e latino-americano ou uma incipiente empresa global.
Houve avanços nessa última frente?
Nós demos grandes passos nessa consolidação como uma companhia global. Começamos a ganhar contratos muito grandes nos Estados Unidos e na Europa, como é o caso da OBI, na Alemanha, uma empresa de € 9 bilhões, com mais de 700 lojas no mundo. Em software, a construção de marca requer consistência, reputação, referências. Você ganha um cliente tier 3, faz um bom trabalho, depois ganha um tier 2 e assim por diante. E isso vem acontecendo. Já estamos mais presentes nas RFPs (processo de seleção de fornecedores) e deixamos de ser uma aposta arriscada. E isso começa a abrir oportunidades orgânicas, por exemplo, na Ásia, que não é nossa aposta.
De que maneira isso está se refletindo em investimentos nesses mercados?
Estamos expandindo muito a operação nos Estados Unidos. Abrimos agora três unidades de negócio por lá – grocery, B2B e omnichannel, que é o B2C mais complexo. Estamos coletando casos em cada uma dessas verticais. É um momento de validação no país, onde conseguimos ter um track record mínimo de reputação.
Como todo mercado, a VTEX também sofreu nesse contexto, o que ainda se reflete em suas ações, negociadas bem abaixo do IPO, em 2021. Como é lidar com esse cenário?
Eu e o Geraldo [Thomaz – cofundador da VTEX] somos engenheiros mecânicos. Nós nunca vamos gerar valor pelo valor do mercado. Vamos gerar valor do equity, no longo prazo. Pela nossa natureza, mas também porque ainda detemos 40% da empresa. E a nossa disciplina financeira é muito austera. Porque não é comum uma companhia saída do Brasil dominar o software no mundo.
Vocês têm de continuar se provando?
Se não formos muito melhores que os nossos competidores, nós perdemos. O Brasil é famoso por carne, frango e soja. Não por software. Então, temos que acordar duas horas mais cedo e dormir duas horas mais tarde. Essa sempre foi a nossa história. Poucas empresas brasileiras usam a engenharia brasileira para gerar valor lá fora e tenho muito orgulho de sermos uma dessas moscas brancas. Hoje, em qualquer roda de digital commerce do mundo, a VTEX é um nome que as pessoas respeitam.
Uma prova desse status foi a reação à saída da VTEX da Mach Alliance. O que motivou essa decisão?
A Mach Alliance nasceu e pregou uma mudança na estrutura de como se pensava software, que trazia uma liberdade ilimitada para o varejo. Hoje, é muito comum você ver empresas com 30 softwares para operar uma loja de e-commerce. Então, no fundo, a aplicação do conceito gerou uma liberdade extremista, que fez com que os varejos ficassem muito caros nas suas arquiteturas. Projetos que deveriam ser de R$ 100 mil passam a ser de R$ 3 milhões e jogam a empresa numa centrífuga de custos atrelados à TI. Nós não vemos isso como algo sustentável financeiramente. Daí, a nossa saída. Eu resolvi tomar o custo de levantar essa bandeira. Só não esperava ter tanto apoio. Agora, meu próximo passo é escrever um manifesto para poder levar essa mensagem adiante.