Brasília - Ao cruzar um corredor de 50 metros entre a entrada do gabinete e a sala principal do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, no último andar de um dos prédios do órgão, é possível avistar reportagens, fotos, caricaturas e camisas de times de futebol. Tudo emoldurado, como quadros decorativos.

Decano da Corte, com 22 anos de atuação no principal, o homem de 69 anos acompanhou um sem-número de julgamentos nesse período. Uma das principais preocupações atualmente está nas consequências econômicas e sociais das decisões econômicas, agora mais especificamente sobre os efeitos dos juros no País.

“Se no passado as disputas jurídicas eram causadas em parte pela inflação, agora as causas estão nos juros”, disse Mendes, em entrevista ao NeoFeed na noite de quarta-feira, 19 de março, no fim do expediente da Corte. “É uma questão para o investidor, mas também para as empresas que não conseguem pagar os empréstimos.”

Minutos antes de a entrevista começar, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central havia aumentado a taxa Selic em mais 1 ponto percentual, chegando a 14,25% ao ano, o maior patamar desde 2016. Ao falar sobre juros e inflação, Mendes rememora planos econômicos até chegar ao Real, que domou o aumento de preços.

“O Plano Real trouxe uma previsibilidade nas próprias decisões judiciais, o que diminuiu o contencioso. Mas agora temos a alta dos juros. As empresas precisam de empréstimo, mas daqui a pouco não conseguem pagar. Veja o número de pedidos de recuperação que têm relação com os juros altos”, diz Mendes, que foi Advogado-Geral da União do governo Fernando Henrique Cardoso de janeiro de 2000 a junho de 2002.

Nesta entrevista ao NeoFeed, o ministro trata ainda de temas sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal. Mendes defende que a legislação precisa ser aprimorada e que tal ponto deveria ser pautado pelos Três Poderes. Também apoia os acordos intermediados pelo Tribunal de Contas da União com empresas.

A seguir, os principais trechos:

Em um livro recente sobre decisões judiciais e consequências econômicas, o senhor e o ministro Luís Roberto Barroso escrevem sobre a responsabilidade de juízes ao tomar decisões que afetem um número maior de pessoas. Como tratar de erros de juízes e dos efeitos da insegurança jurídica com mudanças de regras?
Hoje temos meios de eventualmente atenuar efeitos da decisão. Por exemplo, a chamada “modulação de efeito”. É claro que o cuidado também já deveria começar por quem formula os projetos, o Executivo, o Legislativo, porque, obviamente, como dizem os portugueses, as consequências vêm depois. É preciso ter esse cuidado.

E também é preciso considerar a própria lentidão na solução.
Sim, às vezes também a demora na solução é um grave problema. Você vai julgar os efeitos de um plano econômico 20 anos depois, quando já se sabe que ele não deu certo, como nós tivemos vários ao longo da nossa vida. Então, é um juízo normalmente negativo que se tem. O Plano Cruzado, o Plano Bresser ou o Plano Verão causaram prejuízos. Havia uma técnica, como a economia era indexada, de fazer o plano econômico antes das correções monetárias serem implementadas. Então, você fazia dois dias antes, três dias antes de completar um mês ou coisa do tipo. E aí vinha a queixa de que a caderneta de poupança, os investimentos foram de alguma forma fraudados em relação aos ganhos ou eventualmente reajustes salariais. Isso gerou, ao longo dos anos, montanhas de processo.

"Você vai julgar os efeitos de um plano econômico 20 anos depois, quando já se sabe que ele não deu certo. Então, é um juízo normalmente negativo que se tem"

O Plano Collor é outro exemplo.
Isso, com aquela retenção dos ativos financeiros provocou. Ainda hoje, a gente tem na retina aquelas filas lá na Paulista de pessoas que estavam entrando com mandado de segurança, porque todos ficaram só com uma parte do dinheiro naquele momento. Então, o quadro político-econômico também foi muito determinante para problemas dessa excessiva judicialização.

O Plano Real de alguma maneira mudou essa lógica?
Isto diminuiu porque nós conseguimos estabilidade a partir de 1994. O próprio Plano Real, se você olhar, ele vem já num modelo de não-surpresa, ao contrário dos anteriores, em que você fechava bancos e tudo mais, quer dizer, era inspirado na surpresa, exatamente para tentar diminuir o efeito inflacionário do período. O Plano Real parte de uma outra premissa de que se devia fazer um tipo de ajuste gradual. Por isso, usa a URV, que vai se ajustando até corresponder a tantos reais, não é?

Um êxito?
Foi um plano exitoso, felizmente, que não causou grandes comoções. Teve problemas em outra área. Como a inflação cessou, nós tivemos problemas na banca, porque os bancos viviam do overnight. E, por isso, veio o Proer. São circunstâncias interessantes e de aprendizados de tantos anos. O Brasil ao longo desse período teve mais de 12 moedas. Por outro lado, temos um grande e contencioso aberto, num quadro de insegurança.

"O Brasil ao longo desse período [dos planos econômicos] teve mais de 12 moedas. Por outro lado, temos um grande e contencioso aberto, num quadro de insegurança"

Quais?
Por exemplo, eu recebi o prefeito de São Paulo (Ricardo Nunes) preocupado com a impugnação da emenda constitucional que trata da Previdência Social, a reforma da Previdência (a pendência é o desconto para os servidores inativos). Então, as pessoas fazem as reformas, se adaptam a elas, e depois vem as impugnações e isso tem consequência, dependendo da decisão que o Supremo toma. E às vezes o Supremo, quando divisa consequências, faz essa atenuação ou essa modulação de efeitos.

O Plano Real de qualquer forma atenuou os conflitos judiciais?
Eu acho que de qualquer sorte, com a redução da inflação, nós passamos também a ter um certo controle da litigiosidade em geral. E os números passaram a ser mais críveis e mais razoáveis. No passado mudavam-se moedas, correção monetária. Só para ter uma ideia, na transição Sarney/Collor, a inflação era de 84,32% ao mês. Por isso também que se adota aquele remédio extremamente radical, Zélia Cardoso, todo aquele quadro. Então, hoje temos um mundo mais visível, embora continuemos com juros nas alturas. Isso tem consequências. Se alguém toma um empréstimo a 15% da Selic, isso em dois anos vira uma montanha. Então, continuamos a ter ainda alguns problemas.

Os juros então substituem a inflação no volume de contenciosos?
Com certeza. No passado, disputas jurídicas eram causadas pela inflação. Hoje, pelos juros. Pelo menos a solvabilidade das pessoas, de empresas, porque elas obviamente tomam um empréstimo porque necessitam, mas daqui a pouco não conseguem pagar, não conseguem fazer um break even e aí leva à insolvência de empresas. E certamente também aqui vem contencioso. Veja um quadro claro que a gente tem hoje, o número de recuperações judiciais, às vezes de empresas importantes, tem a ver com juros altos.

Um ponto importante hoje é a questão da responsabilidade e da meta fiscal, principalmente diante da proposta de isenção de IR para quem ganha até R$ 5 mil. O presidente da Câmara cobrou na frente de Lula responsabilidade fiscal, como o senhor está acompanhando essa questão?
Se vai diminuir receita, como isso será reposto? Esse é um tema sensível também pela leitura que o mercado faz. Nós vimos recentemente agora no final do ano a discussão sobre o ajuste fiscal e as perplexidades que o governo revelou sobre a disposição para fazer cortes e isso refletiu na taxa cambial. O dólar foi a R$ 6. “Será que a capacidade de pagamento do país está mantida? O governo tem convicção nessa questão da responsabilidade fiscal, de fazer os cortes necessários?” Mas eu acho que também aqui nós progredimos assim em termos de civilização. Eu participei com o José Roberto Afonso daquela modelagem da Lei de Responsabilidade Fiscal. E nós achávamos que ela ia ser mandada pelo Congresso, mas que talvez não fosse votada ou que não fosse votada de imediato. E o Congresso aprovou.

Qual é a premissa?
Ela tem uma premissa básica que é: não se gasta mais do que se arrecada. Até porque se você faz isso, gasta mais do que arrecada, você tem que fazer emissões. Ou de moeda ou de títulos. O próprio Fernando Henrique gostava de usar a imagem da dona de casa, dizendo que ela se adapta ao orçamento do seu domicílio. A premissa era essa. E aí criam-se então mecanismos de controle. Se alguém passa, por exemplo, despesa de pessoal, ela passa a ter um limite prudencial. Se você ultrapassa isso, você recebe um sinal, você tem que reduzir. E cabe a você tomar decisões políticas para isso. A Lei de Responsabilidade Fiscal é um grande manual.

Mas precisa de aperfeiçoamentos?
Muitos falam que podia ter alguns órgãos para fiscalizar, mas o Brasil adotou essa ideia.

"Percebo que a gente está com vários debates políticos muito superficiais. Eu tenho falado com interlocutores políticos que nós podemos fazer uma lista de projetos estruturantes importantes"

O senhor acha isso também?
Eu acho que sim, eu acho que há projetos que precisam ser aproveitados, eu acho que vale a pena conversar com os técnicos em relação a isso e talvez seja até um momento. Eu percebo que a gente está com vários debates políticos muito superficiais. Eu tenho falado com interlocutores políticos que nós podemos fazer uma lista de projetos estruturantes importantes. Acho que isso seria bom para o Legislativo, para o Executivo e para o Judiciário se ocuparem com questões importantes, com uma boa lei de finanças públicas, talvez essas complementações da lei de responsabilidade fiscal… Mas se nós olharmos o que o que éramos e o que nos tornamos, nós avançamos significativamente. Várias das coisas que hoje nós podemos fazer como Pix é graças à estabilidade monetária, estabilidade financeira. Então são avanços importantes que conquistamos: o Banco Central independente.

É uma das forças do País?
Hoje todo mundo reconhece que uma das forças do Brasil é o sistema financeiro. Mas tem problemas, como a conta de precatórios, mas tem que se olhar o que causa, às vezes pode ter uma expansão imediata. No governo Bolsonaro teve aquela ideia de fragmentar os precatórios e o atual governo, quando percebeu que aqui ia virar uma bomba, decidiu fazer dívida e pagar logo os precatórios. Encerrou essa ideia do parcelamento. O que levou inclusive a um aumento da dívida, mas pelo menos evitou o crescimento. E aí uma outra questão, os juros altos fazem com que os precatórios sejam altos. Porque se passa a correção para um outro ano, já pagando juros.

Sobre a Secretaria de Consenso do TCU, que tem resolvido pendências entre o Poder Público e as empresas, como o senhor avalia essa solução?
Ao que eu vejo me parece sensata. É no sentido de resolver problemas que às vezes se acumulam e que se tornam insolúveis, as empresas não conseguem pagar aquelas imposições. Nós vimos isso inclusive no que diz respeito aos acordos de leniência, as empresas fizeram esses acordos, foram todos para recuperação judicial e não conseguiram pagar. Eu até esses dias acompanhei uma solução, não sei como foi construído isso em termos de consenso, mas que afeta a BR 163 lá, de Cuiabá a Santarém.

O que o sr. achou?
Me pareceu extremamente inteligente o acordo porque era uma empresa da Odebrecht, portanto uma subsidiária que tinha ganho concessão para duplicar essa rodovia e ela estava sem condições de fazer. Então ela estava acumulando multas e cada vez mais inviável para enfrentar essa situação. E o governo do estado de Mato Grosso praticamente comprou a empresa, aportou R$ 2 bilhões. Assumiu a empresa e construiu uma solução junto ao TCU, se comprometendo depois de “x” anos a devolver essa empresa na bolsa, portanto tendo-se ressarcido devolvê-la ao mercado. E eu fui lá participar da inauguração dos 100 primeiros quilômetros. Mas a solução é interessante, porque, do contrário, nós teríamos só escombros nesse contexto. Temos as obras paradas, temos uma série de problemas que, às vezes, estão sendo resolvidos a partir dessa consensualidade, a possibilidade de que haja esses encontros dentro de um padrão de razoabilidade, desde que haja transparência, desde que haja parâmetros. Eu sou, altamente, favorável a essa possibilidade.