O aperto monetário do Banco Central iniciado em setembro do ano passado prosseguiu nesta quarta-feira, 19 de março, com a decisão do Conselho de Política Monetária (Copom) de aumentar a taxa básica de juros em 1 ponto percentual, para 14,25% - elevando a Selic ao maior nível desde agosto de 2016, durante o governo de Dilma Rousseff.
No comunicado, o BC deixou claro que vai continuar perseguindo a meta de inflação de 3%, mas admitindo "um ajuste de menor magnitude" na próxima reunião, a despeito do pouco empenho do governo federal, que não para de anunciar medidas fiscais e parafiscais para estimular o consumo, indo na contramão do BC que tenta usar os juros para esfriar a economia e, com isso, trazer a inflação para a meta.
“O cenário mais recente é marcado por desancoragem adicional das expectativas de inflação, projeções de inflação elevadas, resiliência na atividade econômica e pressões no mercado de trabalho, o que exige uma política monetária mais contracionista", diz o comunicado do BC.
E prossegue acrescentando que "diante da continuidade do cenário adverso para a convergência da inflação, da elevada incerteza e das defasagens inerentes ao ciclo de aperto monetário em curso, o Comitê antevê, em se confirmando o cenário esperado, um ajuste de menor magnitude na próxima reunião".
O comunicado do Copom foi divulgado horas depois de o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) manter inalteradas as taxas de juros americanas, na faixa de 4,25% a 4,50%, mas prevendo dois cortes este ano.
O aumento do Copom, o terceiro seguido da mesma magnitude desde dezembro, marcou também a nova diretriz de política monetária do BC sob a presidência de Gabriel Galípolo, que assumiu em janeiro, mas herdou a alta “pré-fixada” da Selic iniciada no mês anterior, parte do esforço para conduzir a inflação e as expectativas à meta de 3% (hoje está em 5,06%).
Indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Galípolo tenta conciliar a política monetária do BC com a dura tarefa do governo de reduzir a impopularidade do presidente da República.
Mas o fato é que a queda de braço entre o Banco Central e o governo federal para trazer a inflação para o centro da meta de 3% está chegando a um impasse. O diagnóstico é do economista moçambicano Alberto Ramos, diretor de pesquisa para a América Latina do Goldman Sachs, nesta entrevista ao NeoFeed.
De Nova York, onde vive e produz relatórios semanais do banco americano sobre a economia brasileira, Ramos acompanhou a decisão do Copom e assinalou que a pressão sobre a inflação ainda é muito intensa, particularmente na área de serviços.
“O conjunto dos dados é inconclusivo em relação ao ciclo econômico”, diz Ramos. “Há dados que mostram que, sim, a economia perdeu dinamismo no fim de 2024, mas não o suficiente para saber se de forma definitiva.”
O problema, segundo ele, são os constantes estímulos à economia do governo, com medidas fiscais e parafiscais, que na prática sabotam os esforços do BC de desaquecer a atividade econômica, com aumentos de juros, além de elevar a dívida pública.
Ele faz uma analogia a essa quebra de braço entre BC e governo que remete ao desejo de se querer fazer um café forte, adicionando mais pó, mas adicionando também mais água.
“É o que ocorre: o BC sobe o juro, adicionando mais pó, mas depois vem a política fiscal e adiciona mais água. O café nunca vai ficar forte. É a chamada inconsistência fiscal”, afirma ele.
Com isso, adverte Ramos, o BC não terá espaço para flexibilizar a política monetária. “O Banco Central tem de olhar a inflação projetada, o desvio em relação à meta e, com isso, continuar a subir os juros”, diz Ramos.
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista do diretor de pesquisa para a América Latina do Goldman Sachs:
Qual sua avaliação da reunião do Copom, que confirmou o aumento de 1 ponto percentual na Selic, agora em 14,25%, e sinalizou um ajuste de menor magnitude na próxima reunião?
A declaração de política é conservadora/hawkish. O Copom deve se concentrar no fato de que as previsões de inflação de 2025 e no terceiro trimestre de 2026 mal se moveram (-10 pontos base - pb - para um ainda muito distante da meta de 5,1%/3,9%). E a previsão para preços não regulados subiu 20 pb para 5,4% para 2025 e não se moveu de 3,8% para o terceiro trimestre de 2026. Nesta fase, dado que o Copom ainda está longe de ter vencido a batalha contra a inflação, ele não deve se distrair com a dinâmica do crescimento doméstico e a incerteza global. Muito provavelmente, a convergência da inflação para a meta não acontecerá em 2026. O balanço de riscos permaneceu “assimétrico para cima” e o Copom não tocou no balanço de riscos para a inflação. Isso também foi ligeiramente hawkish. O Copom minimizou um pouco a desaceleração incipiente da atividade doméstica
Como está a economia brasileira atualmente?
Me parece que chegamos a um ponto de inflexão. A batalha da inflação não está ganha, ainda é muito cedo para celebrar. A pressão sobre a inflação ainda é muito intensa, particularmente na área de serviços. O conjunto dos dados é inconclusivo em relação ao ciclo econômico. Há dados que mostram que, sim, a economia perdeu dinamismo no final de 2024 – mas não o suficiente para saber se de forma definitiva.
Onde está o gargalo?
A minha preocupação é que ainda há muito estímulo da economia - ela sobreaqueceu e o hiato do produto ficou positivo (indicando que a economia está operando acima da sua capacidade, com excesso de demanda e risco de inflação). Estamos nessa disjunção em que não fica claro o quanto a economia acelerou e o quanto desacelerou.
“Estamos nessa disjunção em que não fica claro o quanto a economia acelerou e o quanto desacelerou”
O governo ajuda, estimulando o consumo?
O que vemos é um enfraquecimento do mecanismo de transmissão da política monetária, com medidas parafiscais do governo, com uso de folha de balanço de bancos públicos para gerar atividade e facilitar o financiamento. O governo é bastante criativo em estimular a economia fora do Orçamento. É o mesmo de querer fazer um café forte, adicionando mais pó, mas adicionando também mais água. É o que ocorre: o BC sobe o juro, adicionando mais pó, mas depois vem a política fiscal e adiciona mais água. O café nunca vai ficar forte. É a chamada inconsistência fiscal.
O setor produtivo colabora com o quadro?
Tem um estímulo natural que vem com a safra do agronegócio e o efeito de difusão que isso tem sobre muitos outros setores da economia. Além disso, ainda no primeiro semestre teremos a atualização do salário-mínimo e das transferências para benefícios sociais. O mercado de crédito continua resiliente, assim como o mercado de trabalho e os salários. Tudo isso indica uma economia que ainda dá sinais de estar relativamente forte.
Como o BC deveria agir nos próximos meses?
E preciso manter alguma simplicidade na análise. O Banco Central tem que olhar a inflação projetada, o desvio em relação à meta e, com isso, continuar a subir os juros. Não dá, neste momento, olhar muito para o crescimento ou começar a duvidar das próprias projeções do seu modelo. Acredito que o BC não queira necessariamente dar um arrocho violento na economia, mas quer que o crescimento modere porque foi justamente esse crescimento acelerado, acima do seu potencial, que levou a essas pressões sobre a inflação.
O BC está conseguindo cercar essas pressões sobre a inflação?
O que preocupa é que, como a meta é sempre três trimestres adiante, o BC sempre olha um pouco mais à frente e a inflação nunca está na meta. Ou seja, vai realizando inflação a 4% e 5%, e lá adiante parece que vai melhorar. Trazer essa inflação para a meta um pouco mais cedo teria uma vantagem. Por isso, o BC não hesitariá em subir um pouco mais os juros no segundo trimestre, não necessariamente no atual ritmo de 1 ponto percentual, ao mesmo tempo que seria prematuro encerrar rapidamente o ciclo quando os modelos do BC mostram que a inflação projetada não está na meta e quando continuamos a ver a entidade fiscal, no caso, o governo, colaborando pouco ou nada – ou até puxando na direção contrária.
Uma diretoria do BC mais alinhada ao governo pode dificultar o combate à inflação, no sentido de ficar mais vulnerável à pressão para não subir os juros?
O BC é independente, e o mandato de seus dirigentes não é fazer favores ao governo, e sim respeitar a carta do BC e calibrar a política monetária. Até acho que seria contraproducente fazer diferente, seria como dar um “presente envenenado” ao governo. Acomodar a inflação num nível alto é a prescrição certa para crescimento baixo.
Então essa nova diretoria do BC terá pouco espaço para flexibilizar a política monetária?
Não há outro caminho alternativo a não ser entregar inflação baixa e estável. Tudo aquilo que parece uma ilusão de curto prazo tem um custo elevadíssimo no médio e longo prazo. Não sei se vai haver pressão. A preocupação do mercado é que o governo está muito focado na eleição de 2026 e em manter a economia forte. Se o BC mostrar alguma flexibilidade, a reação do mercado seria muito negativa, o que significa que as condições financeiras locais tenderiam a ficar ainda mais restritivas. Ou seja, seria o caminho curto para entregar menos crescimento, não mais.
"A preocupação do mercado é que o governo está muito focado na eleição de 2026 e em manter a economia forte"
O PIB cresceu 3,4% em 2024, mas teve forte desaceleração no quarto trimestre. Nas últimas semanas, o câmbio também reagiu, o que pode ajudar na queda da inflação. Como esses fatores podem influenciar na política monetária do BC daqui para frente?
O crescimento do quarto trimestre veio abaixo da estimativa, mas o número de janeiro, em especial do varejo, veio mais forte que o esperado e o de produção industrial, menos forte do que o previsto. Por isso que reafirmo que os sinais da atividade são inconclusivos. Se vierem a ser conclusivos, e mostrarem que a economia está mais fraca, com crescimento do PIB para 2025 entre 1,7% e 2%, o modelo do BC vai gerar uma inflação projetada mais baixa.
E o câmbio?
O câmbio veio com o dólar cotado de R$ 6,20 para R$ 5,70, isso também ajuda na queda da inflação esperada – assim como o preço do petróleo mais baixo. As expectativas de inflação infelizmente se deterioraram um pouco mais, mas parecem dar sinais de estabilização na margem, embora elevadas. Há muitas variáveis: dinâmica do crescimento, do câmbio, de preços de petróleo e a própria dinâmica do conjunto de expectativas. Neste momento, câmbio, petróleo e talvez crescimento ajudem a levar uma projeção de inflação um pouquinho melhor no horizonte relevante do BC, ou seja, em 18 meses – este tem inflação projetada de 4%, para uma meta de 3%. É possível que amanhã esse número seja 3,9% ou 3,8% - mas não são 3%.
O Orçamento da União ainda não foi aprovado e há discussão entre governo e o Congresso, por conta das emendas e além da recém-anunciada isenção de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil por mês. O fator político pode piorar ainda mais a situação fiscal do governo?
Difícil avaliar, não sou cientista político. Mas a dinâmica política mudou um pouco, reflexo da queda de popularidade do presidente e do governo e as consequências mirando a eleição em 2026. Pode ser, sim, mais difícil para o governo aprovar medidas no Congresso, que, hoje, tem um apetite reduzido de aprovar medidas que aumentem a carga tributária. Para aprovar medidas que aumentem o gasto, o Congresso vai querer que isso seja compensado não com mais medidas de receitas, mas com redução de outras partidas do gasto.
O IGP-10, que calcula os preços ao produtor, desacelerou em fevereiro-março, mas a inflação ao consumidor subiu mais de 1%, indicando que segue resiliente. Corremos risco de entrar num ciclo onde os juros altos podem não ser suficientes para segurar os preços?
Esse risco existe, é a chamada dominância fiscal – ponto no qual a política monetária do BC fica inoperante: o BC tenta subir o juro, isso aumenta a preocupação com dinâmica de dívida, faz o câmbio andar e, como tal, tem efeito limitado na inflação. Não estamos nesse cenário, mas estamos mais perto do que há um ano, sendo que em dezembro vimos sintomas claros de dominância fiscal. Sabemos, porém, como sair dessa situação: com uma política fiscal mais austera.
Temos ainda os efeitos causados pela política tarifária de Donald Trump. Em que sentido elas devem impactar no câmbio e na política fiscal brasileira?
Também ainda existe muita incerteza nesse tema. A grande onda de tarifas virá em 2 de abril, fala-se em classificação em três níveis – médio, baixo ou alto –, o que pode impactar o Brasil. Este tipo de política tem implicação no crescimento dos EUA, para o dólar em mercados globais e para política do Fed, o Federal Reserve (o BC dos EUA). Todas elas geram efeitos para economia brasileira. Um dólar forte significa real mais fraco. Menor capacidade do Fed de cortar juros – se isso impactar a inflação – reduz os graus de liberdade do Copom. Não está claro o desenho final da arquitetura tarifária dos EUA, mas os cenários descritos não são boa notícia para o Brasil.
“Não está claro o desenho da arquitetura tarifária dos EUA, mas os cenários descritos não são bons para o Brasil”
No caso de o Brasil adotar tarifas recíprocas, a situação piora?
O Brasil tem uma economia com um nível de proteção comercial claramente muito grande. Quando se fala em protecionismo comercial, o Brasil não tem um argumento para esgrimir, porque tem um nível de proteção elevado até mesmo dentro das restrições do Mercosul, que tem uma tarifa comum bastante alta. Fica difícil entrar nessa discussão quando se está fazendo exatamente a mesma coisa. Precisa aguardar como fica essa estrutura tarifária global. Mas, especificamente, em termos de reciprocidade tarifária em relação ao que os EUA cobram de vocês, o Brasil não está bem na foto.
O senhor costuma apontar o desequilíbrio macroeconômico do Brasil entre o déficit fiscal e a dívida pública lembrando que, para estabilizar a dívida, o País necessitaria de um superávit primário de 2% a 2,5% do PIB. O governo está distante do equilíbrio fiscal?
Estamos muito longe do equilíbrio fiscal e diria que na margem, no nível estrutural, as coisas não estão evoluindo bem e todos estão tentando fugir desse tema de equilíbrio fiscal e também do crescimento da dívida pública. Aliás, o mercado já entendeu isso, não vai acontecer nada até a próxima eleição ou governo, isso já está precificado. Se não fosse uma grande questão, a taxa Selic não estaria próxima de 15%. Alguém vai herdar essa batata muito quente.
Qual o impacto da dívida pública elevada?
Carregar endividamento alto, como o Brasil faz, traz consequências negativas de médio e longo prazo, sobre a forma de crescimento, na formação bruta de capital, no investimento e sobre a taxa de juro neutra - a taxa de juro real no Brasil é alta porque a dívida é elevada. Tem impacto sobre a eficiência da política fiscal: quando o governo gasta mais, o efeito multiplicador desse gasto é menor em regimes de endividamento altos, a ponto de o multiplicador fiscal ficar negativo – quanto mais se gasta, menos cresce.
Já passamos por essa situação?
Vimos isso no governo Dilma, cujos gastos excessivos preocuparam o mercado, as condições financeiras tornaram-se mais apertadas e o impulso fiscal ficou negativo. Ou seja, gastou mais e cresceu menos. Além disso, o endividamento alto torna a macroeconomia mais volátil.
Em que sentido?
O endividamento afeta indicadores como crescimento do PIB, inflação e juros, refletindo os custos de carregar endividamento alto mesmo sem ter uma crise fiscal. Não podemos cair na tentação de que, se não tivermos crise fiscal, está tudo ótimo. O Brasil poderia estar crescendo mais, com taxa de juros mais baixas, com menos inflação do que tem hoje. Já existe um custo presente pelo fato de o tema fiscal ser perenemente adiado.