A discussão em torno da Inteligência Artificial ocupa diversos espaços e setores do mercado, mas você já parou para refletir quais empresas brasileiras construíram IA de fato? O ecossistema de inovação do Brasil não tem muitos exemplos de empresas que verdadeiramente tenham desenvolvido IA.
Em paralelo, muitas empresas já começaram uma corrida para montar times de IA e há também aquelas, principalmente do mercado financeiro, que questionam: “eu deveria olhar para a IA agora?”, “eu deveria esperar?”, “para onde que eu olho?” ou “o que faz sentido no Brasil?”.
Para reflexão, compartilho aqui algumas dificuldades que a meu ver impedem o surgimento de empresas de IA no Brasil, mas também algumas dicas e acertos para quem estiver empreendendo, investindo ou avaliando empresas brasileiras com inteligência artificial (IA) no core.
As jabuticabas competitivas
Jabuticaba. Fruta deliciosa e exclusiva do nosso país. Empreendendo na construção de IA desde 2014, descobrimos um caminho de nos diferenciar dos americanos e europeus municiados até os dentes de dinheiro em caixa dos principais VCs globais. Qual? Dados e "machine teaching" para o português.
No nosso caso, dados das conversas de brasileiros oriundos de canais públicos de troca de opiniões. Redes sociais, imprensa, blogs, fóruns e mais tarde conversas 1:1 em canais de atendimento e vendas a clientes. E um cuidado mais que especial em treinar os algoritmos para compreender nosso português - não qualquer português, o informal, cheio de abreviações e gírias e sem muito contexto num tuíte de 140 caracteres.
Por uma série de motivos - técnicos e de prioridade internacional - para um gringo competir no Brasil com uma tecnologia estado da arte, ou seja, melhor do mundo, para o português, seria muito improvável no primeiro momento. E em um negócio onde resumir a opinião pública in real time pode mudar o rumo de um negócio em crise, ter o melhor português era um belo de um diferencial.
Por que conto essa história? Pois achamos em 2014 uma jabuticaba brasileira e, desde lá, vi infelizmente poucos casos similares no Brasil e a história de software no nosso país mostra que as jabuticabas criaram grandes empresas muito antes da IA. Quantas não explodiram de vender mais que a gigante alemã de ERP por lidarem de forma adequada com as "jabuticabas" fiscais do nosso querido sistema tributário?
Em IA, o jogo começa com dados e hardware. Passa para um modelo poderoso (próprio, open source ou terceirizado) e segue para a criação de valor muitas vezes como aplicações.
Em hardware, dificilmente um brasileiro vencerá a Nvidia ou chegará próximo de competir no GPU chips business. Mas e em dados e nos modelos alimentados por esses dados? Quais novas empresa brasileiras surgirão que façam uma queda de braço de gente grande com gringos vendendo em nosso quintal que até possam ter o melhor modelo do mundo, mas treinados em outro contexto, cultura, realidade, que não traz mesma qualidade?
O dilema (e armadilha) de produto ou serviço?
Um fato real: empresas brasileiras craques em IA que focaram seu modelo em serviço e não em produto, viraram consultorias. Conheci algumas brilhantes, mas que não decolaram com seus produtos por falta de foco. Desenvolveram um produto para cada dor que o cliente trazia e não um produto para uma dor de mercado.
O serviço é uma grande tentação em uma empresa de tecnologia, porque seu cliente dificilmente tem bons recursos disponíveis em software e AI e é esperado que estejam te contratando para resolver um importante problema próprio.
Ofertar serviço dá dinheiro, tem margem boa, mas a dose de alocação para construir produto versus oferecer serviço é um defining moment. Entre desenvolver para resolver uma dor para um cliente ou para o bem geral de uma nação, eu optei e recomendo a segunda opção.
Muitas empresas não percebem esse erro de rota: imaginam construir um business que se propõe a desenvolver um produto, mas na prática prestam serviços. Isso acontece normalmente pelo fato de que o serviço traz receita mais rápido (e margem) e demanda menor investimento do que construir um produto. Só que isso pode destruir o futuro do seu produto.
Muitas empresas não percebem esse erro de rota: imaginam construir um business que se propõe a desenvolver um produto, mas na prática prestam serviços
Um dos ingredientes de nossa fórmula era saber dizer não. Ou saber dizer sim, mas que seja, como brinco com clientes, para o "bem geral da nação". IA é uma ferramenta e precisa de um piloto. As empresas de serviço fornecem os pilotos e as estruturas organizacionais para eles saberem pilotar suas máquinas. Já as empresas de IA products, fornecem as ferramentas.
Em casos de grandes contas, oferecem também um time reduzido de serviço, com "freio de mão puxado" para não virar um novo negócio, para atenderem bem, aprenderem e depois escalaram esse serviço por um ecossistema de parceiros. Onde você quer estar nesse ecossistema?
Falta de integração da academia com a iniciativa privada
Não tem como você desenvolver Inteligência Artificial, de verdade, sem ter uma proximidade com a academia. E, infelizmente, no Brasil a conexão entre empresa e ambiente acadêmico não é costume, diferente de como funcionam os negócios nos Estados Unidos.
Lá fora você tem professores catedráticos de IA de Stanford sentados em cadeiras de empresas e profissionais de empresas palestrando na academia. Você tem investimentos absurdos da iniciativa privada no âmbito acadêmico e a academia produzindo, com praticidade, recursos para as empresas. Ou seja, uma simbiose.
No Brasil, hoje, isso é muito difícil. A academia tem o interesse de formar material científico, mas com uma janela média de dois ou três anos para elaboração. O timing acadêmico não acompanha a necessidade de lançamento de produtos das empresas. Lembro de um caso em que uma instituição acadêmica pediu até royalties do produto para desenvolvê-lo, afastando qualquer oportunidade de parceria.
Outro ponto importante é que o que acontece dentro de um laboratório, não necessariamente reflete a realidade do mercado. Não adianta você ter o classificador de sentimento do estado da arte em português, treinado com a base de livros do Harry Potter, enquanto o que a gente precisa é fazer uma análise efetivamente sobre os produtos da Samsung e da Apple. Infelizmente esse é o normal.
Em quase 10 anos trabalhando com IA, conto em uma mão e poucos dedos quantos laboratórios existem em universidade com "gente que faz"
Em quase 10 anos trabalhando com IA, conto em uma mão e poucos dedos quantos laboratórios existem em universidade com "gente que faz". Conversando certa vez com um professor empreendedor de um desses laboratórios raros e brilhantes, ele me disse que foi suado fazer esse modelo acontecer, com inovações pra valer, casadas com desafios reais de negócio. E ele brincou: aqui não apelidamos o que inventamos por "jabuticabas", mas por "tomadas de três pinos".
Contratações off-road
Um amigo me escreveu esses dias perguntando: “Rodrigo, onde você achou seus devs de AI?”. Minha resposta foi: “na mina de ouro de Ouro Preto”. Curioso, ele então adicionou: “como?”. E a minha nova resposta trouxe: "Foi mérito do meu cofounder, muito hábil em farejar talentos com profundidade técnica e princípios diretos, em criar um bootcamp que testava o conhecimento na prática e sobretudo a vontade da pessoa somar ao time, e conseguir escalar esse processo”.
Mas talento do Milton à parte, aprendemos também que existem talentos em IA em qualquer cidade do Brasil. Provamos isso fazendo pra valer de Ouro Preto. Sêniores? Nem sempre, mas com potencial para voarem rápido sob a supervisão de líderes seniores.
E fato é que se tivéssemos começado nossa contratação pelos salários de São Paulo, não teríamos crescido na velocidade que crescemos e tampouco penso que o economics teria fechado. Descobrimos, felizmente cedo, o potencial do "off-road" e recomendo para todos que estiverem atrás de talentos.
Modelos: construir, comprar ou aliar?
O caminho mais fácil para criar um protótipo e testar uma proposta de valor é via adoção de soluções "out-of-the-box". E cresce a oferta de empresas com essa proposta em IA Generativa. Desde Open AI e Anthropic até Scale AI e outras em camada acima de orquestração. Mas e quando a conta não fecha?
Explico. No negócio que criamos, chegamos a processar mais de 60 milhões de publicações por dia. Cada publicação precisaria passar por uma série de consultas de um modelo de IA para resumir textos, analisar sentimentos, classificar assuntos abordados e etc.
Se fossemos pagar uma big tech para isso, o custo superaria mais de R$ 20 milhões de anuais em modelos de IA e nossa história não teria vencido o primeiro ano. O que fizemos: seguimos o modelo "família italiana", que faz a massa em casa, planta o próprio manjericão e segue a receita da nonna sem industrialização.
Seguimos o modelo "família italiana", que faz a massa em casa, planta o próprio manjericão e segue a receita da nonna sem industrialização
Criamos nosso próprio motor de IA (mais especificamente NLP - Processamento de Linguagem Natural) e investimos uma boa parcela do capital disponível em P&D para avançar este modelo AI.
No cenário global de IA generativa, vemos uma série de empresas captando dezenas ou centenas de milhões de dólares para construírem seu próprio modelo. E não se assustem: destinando às vezes 80% desses recursos para aluguel ou compra de hardware.
A discussão de IA não é apenas uma discussão de código. É uma discussão também de infraestrutura. É um caminho que assusta muitos, mas, muitas vezes, é o único caminho.
O fundamental é investir tempo na avaliação no trilema “make, buy or ally”, em termos de construção de modelos e infraestrutura. Ou seja, o que eu construo, compro pronto ou terceirizo. E a resposta provavelmente não será sim ou não para cada parte do trilema, mas em qual percentual distribuímos nossas fichas.
Pelo custo para a maioria proibitivo de contratação de hardware, devemos ver em 2024 a discussão esquentar em torno de "buy closed source" versus "evolve over open source". Essa análise da relação custo-benefício entre fazer o modelo ou contratar o modelo vale no tempo algumas dezenas de milhões para quem está investindo em IA.
E é uma resposta com poucos fatos e dados para decisão - até porque os modelos open source são uma novidade recente. Ele ainda não entrega a mesma qualidade dos pioneiros pagos, nem a mesma segurança, mas pode em certos casos já oferecer uma qualidade mínima o suficiente para criar entregas de valor a custos muito menores.
O mérito vai para dois casos interessantes de open source que surgiram nos últimos dois meses. O Falcon 180b, criado pelo Tecnology Innovation Institute, em Abu Dhabi, e o Code Llamma, criado pela Meta. Ambos, superaram o GPT da Open AI em alguns benchmarks acadêmicos realizados mercado afora.
Quem tem potencial para ser o primeiro investidor de uma empresa de AI no Brasil?
O senso comum diz que para iniciar uma empresa de tecnologia é necessário muito capital e um investidor externo. Ainda mais em IA. Mas nem sempre isso é verdade e nem foi no nosso caso. Nosso primeiro financiador foram nossos próprios clientes.
Entendíamos a dor, propúnhamos a solução no formato de produto (e não serviço, sem exclusividade e orientado a uso futuro de outras empresas do mesmo setor), combinamos um prazo de entregas graduais e uma mensalidade recorrente atrelada. Morávamos em clientes líderes de mercados grandes o suficiente e que bancavam o crescimento do produto, ganhando vantagens de opinar de perto no seu desenho (maior chance de sair do jeito que queria) e com prioridade de acesso (acessar antes dos concorrentes).
Existem clientes que são adeptos ao risco por inovação e os que são conservadores em todos os setores. Esses clientes que são adeptos à inovação contribuem para produzir um produto de perto, eles gostam de apoiar, eles sabem que vai ter uma vantagem competitiva mais cedo e mesmo que ela não seja exclusiva para ele, ele sabe que os outros conservadores vão levar mais tempo para adotar.
Em IA generativa, principalmente na arena de desenvolvimento de aplicações verticais/horizontais B2B, me parece que a fórmula segue possível. Se você consegue criar essa máquina de entrega de valor financiada pelo cliente é o começo para nascer "Bootstrapped" - que toca a operação com recursos próprios, sem demandar investimento de fora.
Resumindo o "caminho de ouro"
A literatura de empreendedorismo em software diz que se começa um negócio partindo da identificação de uma grande dor de mercado e atacando-a com uma solução brilhante de produto e tecnologia. Agora, como fazer quando você começa por ter uma bela tecnologia em mãos?
Ainda mais em um mercado onde a tecnologia muitas vezes surge primeiro e para sair na frente precisamos seguir o caminho antilógico de sair atrás do problema, para que no final, tenhamos sucesso com uma bela tecnologia como ingrediente da solução de um enorme problema. E digo isso com alguns motivos de razão.
Em um momento, paramos para refletir em retrospectiva o que fizemos certo ou erramos em construir aplicações nativas em IA. E esse "jeito certo de fazer" apelidamos de "caminho de ouro" por trazer o maior valor e também lembrar nossa origem "made in Ouro Preto".
- E ao longo desse artigo, compartilhei tudo que encontramos nesse "trem mineiro":
- Importantes "jabuticabas" descobertas, em dados e especialização do modelo.
- Decisão certeira de construir nossa própria AI, "estratégia família italiana"
- Recrutar "off-road" por todo Brasil em trabalho remoto
- Ter o cliente como principal financiador do crescimento
Começar pelo serviço e uma tese clara de potencial de produtização, com combinados claros com o cliente de servir o "bem geral da nação" e no acerto de entrega de valor escalar a produtização.
Espero que as dicas acima sirvam para você avaliar investir em IA, empreender, intraempreender ou investir em negócios de sucesso calcados nessas novas tecnologias. Minha opinião é que está na mesa uma grande oportunidade para empresas encontrarem suas "jabuticabas" e optarem por crescer seguindo este "caminho de ouro".
*Rodrigo Helcer é acionista e advisor na Blip. Também atua como mentor e conselheiro de empresas sobre Inteligência Artificial e Software as a Service (SaaS) e desenvolvimento de mercados B2B. Sumidade no tema Inteligência Artificial no Brasil, o executivo desenvolveu e construiu por 9 anos um produto de IA, a STILINGUE, da qual é cofundador.