O novo fenômeno brasileiro é um programa de auditório daqueles bem popularescos, típicos da televisão aberta. Sua apresentadora, uma senhora, veste apenas maiô e salto alto. Debochada, ela zomba de tudo e de todos. Seria apenas mais uma atração de formato tão conhecido no País, não fosse por um detalhe: nada ali existe no mundo físico.

Marisa Maiô, a plateia, os convidados, a equipe de produção, o cenário... foi tudo criado por inteligência artificial. E seria apenas mais uma "brincadeira" viral da internet se Marisa Maiô não tivesse "saído" do virtual para o real.

Frente ao sucesso estrondoso da personagem criada pelo escritor e artista carioca Raony Phillips, a apresentadora de mentira "firmou" parcerias de verdade com marcas como Magazine Luiza e OLX. Com tiradas de humor, Marisa Maiô foi a estrela das promoções do Dia dos Namorados das duas empresas.

Em uma das peças, a apresentadora pergunta: "Nem todo mundo está namorando no dia dos namorados e a Lu, do Magazine Luiza, está aqui conosco.... Você está namorando, minha filha?" Ao que a IA da gigante do varejo responde: "Imagine, minha menina. Eu, com essa inteligência artificial toda, não preciso de ninguém, não. Vou fazer o que todo solteiro ama: comprinhas online com cupom no app Magalu". Bingo! Marisa Maiô está entre nós.

O frenesi em torno do avatar enseja reflexões mais profundas para além da constatação (estupefata) do hiper-realismo cada vez maior dos vídeos gerados pela IA. Até onde vai a convergência entre a inteligência artificial e a inteligência humana?

Na visão de Diulhio Candido, cientista do Venturus, instituto de tecnologia com pesquisa em IA, o ponto-chave da audiência está na simplicidade e qualidade das produções.

“Isso é muito relevante, pois não são mais necessários equipamentos caros, elenco ou locações para produzir conteúdo de qualidade”, diz Candido, em entrevista ao NeoFeed.

Marisa Maiô, por exemplo, foi criada com a nova versão da IA de geração de vídeos do Google, o Veo 3. Com ele, o usuário apenas descreve em palavras o que quer criar, usando os famosos prompts, e recebe seu vídeo de alta qualidade em minutos – e até segundos. Além dele, plataformas como Sora, da OpenAI, e Gen-3, da Runaway, também criam conteúdos semelhantes.

Para Enricco Benetti, Co-CEO da BFerraz, agência do ecossistema B&Partners, a tecnologia utilizada não importa tanto, já que o que realmente engaja é a ideia.

“A IA virou palco, mas o roteiro continua sendo o espetáculo. Conteúdos como os da Marisa Maiô são construídos com inteligência narrativa, respeitando a lógica de uma fórmula perecível, com começo, meio e fim, pensada para performar intensamente e sair de cena no momento certo”, afirma Benetti.

“Isso mostra que a relevância continua dependendo da capacidade de ler a sociedade, interpretar os códigos culturais e construir narrativas com intenção”, complementa.

Produzido por humanos

Em 2024, o primeiro comercial integralmente feito com IA foi apresentado no Festival Internacional de Criatividade Cannes Lions 2024. Feito com o Sora, a peça conta a história de Charles Lazurus, fundador da rede americana de brinquedos Toys "R" Us.

“A IA abriu um novo território de possibilidades, com produções mais rápidas, personalizáveis, e com um custo significativamente menor. Ela permite que a criatividade seja testada, ajustada e escalada de forma dinâmica, o que dá às marcas muito mais agilidade”, diz Benetti.

Na visão dos especialistas, um ponto deve ser frisado: a interferência humana segue sendo a guia desses avanços e, sem ela, não seria possível desenvolver nenhum conteúdo. Como afirmou Raony Philips ao Fantástico, da Globo: “Sem o texto e a parte humana, o programa não teria virado tudo o que virou”.

"Esse paradoxo é o que torna esse novo momento tão fascinante. Em meio à abundância de estímulos, o que realmente fica é aquilo que gera identificação e emoção. E isso, mesmo num cenário altamente tecnológico, continua sendo produzido por humanos com sensibilidade e escuta ativa da sociedade”, afirma o Co-CEO da BFerraz.

"O bom daqui é que não tem segurança"

Isso não exclui, porém, os desafios. Segundo Benetti, existe o risco de saturação estética, questões éticas importantes sobre direitos de imagem e voz, além do risco de perder densidade quando se prioriza apenas o impacto visual em detrimento do conteúdo. Sem contar o possível impacto sobre o mercado de trabalho.

A IA desesperada pede um pix de R$ 55 mil para voltar para a casa da mãe e comer um sanduíche

Inteiramente produzida por IA, a propaganda da rede americana de brinquedos Toys "R" Us foi apresentada no festival de Cannes 2024

No artigo Efeito Marisa Maiô: o absurdo virtual invade a cultura real e gera novos desafios éticos e comerciais, publicado na plataforma The Conversation, Juliano da Silva Borges, pesquisador de pós-doutorado do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), questiona.

"Mas o que acontece quando os vídeos adentram um território onde os limites não são mais técnicos, mas essencialmente éticos? Programas de auditório popularescos têm histórico de transgredir essas fronteiras, criando deliberadamente uma zona cinzenta entre entretenimento e informação, com quadros sensacionalistas, apelos emocionais exacerbados e a frequente banalização da violência, tanto verbal quanto física".

Em um dos quadros citados como exemplo pelo pesquisador, duas "convidadas" brigam. “O bom daqui é que não tem segurança e a gente não separa", vibra a apresentadora. Para Juliano, além da ambiguidade entre simulação e realidade, o episódio revela algo mais preocupante, "isto é, como o absurdo, quando apresentado de forma frequente e convincente, pode contribuir para sua naturalização na sociedade, tornando-se socialmente aceitável".

A verossimilhança das produções geradas pelas novas ferramentas é a evolução de tudo que vem sendo desenvolvido com a inteligência artificial ao longo dos últimos anos. O que até recentemente eram apenas avatares toscos agora nos confundem. O que levanta uma outra questão: como reconhecer esse tipo de conteúdo?

Candido, do Venturus, achou brechas na tecnologia: “Apesar da qualidade dos vídeos gerados, ainda há algumas falhas perceptíveis. A IA tem dificuldade de respeitar as leis da física, justamente por não ter conhecimento sobre isso. Assim, ainda é possível ver vídeos com sombras inconsistentes, reflexos que não fazem sentido, e movimentos de cabelos e tecidos de forma pouco natural”.

Para os olhos ainda mais treinados, ele afirma que é possível perceber diferenças nas texturas de pele, que passam um aspecto de artificial, além dos trejeitos mais robotizados, com expressões faciais rígidas e olhares vazios ou pouco naturais. Além disso, vídeos criados por IA costumam ter pouca variação de fundo, ponto ainda complexo para a tecnologia.

"Eu sou real"

O fato é que não é possível apenas acreditar em tudo que se vê, já que esses conteúdos têm sido criados em todos os tamanhos, cores e formatos.

Assim como o deepfake, essa tecnologia possibilita a disseminação de notícias falsas e golpes. “Isso pode causar uma grande crise de autenticidade, onde podemos chegar ao ponto em que ninguém mais sabe o que é real ou não”, diz Candido.

Uma forma de garantir a segurança das pessoas é a conscientização sobre essas ferramentas e conteúdos.

Mas hoje também existem tecnologias que podem ajudar, como a obrigatoriedade de sinalizar que um conteúdo foi gerado por IA, marca d'água padronizada, ou o C2PA, completa o especialista.

Mas, mesmo com todas essas informações, alguns vídeos chegam a causar desconforto, como aqueles nos quais personagens criados por IA são confrontados com a revelação de que eles não passam de uma construção algorítmica. "Eu sou real. Se eu estou aqui e você me vê, eu sou real. Me faça real", desespera-se o avatar de uma jovem.

Também feminino, outro, chorando na praia, pede: "Eu quero voltar para a minha casa, mas meu marido me abandonou. Você pode fazer um Pix de R$ 55 mil para eu voltar para a casa da minha mãe e comer um sanduíche?"