De uma bebida “masculina” e “bruta” para uma mais “feminina” e “sofisticada”, a cachaça de alambique está passando por transformações sem precedentes. Cada vez mais apurada — a partir do tempo de guarda em tonéis de madeiras especiais como umburana e carvalho americano — o destilado nacional avança sobre paladares mais delicados e dedicados.

Dados oficiais do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) revelam que existem 1.266 estabelecimentos de cachaça registrados do Brasil, um crescimento de 33% em sete anos. Eles estão em todas as regiões do país: Sudeste (828), Nordeste (189), Sul (183), Centro-Oeste (52) e Norte (14) — Minas Gerais é disparado o estado com mais estabelecimentos (501).

Para além dos números oficiais, há, segundo produtoras, uma busca cada vez maior de mulheres pela bebida de excelência, a partir do aprendizado contínuo em clubes e confrarias próprias. Parte das mais premiadas cachaçarias no país é administrada por mulheres, que estimulam com responsabilidade o consumo feminino do destilado.

“É um movimento claro por produtos com identidade, e isso conversa com o consumo de cachaça por mulheres”, diz Elk Barreto, sócia e gestora da Sanhaçu, alambique tradicional de Pernambuco. Os preços de uma boa cachaça variam de R$ 70 a R$ 700. “É o mercado real. Mas o céu é o limite”, brinca a empresária, que viaja pelo país para divulgar a cachaça.

“Tem cachaça de R$ 10 mil e edição de colecionadores que daria para comprar uma Land Rover. Mas não adianta cobrar caro sem entregar valor, principalmente para mulheres exigentes”, diz Elk, que é também diretora-executiva da Associação Nacional dos Produtores e Integrantes da Cadeia Produtiva e de Valor da Cachaça de Alambique.

A entrada das mulheres no universo da cachaça, tanto como produtoras quanto como consumidoras, tem mudado o próprio conceito da bebida. “Elas têm ocupado lugar de fala e de ações, permitindo a liberação de desejos e a aproximação livre com os mais diversos produtos”, diz Fernanda Melo, arquiteta paraibana e integrante da “Confraria da Lapada”.

Entusiasta e militante da divulgação da cachaça como uma bebida “genuinamente nacional”, Fernanda presta consultoria a empreendedores. Ela acredita que a aceitação do público feminino está ligada à versatilidade do destilado. “É bebida adulta que permite experiências desde degustações em doses puras a drinks, além de variações saborizadas.”

A cachaça é o principal item de estudo da professora Maria das Graças Cardoso, titular do Departamento de Química da Universidade Federal de Lavras (UFLA). No trabalho, ela avalia a qualidade do destilado, investigando a origem de eventuais contaminantes. Maria das Graças coordena o curso de pós-graduação lato sensu Tecnologia da Cachaça.

O curso treina e capacita profissionais para atuarem no mercado da bebida, promovendo também treinamento para produtores. “É engrandecedor trabalhar com o nosso povo na melhoria de uma bebida brasileira, colocando a cachaça num patamar de igualdade a bebidas produzidas em outros países. É a pesquisa aplicada diretamente à extensão.”

A cachaça, segundo Rosana Ross, mineira e sócia do Alambique Santíssima, é uma bebida única por ser consumida pura, tal como sai do alambique. “Isso não acontece com outro destilado de maneira tão constante.”. Para a empresária, que também integra a Confraria Mulheres da Cachaça, o destilado além de tudo é versátil. “Pode ser harmonizado com todos os tipos de pratos, desde peixes, massas e carnes.”

Cachaça da Sanhaçu, alambique tradicional de Pernambuco gerido por Elk Barreto (Foto: Divulgação)

A pernambucana Carol Macedo é sócia da cachaçaria Triumpho (Foto: Divulgação)

A característica particular da cachaça nas harmonizações é um pontos fortes da bebida na busca por mercado sofisticado e mais feminino, segundo a pernambucana Carol Macedo, sócia da cachaçaria Triumpho. “A estratégia para buscar o mercado feminino é oferecer experiências sensoriais completas”, explica a empresária, que aposta em rótulos próprios para mulheres.

"Apostamos na valorização da mulher no processo produtivo, desde a produção até a comunicação, em edições especiais com design próprio e em eventos e espaços onde o protagonismo feminino é celebrado", afirma Macedo. “A cachaça atrai quando apresenta suavidade, equilíbrio e história, numa conexão afetiva com o que é artesanal e autêntico.”

Estigma

No Brasil, há 7.233 cachaças registradas, o que revela variações de produtos. “Há várias bebidas de qualidade que hoje para nós tem um nome próprio: cachaça de alambique”, diz Dirlene Pinto, economista mineira e produtora da Germana. Nas feiras e eventos que participa pelo país, Dirlene dedica atenção especial às mulheres.

“Antes a mulher chegava num bar e se quisesse pedir uma cachaça tinha que ser escondido, pedir em nome do namorado ou do marido, havia um estigma, um preconceito”, lembra Dirlene. “Hoje isso mudou. A mulher já não tem vergonha de pedir uma cachaça, isso foi uma conquista de produtoras e de consumidores".

Existe uma diferença entre o paladar masculino e feminino? “As madeiras são como maquiagens para a cachaça e o paladar é muito pessoal, porém noto que a amburana, por ter notas adocicadas e remeter à memória afetiva de mobílias antigas, de avós, é mais aceitas pelas mulheres”, diz Fernanda Melo. "O carvalho também é bem aceito".

Todas as entrevistadas pelo NeoFeed ressaltaram a responsabilidade com a saúde e o consumo. “As ações de marketing precisam ter responsabilidade e limites, não apenas relacionado aos riscos para a saúde, mas na utilização da imagem da mulher de forma vulgar e pejorativa, remetendo a conceitos negativos para a bebida”, afirma Fernanda.

“Há uma necessidade de estimular o consumo consciente. No caso das mulheres, é preciso ainda mais cuidado com mensagens que possam romantizar o consumo excessivo ou reforçar padrões estéticos irreais”, diz Carol Macedo. A cachaça pode sim estar inserida em experiências gastronômicas, mas com cuidado e ética sobre os riscos do álcool.”

“Marketing nenhum pode ignorar o fato de que o álcool, quando consumido em excesso ou de forma irresponsável, traz riscos”, acredita Elk Barreto. “E com as mulheres isso se agrava: desde a metabolização mais lenta até os impactos hormonais, emocionais e, em muitos casos, sociais”, completa ela, que, diz, "o limite é a ética".

“É papel do produtor lembrar que o consumo deve ser moderado. Isso não diminui o poder do produto, ao contrário, fortalece, mostra um compromisso com o impacto que isso tem na vida das pessoas”, afirma Elk. “A cachaça deve ser valorizada como produto cultural, nunca como solução para um problema emocional ou ferramenta de autoafirmação.”