O ano de 2020 foi, no mínimo, atípico. A pandemia acelerou em muito as coisas que já estavam acontecendo. Na prática, trouxe o que provavelmente aconteceria em torno dos próximos cinco anos para o dia de hoje.

A pandemia não criou novas tecnologias, mas a aceleração digital que provocou trouxe consigo uma mudança de comportamento. Antecipou muitos anos em poucos meses. Fez com que o futuro chegasse de repente.

As mudanças de hábitos e comportamentos são irreversíveis e a base para a construção do cenário que podemos chamar de “novo normal”. Não vamos voltar ao que era antes, mas esse “novo normal” de hoje é o que estaríamos fazendo normalmente daqui a cinco anos.

Nesse contexto, a inteligência artificial apareceu com destaque. Já estávamos testemunhando muitas e rápidas evoluções em pesquisa e desenvolvimento, mas observávamos também, infelizmente, uma lentidão na sua aceitação e disseminação nas empresas.

À exceção das que têm IA como seu “core”, como Amazon, Google e outras digitais por natureza, a imensa maioria das empresas ainda usa IA ainda de forma simples e concentrada em experimentações em laboratórios e protótipos.

Para muitas dessas, o “top of mind” de aplicação de IA é chatbot, concentrando-se na automação das centrais de atendimento e service desks. Muitas dessas aplicações trazem sim, resultados positivos, e com o aumento expressivo da demanda causada pela pandemia, conseguiram ajudar as empresas que fizeram bons projetos a obter mais rapidamente o retorno de seus investimentos.

Entretanto, a maioria dos chatbots em operação aqui no Brasil tem baixo nível de sofisticação para suas respostas automáticas, passando qualquer interação que seja mais complexa que um típico Q&A para atendentes humanos. Estima-se que cerca de 2/3 das solicitações acabam caindo no atendimento humano, pois o chatbot não consegue compreender adequadamente a solicitação.

A IA só vai realmente decolar nas empresas quando estiver pautada na agenda do CEO e do board. Lembram-se da evolução do nível de adoção dos ERP e da computação em nuvem? Só decolaram quando o assunto saiu do âmbito da TI e de grupos de inovação e labs, para ser tópico importante na agenda dos executivos.

Mas, por causa da pandemia e a aceleração digital que ela provocou, a IA já está começando a quebrar a barreira das desconfianças e já vemos iniciativas mais ousadas, além dos chatbots, começando a aparecer. Em muitas empresas o assunto já chegou na agenda do board e do CEO!

A IA já está começando a quebrar a barreira das desconfianças e já vemos iniciativas mais ousadas, além dos chatbots, começando a aparecer

A pandemia nos trouxe muitas lições quanto ao uso da IA. A rápida mudança de comportamento dos usuários nos seus hábitos de compra com a aceleração do comércio eletrônico (no início, papel higiênico e álcool gel, seguido por alimentos e bebidas; depois, por brinquedos e, mais tarde, por equipamentos de tecnologia e fitness), provocou pane nos algoritmos supervisionados de detecção de fraudes, supply chain e recomendações para os clientes.

Eles não tinham sido treinados para este cenário! Mudanças abruptas causam distorções nas repostas dos algoritmos supervisionados, pois não são contempladas nos seus dados de teste. Por outro lado, os chatbots, mesmo com deficiências, conseguiram ajudar as empresas a lidar com o aumento significativo da demanda dos usuários, muitos do quais neófitos em compras digitais.

Aos poucos começa a ficar mais delineado que IA não é apenas uma tecnologia, mas uma tecnologia transformadora, uma tecnologia que muda e molda a sociedade, como o fizeram a eletricidade e o motor a combustão interna.

Sua disseminação vai ocorrer à medida que o nível executivo a considere prioritária e sua capacidade de utilização não fique restrita à especialistas com PhD, mas que possa ser usada de forma bem mais democrática.

Nas inúmeras consultorias, conversas e palestras que faço com executivos tenho observado alguns sinais de maturidade, que são muito positivos. Extraí aqui alguns tópicos que já vejo serem debatidos em algumas empresas:

1) As empresas começam a se preocupar com governança de dados. IA não é apenas sobre algoritmos, mas dados são a principal fonte de suprimento. Um algoritmo excelente, sem dados, é como motor sem combustível ou com combustível de baixa qualidade. Não vai funcionar.

2) O conceito de “Responsible AI”, que envolve ética, preocupação com segurança e privacidade dos dados e minimização de vieses já começa a permear algumas discussões nas empresas.

3) Executivos já começam a ter a percepção que IA não é apenas chatbot ou melhoria da experiência do cliente, mas pode afetar de forma substancial não apenas o modelo de negócios, mas o “operating model” das organizações. Já começamos a ver sinais que o senso de urgência quanto à adoção da IA já está sendo ativado.

4) Disseminar IA na empresa não é apenas contratar alguns cientistas de dados, mas demanda estratégia, organização, evangelização e educação por todos os níveis funcionais.

5) A infraestrutura tecnológica e questões de desempenho não podem ser ignorados quando IA sai do lab e entra em produção. IA demanda investimentos.

6) A pandemia mostrou que as coisas estão aceleradas e que as iniciativas de IA já não podem ser postergadas.

7) O atual estado da arte em IA é o que chamamos de “narrow AI”, ou seja, a IA na prática não é inteligente, mas aparenta ser. Isso significa que um algoritmo faz bem uma única coisa. A combinação de diversos algoritmos com outras tecnologias como RPA (RPA não é IA!) pode trazer resultados muito positivos. Portanto, ficar esperando por uma IA “inteligente” é perder tempo e a pandemia mostrou que tempo é o que não temos!

8) Escassez de dados é um fato e nem todas as empresas têm a infra e o dinheiro de um Google ou uma Amazon para treinar algoritmos sofisticadíssimos. Portanto, começar com projetos menores e menos ambiciosos é o caminho mais adequado.

Não é necessário começar com modelos complexos, mas modelos mais simples como regressão linear, support vector machines, K-nearest neighbors, e naïve bayes podem ser treinados com volumes menores de dados. Existem também técnicas como geração de dados sintéticos, “federated learning” e “self-supervised learning” que podem ajudar muito.

9) IA não vai substituir o trabalho humano, mas complementá-los e expandi-los, salvo tarefas que são robotizáveis em sua totalidade. Mas, para isso, nem é preciso IA. Os ascensoristas foram substituídos por sistemas computacionais que não usam IA. Mas a interação entre máquinas e humanos deve merecer atenção das áreas de RH, que provavelmente passarão se denominar Robôs e Humanos. RH deve estar engajado nas estratégias de IA da organização.

10) Governança de IA é um assunto debatido quando se planeja a disseminação da IA pela empresa. Cada organização, pela sua cultura e característica operacional, vai definir seu próprio modelo, se centralizado, descentralizado ou federado. Não existem receitas de bolo aplicáveis a todas as empresas igualmente. Cada uma vai chegar a seu próprio modelo e ajustá-lo continuamente, à medida que mais e mais ganhe experiência com uso de IA.

11) Ter infra própria ou usar IA como serviço? O uso de IA como serviço em nuvem é extremamente útil nas fases de experimentação e criação de protótipos. Mas a disponibilidade de instâncias especializadas com chips de hardware otimizados para IA e grandes quantidades de armazenamento de dados torna o ambiente de nuvem também bastante adequado para as organizações criarem e implantarem em operação aplicativos de IA sem os riscos, custos e atrasos da aquisição de infra própria.

Outro fator a considerar é a demanda por skills menos especializados. Claro, que nem tudo é maravilhoso e você tem que discutir alguns aspectos como os que o uso de serviços de IA implicam em menos controle do que o desenvolvimento interno e o acesso à modelos complementares será limitado, reduzindo a personalização e o refinamento.

Não ignore seus requisitos de privacidade. O uso de serviços de IA envolve passar seus dados a terceiros. Isso está de acordo com suas políticas de governança de dados? Você sabe se este terceiro retém uma cópia dos seus dados e os utiliza para outros fins? Como nas APIs, você cria uma relação de dependência.

Pode ser muito caro migrar para outro provedor de IA como serviço, dadas as dependências e os custos de transferência de dados. Os serviços de IA oferecem uma maneira rápida e flexível de desenvolver soluções sob medida, a um custo menor do que a criação de uma equipe interna. Podem ser alternativas ideais para prototipagem. Mas, se você precisar de mais controle, flexibilidade, autonomia e propriedade intelectual, estes serviços não serão a solução.

12) Escassez de talentos é um problema real. A demanda por talentos em IA é crescente e existe um abismo entre demanda e oferta, com diversas funções disponíveis para cada profissional de IA verdadeiramente capacitado.

A IA abrange diversas atividades e muitas delas exigem competências avançadas em matemática, estatística e programação. Mas, além das habilidades técnicas, cada vez mais, os profissionais envolvidos em projetos de IA devem ter conhecimento do domínio do negócio, para interpretar os dados adequadamente e fornecer recomendações relevantes; e experiência em engenharia de software, para desenvolver soluções que funcionem no mundo real.

A combinação de competências técnicas, setoriais e de engenharia exigidas dos profissionais de IA limita o tamanho do pool de talentos e faz com que seja necessária uma equipe diversa. Não existe ninguém que seja bom em tantas e diversas áreas de conhecimento.

13) E, falando em talentos, a questão é: como recrutar? Para evitar contratações errôneas, faça uma descrição eficaz do trabalho que será demandado do(a) profissional de IA, enfatizando os projetos em que ele(a) vai se envolver, habilidades e impacto para o negócio.

Como sugestão para uma melhor definição do “job description” de cargos como “ML engineer” ou data scientist, faça uma busca no Google para as vagas oferecidas pelas empresas de tecnologia, como Google, Amazon, Microsoft e outras, que poderão servir de benchmark e orientação.

Ao contratar, verifique se você compreende a função, a experiência e os requisitos mínimos para os quais está contratando. Se sua equipe usa exclusivamente Python, e Tensor Flow como framework, e você tem pressa, não contrate alguém que só trabalha com R e nunca usou Tensor Flow. A falta de habilidades afetará seus custos diretamente, pois os indivíduos vão levar algum tempo para aprender novas tecnologias.

Descreva os projetos nos quais o candidato selecionado trabalhará. Eles se relacionam com visão computacional, processamento de linguagem natural ou manutenção preditiva? Use os termos padrão de matemática e estatística, como classificação, regressão, clustering, GAN, CNN e RNN para facilitar a compreensão. Descreva a expectativa para a função, bem como a dificuldade dos problemas a serem resolvidos.

14) Um sinal de maturidade é quando o assunto “entrada em produção” de modelos de IA passa a ser um tema importante. Um sistema de IA colocado em produção é diferente de um ERP tradicional. Neste, assim que ele se torna operacional, você o deixa quieto, sem tocar mais nele. “Não mexa, se mexer estraga!”.

Já em sistemas de IA, depois que um modelo é implantado, seu comportamento deve ser monitorado. Espera-se naturalmente que o desempenho preditivo de um modelo diminua com o tempo à medida que o ambiente muda.

Esse fenômeno, conhecido como “concept drift”, ocorre quando as distribuições dos recursos de entrada se afastam da distribuição na qual o modelo foi originalmente treinado. Ou seja, os dados que foram usados para treinar o modelo são agora diferentes do contexto real dos dados que entram para o modelo operar.

Uma vez detectado este desvio, ele pode ser reajustado treinando novamente os modelos de aprendizado de máquina. Mas, detectar a deriva através do monitoramento, é difícil, às vezes só sendo observado após dias, semanas ou meses de sua entrada em operação. O fato desse assunto fazer parte das discussões sinaliza que a empresa já está enfrentando problemas em produção, sinal de maturidade no uso de IA.

Entretanto, muitos desses pontos ainda são debatidos de forma superficial. Notei nas conversas uma carência de maior aprofundamento em aspectos fundamentais como:

1) Uma estratégia e visão claramente definida de como e quando usar IA, que priorize e alinhe as iniciativas de IA com as estratégias e propostas de geração de valor para o negócio.

2) Engajamento da alta organização e do CEO com as iniciativas de IA. A alta administração tem que ser o “sponsor” de fato destas iniciativas, para sair das discussões no board, obter budget adequado e começar a agir.

3) Política de contratação de talentos e formação e reciclagem dos atuais profissionais. Na maioria das vezes o RH não está envolvido adequadamente nas estratégias de IA e só é acionado para fazer buscas no Linkedin. Mas, sem estar envolvido nas estratégias, fica difícil especificar perfil de talentos que serão necessários.

4) Escolha do ferramental adequado. Muitas vezes a escolha é muito mais influenciada pelo apelo comercial do fornecedor da tecnologia e não pela aderência à estratégia de IA que a empresa quer adotar.

5) A governança de dados é muito mais falada que implementada. A sua ausência implica que na hora em que os sistemas de IA começarem a serem implementados vão fazer falta os protocolos e check-lists que garantam níveis adequados de dados, em volume, variedade e qualidade para que os algoritmos precisam para serem treinados.

A pandemia acelerou o interesse pelo uso de IA. Dos chatbots começaremos a ver aplicações mais sofisticadas, permeando toda a organização. Aos poucos começa a cair a ficha do significado que o CEO da Microsoft, Satya Nadella, que dizer quando expressou que “AI is the ‘runtime’ that is going to shape all what we do”.

IA vai transformar a natureza da operação das empresas e será parte do “novo normal”

IA começa, aos poucos, a se disseminar e ocupar espaços cada vez maiores nos próprios fundamentos operacionais da empresa. O desafio não é tecnológico, mas cultural. Recomendo a leitura do artigo “Building the AI-Powered Organization”, publicado pela Harvard Business Review, que ajuda a entender esses desafios e como contorná-los.

IA vai transformar a natureza da operação das empresas e será parte do “novo normal”. Portanto, nada mais normal que comecemos agora a priorizar nossa estratégia de IA.

*Cezar Taurion é VP de Inovação da CiaTécnica Consulting, e Partner/Head de Digital Transformation da Kick Corporate Ventures. Membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA. É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral, PUC-RJ e PUC-RS.