Paris - O cineasta dinamarquês Nicolas Winding Refn, vencedor de melhor direção no Festival de Cannes, em 2011, com sua obra policial “Drive”, vive dizendo que o “cinema está morto”. Pelo menos da forma que o conhecíamos. “A boa notícia é que o cinema foi ressuscitado pelo streaming e por métodos gratuitos de distribuição nas mídias sociais”, afirma o cineasta. A declaração de Refn, atenuando a própria avaliação de que o “cinema morreu”, ajuda a entender sua mais recente iniciativa.

Aos 48 anos, ele criou uma plataforma gratuita de streaming só para filmes raros e esquecidos, restaurados exclusivamente para o formato digital. Usando as iniciais de seu nome e sobrenome, o diretor de Copenhague batizou-a de byNWR. Desde agosto, ele apresenta pelo menos um clássico restaurado a cada mês. Tudo com a curadoria de um editor convidado que se encarrega de um conteúdo original em torno do filme, como ensaios, vídeos, fotografias, músicas e análises da obra.

O lema da plataforma já entrega o seu intuito: Culture is for everyone (Cultura é para todos). “Como os filmes são coisa do passado, ou seja, objetos de museu, a ideia foi criar uma espécie de museu de filmes para as gerações futuras, falando a língua dos jovens”, afirmou Refn ao NeoFeed, em encontro realizado com a imprensa, na Cinemateca de Paris. “É a geração das minhas filhas, que não desgrudam de seus smartphones”, conta ele, pai de Lola, de 16 anos, e Lizzie, de 10 anos, frutos da união com a documentarista e atriz Liv Corfixen.

“Se Instagram, Twitter e outras coisas que minhas filhas usam são todas de graça, por que não fazer algo gratuito de cinema também?”, diz Refn, que pensou em disponibilizar raridades por ser colecionador de filmes antigos. De preferência, obras “estranhamente pessoais”. Sua biblioteca contém atualmente mais de 200 títulos, trazendo trabalhos de diretores renegados por Hollywood, como Curtis Harrington (1926-2007) e Andy Milligan (1929-1991).

E é, de fato, por pura paixão pelas relíquias da Sétima Arte que Refn se engajou em criar a plataforma e tirar dinheiro do próprio bolso para que isso virasse realidade. Quando Mike Vraney, o fundador da distribuidora Something Weird Video, morreu, em 2004, o cineasta dinamarquês comprou a sua coleção, especializada principalmente no gênero conhecido como “exploitation” (cinema apelativo).

Nicolas Refn, vencedor de melhor diretor no Festival de Cannes, quer levar cultura para todos

“Sempre tive obsessão por colecionar coisas difíceis de achar, sobretudo filmes. Como compro bastante, muitas vezes não sei o fazer com aquilo, deixando tudo no porão. Minha mulher fica brava comigo. Para ser sincero, byNWR nasceu de um ultimato dela. Ou você faz algo com isso ou joga tudo fora, disse ela”, diz o diretor, rindo.

Um dos filmes disponíveis no momento é “A Noite do Terror” (1961), em que o cineasta Curtis Harrington conta a história de mulher misteriosa suspeita de ser uma sereia assassina. Nas noites de lua cheia, é ela quem provavelmente atrai os marinheiros para a morte, incluindo o personagem de Dennis Hopper (1936-2010), em início de carreira. “Conheci pessoalmente Curtis, que infelizmente morreu desapontado com a sua carreira. Mas, para mim, esse filme é um dos mais importantes do movimento pré-contracultura”, conta Refn.

A mesma fascinação ele sente por “The Nest of the Cuckoo Birds” (1965), produção de terror assinada por Bert Williams e disponível na plataforma. Ator de mais de 40 produções, inclusive em “Os Suspeitos” (1995), Williams só conseguiu dirigir um único filme em toda a vida. “Trata-se de uma obra estranha, de um gênero difícil de identificar, por trazer horror, melodrama e sexo”, diz Refn, acrescentando que Williams tinha “obsessão e megalomania admiráveis”. “O nome dele aparece nos créditos mais do que o meu nos filmes que faço”, brinca ele.

Do próprio bolso

É o próprio Refn quem financia a restauração 4K dos filmes da plataforma, em parceria com o Harvard Film Archive (responsável pelo restauro), com o serviço de streaming MUBI e com a Milan Records, que cuida da trilha musical dos projetos.

A verba usada não vem necessariamente dos filmes de Refn, também conhecido por “O Guerreiro Silencioso” (2009), “Só Deus Perdoa” (2013) e “Demônio de Neon” (2016). É mais com o cachê de seus trabalhos publicitários, para marcas como Gucci, H&M, Lincoln e outras.

Refn até tentou levantar fundos para as restaurações. Mas, ao informar que os filmes estariam disponíveis de graça, os potenciais investidores desistiram da ideia. “Sempre soube que o alicerce da byNWR seria inspirar a criatividade sem cobrar nada por isso.”

“Sempre soube que o alicerce da byNWR seria inspirar a criatividade sem cobrar nada por isso”

O cineasta paga por acreditar que haverá uma forma de monetização nesse conceito. “O próprio cinema nasceu como uma expressão artística. Ninguém fazia dinheiro antes de o filme se tornar uma mercadoria.”

A gratuidade é uma espécie de moeda da vida moderna, na visão de Refn. “No futuro, milhões de dólares poderão ser gerados na gratuidade. Mesmo que leve um bom tempo, haverá alguma oportunidade de monetizar o que é oferecido sem custo.”

O importante para o diretor é aceitar a coexistência do cinema com o streaming, que veio para ficar. Ele mesmo já está se aventurando pelo serviço. Desde o dia 14, uma série policial de dez episódios criada e dirigida por Refn está disponível na Amazon Prime Video. “Too Old to Die Young” segue os passos de um policial (interpretado por Miles Teller) que se mostra afetado pela morte de seu parceiro, enquanto combate o submundo do crime em Los Angeles.

“Nunca fui um cara viciado em TV. Mas a internet me fez enxergar uma forma diferente de contar histórias. Gosto da ideia de construir algo em capítulos, que podem ser vistos combinados ou desconectados, como vemos no YouTube”, afirma Refn, que começou a pensar na série para a Amazon enquanto rodava o filme “Demônio de Neon”. “Todos já diziam que o streaming seria a nova galinha dos ovos de ouro. Para mim, representa a oportunidade de realizar um filme de 13 horas, coisa que seria impraticável no cinema.”

"Para mim, o streaming representa a oportunidade de realizar um filme de 13 horas, coisa que seria impraticável no cinema”

Pela experiência com conteúdo para serviços de streaming e com a própria plataforma de streaming de filmes raros, como Refn vê o trabalho do cineasta no futuro? “Estamos caminhando para o self-streaming, a fronteira final para o artista do audiovisual.

Já imaginou o diretor rodar um filme todo em casa e fazer a transmissão ao vivo?”, diz ele, lembrando que não adianta o cineasta da velha guarda se apegar a um mundo desintegrando em suas mãos. “Nostalgia nesse caso é o mesmo que suicídio artístico.”

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