Um dos traços do caráter do empresário americano Jeff Bezos é evitar a autocomplacência, a ponto de subestimar as próprias façanhas e esbanjar humildade quando fala em público.

Seu physique du rôle ajuda no papel de suposto sabotador de si próprio: um cinquentão de cabeça raspada, os olhos esbugalhados, estatura mediana (1,71 metro) e um riso estridente – ou irritante, para muitos que trabalham ou trabalharam com ele.

Eis aí o homem mais rico do mundo. Sua fortuna é estimada US$ 188 bilhões, segundo a Bloomberg. Bezos fundou, em 1995. a loja virtual Amazon, em Seattle, e construiu ao longo de mais de duas décadas um império empresarial, que hoje inclui estúdios de cinema e televisão (inclusive a recém-adquirida MGM), complexos de desenvolvimento digital, uma indústria de aeronaves e um jornal.

O personagem surge em cores hiperrealistas no livro “Amazon sem limites – Jeff Bezos e a invenção de um império global”, do jornalista Brad Stone, lançado no Brasil pela editora Intrínseca (512 páginas, tradução de Isabel Pacheco, Livia de Almeida e Regina Lyra), duas semanas depois do lançamento nos Estados Unidos.

Brad Stone revela tantos detalhes da vida profissional e privada do personagem que o biógrafo parece privar de sua intimidade. “Nunca o encontrei”, diz o Stone, em entrevista ao NeoFeed. “Mas tive a oportunidade entrevistar muitas pessoas que trabalharam com ele. Assim formei um perfil desse verdadeiro mestre do universo.”

É a segunda obra de Stone sobre o tema. A primeira, “A loja de tudo”, de 2013, mostrava a Amazon, hoje avaliada em US$ 1,6 trilhão, quando ainda não tinha dado o salto rumo à criação de protótipos eletrônicos como a Alexa (que Bezos batizou inspirado na célebre Biblioteca de Alexandria) e à incorporação de empresas de alta e baixa tecnologia – ele comprou naquele mesmo ano o jornal The Washington Post, salvando-o da ruína - Stone não teve tempo de incluir a proeza no livro.

“Narrei então a típica história de sucesso de um empresário que começou com uma lojinha virtual de livros na garagem de casa, em Seattle”, diz Stone. “No novo livro, quis mostrar que forma Jeff tomou conta do mundo dos negócios, subvertendo-o, e se igualou em poder e influência às grandes corporações tecnológicas, como Google, Facebook e Microsoft.”

“Amazon sem limites” também descreve a metamorfose de uma personalidade complexa. Até chegar ao primeiro lugar nas listas de maiores fortunas do mundo, em 2017, Bezos defendia a discrição, mostrava-se avesso às celebridades e prezava a vida familiar, ao lado da mulher, Mackenzie Scott, e de seus três filhos.

Mas logo assumiu o visual de “herói de ação do mundo empresarial”, como escreve Stone. O obsessivo geek largadão que só se interessava por livros e cinema passou a vender a imagem de chefão dos negócios: torso malhado, óculos escuros e roupas de grife. Só não alterou a lâmina de sua língua, nem a forma brutal de tratar seus comandados.

Em 2019, em mais uma reviravolta surpreendente, divorciou-se de Mackenzie após um casamento de 25 anos. Então assumiu o relacionamento com a apresentadora de televisão e pilota de helicóptero Lauren Sanchez. Ele se reinventava.

O livro "Amazon sem limites"

Desde o início da carreira, Bezos, hoje com 57 anos, costuma inverter as expectativas e de surpreender os interlocutores com atitudes intempestivas e frases de lancinante pessimismo – comportamento que passou à cultura de suas empresas. “Ele é cruel”, afirma Stone. “Mas essa crueldade é vista como um incentivo por seu staff.”

Foi armado dessa persona que ele agradeceu o prêmio Retrato de Uma Nação, outorgado em novembro de 2019 a seis personalidades americanas pela Smithsonian’s National Portrait Gallery, em Washington. A cerimônia de gala aconteceu na galeria, com a presença de celebridades. Na ocasião, foram inaugurados seis retratos de figuras de destaque. Uma delas representava Jeff Bezos.

Agradeceu à honraria com seu jeito rotineiro com um autorretrato revelador: “Minha vida é baseada numa grande série de erros. Sou meio famoso por isso no mundo dos negócios. Quantas pessoas têm aqui o Fire Phone?”

O público caiu na gargalhada, com a menção da invenção eletrônica mais fracassada de Bezos, campeã de devoluções na Amazon cinco anos antes. “Cada coisa interessante que fiz, cada coisa importante, cada coisa importante, cada coisa benéfica, passou por uma cascata de experimentos, erros e fracassos. Isso me cobriu de cicatrizes.”

As marcas fizeram com que ele administrasse suas empresas de uma forma tenaz e impiedosa. Os seus comandados mais próximos sabem que nunca devem contar vantagens sobre um projeto ou um evento, sob pena de serem alvos daquilo que chamam de “jeffices”, frases de efeito que doem no ouvido, como esta, que repete nas reuniões.

“Desculpe, será que tomei minhas pílulas de estupidez hoje?” Eles riem amargamente, mas veem nisso uma estratégia para obter resultados extraordinários e atingir metas aparentemente impossíveis.

“Ele não tem piedade da concorrência nem dos funcionários de baixo escalão”, diz Stone. “Os galpões da Amazon repletos de produtos que se proliferam pelo mundo estão cheios de operários descontentes. Ele desconsidera feriados, fins de semana e até as idas ao banheiro são cronometradas.”

Bezos tem lutado e imposto derrotas aos sindicatos e desagradado ao governo federal, além dos governos locais, sempre em busca de impostos sobre serviços, que Bezos naturalmente abomina pagar. Democrata, combateu Trump e apoiou Joe Biden.

Quando os funcionários de um armazém na Virgínia ameaçaram fazer greve por melhorias nas condições de trabalho, em março de 2021, tratou de demitir os líderes do movimento. Hoje, só a Amazon conta com cerca de 650 mil funcionários.

Seu legado, pensa Stone, foi ter inovado com uma cultura corporativa incomum e descentralizada, na qual metas e responsabilidades são compartilhadas pela base da organização. Uma de suas regras de conduta interna é unir dois elementos que muitos consideram inconciliáveis: velocidade e eficiência. A pressa e a perfeição brigam entre si, mas são obrigadas a apresentar resultados e a cumprir metas.

“No âmbito mundial, Bezos alterou para sempre o comércio varejista, o armazenamento, a circulação e a agilidade na entrega dos produtos”, afirma Stone. “Isso expandiu a livre iniciativa a níveis incontroláveis.”

A Amazon precipitou a falência das livrarias e do comércio local no mundo inteiro, e promete continuar assim, ainda que com mais descontração, agora que Bezos deixou a presidência para Andy Jassy. seu velho colaborador. “Jassy é um tipo mais caloroso, talvez ele mude um pouco o clima da empresa”, supõe Stone.

A concorrência teme as novas iniciativas de Bezos, em setores como aviação e vigilância eletrônica, entre outros. Munido de sua filosofia empresarial intuitiva, baseada em tentativa e erro, parece não se intimidar com limites.

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