Fazer previsões é algo de altíssimo risco, como o físico ganhador do Prêmio Nobel, Niels Bohr, observou certa vez: “Predição é muito difícil, especialmente se for sobre o futuro”. Mas alguns insights podem ser compartilhados, por conta e risco de quem os ler. É isso que vou tentar fazer aqui nesse post.

No meu entender, 2021 será um ano de transição. Salvo qualquer nova catástrofe inesperada (a própria Covid-19 foi uma!), todos nós, como indivíduos, empresas e sociedade, devemos olhar para a frente e buscar moldar o futuro, em vez de apenas trabalhar no presente.

O próximo normal vai ser diferente. Não vamos voltar às condições que prevaleciam em 2019. Na verdade, assim como os termos "pré-guerra" e "pós-guerra" são comumente usados para descrever o século 20, as gerações vindouras provavelmente discutirão as eras pré-Covid-19 e o pós-Covid-19.

Alguns estimam que nos próximos anos poderemos ter um novo “roaring twenties”, fase da sociedade após o fim da Primeira Guerra Mundial e da pandemia da gripe espanhola de 1918.

Os “roaring twenties” ou “Felizes Anos Vinte”, em uma tradução livre, é um termo usado para se referir à década de 1920 como um período de efervescência cultural em cidades como Nova York, Chicago, Paris, Berlim, Londres e em muitos outros grandes centros, durante uma época de sustentada prosperidade econômica. Pode acontecer sim, mas nem sempre a história se repete, pois os contextos de cada época são diferentes. Veremos...

É fato que alguns setores foram profundamente afetados, como a aviação comercial. Vemos, entretanto, recuperação dos voos domésticos, de turismo, em diversos países, como aqui no Brasil, embora as viagens internacionais ainda estejam muito restritas.

Por definição, as viagens de lazer são discricionárias. As viagens de negócios são muito menos, mas são mais lucrativas para empresas aéreas e a rede hoteleira. Por exemplo, 70% das receitas globais dos hotéis de luxo são oriundas das hospedagens para negócios.

Durante e após a pandemia, porém, surgiu uma nova questão sobre essas viagens de negócios: exatamente quando é necessária? Quase certamente não será tão necessária quanto antes. As videochamadas e as ferramentas de colaboração que permitem o trabalho remoto, por exemplo, podem substituir muitas reuniões e conferências que eram realizadas presencialmente.

Como dizia Platão, a necessidade é a mãe das invenções. Durante a crise da Covid-19, vimos um enorme e acelerado crescimento na digitalização de tudo, desde atendimento ao cliente online até o trabalho remoto, reinvenção da cadeia de suprimentos e o uso mais intenso de inteligência artificial (IA) para melhorar as operações.

A saúde também mudou substancialmente, com a telemedicina e a biotecnologia ganhando forte impulso. Avançou-se dois anos em dois meses. Novos e inovadores negócios começam a surgir e provavelmente veremos uma disrupção mais intensa em todos os setores, o que vai abrir espaço para empreendedores.

A digitalização é algo que não vai voltar atrás. A grande aceleração no uso de tecnologia, digitalização e novas formas de trabalho vai ser o novo patamar dos negócios.

A crise da Covid-19 tornou imperativo que as empresas reconfigurassem suas operações, tornando-as digitais, mas também está abrindo a oportunidade de transformá-las.

A digitalização apressada e obrigatória (por sobrevivência) foi apenas o primeiro passo. Nos próximos anos veremos sua consolidação e aperfeiçoamento, com redesenho das operações e até mesmo dos atuais modelos de negócio.

Quando a economia se estabilizar em sua próxima normalidade, o tal “novo normal”, pode-se esperar no curto prazo uma reacomodação dos setores atuais, mas o que vai mudar ao longo dos próximos anos serão as dinâmicas dentro e inter setores, que tenderão a se transformarem significativamente.

Em recessões anteriores, os fortes saíram mais fortes e os fracos ficaram mais fracos, faliram ou foram comprados. O que fará diferença agora será como a empresa se tornará mais veloz, ágil, elástica e resiliente (a capacidade não apenas de absorver choques, mas de usá-los para construir vantagem competitiva).

O que fará diferença agora será como a empresa se tornará mais veloz, ágil, elástica e resiliente

Ao longo da próxima década, com as disrupções nos modelos de negócios estabelecidos e o fim das atuais fronteiras que delimitam os setores tradicionais, as empresas que não conseguirem, por si, fazerem as transformações, serão as que sofrerão. Basicamente, se você não for o disruptor, será o disruptado.

A pandemia também revelou as vulnerabilidades das longas e complicadas cadeias de suprimentos globais. Quando um único país ou mesmo uma única fábrica fechava, a falta de componentes críticos paralisava a produção. Veremos, provavelmente, um reequilíbrio, um processo de desglobalização.

Um fator que levou a criação dessas redes globais era o custo menor da mão de obra em países como China e Índia. A adoção de tecnologias digitais e uso mais intenso dos princípios da Indústria 4.0 (ou seja, a aplicação intensiva de dados, analytics, interação homem-máquina, IA, robótica avançada e impressão 3-D) podem compensar o diferencial do custo de trabalho nesses países e incentivar à volta para casa das indústrias que foram exportadas.

Outra mudança significativa foi no trabalho. Da obrigatoriedade de presença física em escritórios para o “working anywhere” é uma mudança que veio para ficar.

Antes da crise da Covid-19, a ideia do trabalho remoto estava em debate, as tecnologias já existiam, mas não havia maiores incentivos ou disposição para fazer acontecer.

A pandemia mudou isso, com dezenas de milhões de pessoas sendo obrigadas a fazer a transição para trabalhar em casa. Provavelmente veremos modelos híbridos, com uso de escritório quando necessário e não de forma compulsória, como antes.

Mas o “working anywhere” apresenta novos desafios. Um é decidir o papel do próprio escritório, que sempre foi o centro tradicional para a criação de cultura corporativa e sentimento de pertencimento.

As empresas terão que tomar decisões sobre praticamente tudo, desde imóveis (precisamos deste prédio, escritório ou andar?) ao projeto do local de trabalho (qual o formato das salas e quanto espaço entre as mesas?), até o treinamento e desenvolvimento profissional (como fazer mentoria remota e manter viva a cultura da organização?).

Voltar ao escritório não será uma simples questão de abrir a porta. É necessário repensar o que exatamente o escritório deverá trazer de benefícios para a organização.

Na esteira desse redesenho, cresce a necessidade de recapacitação dos funcionários, para se tornarem “fluentes digitais”. O digital vai fazer parte do conhecimento básico de praticamente qualquer função profissional.

Um setor que já começou a mudar, mas que veremos se transformar radicalmente nos próximos anos será a medicina, que passará pelos mesmos impactos e transformações que a tecnologia digital provocou nas indústrias fonográficas e de mídia.

A pandemia foi o ponto de partida para uma aceleração maciça no ritmo da inovação médica, com a biologia encontrando a tecnologia de novas e inovadoras maneiras.

Não apenas o genoma Covid-19 foi sequenciado em questão de dias, em vez de meses, mas a vacina foi lançada em menos de um ano, uma realização surpreendente, dado que o desenvolvimento normal costuma levar uma década.

A urgência criou impulso e fez com que ciências e disciplinas diversas como bioengenharia, sequenciamento genético, computação, análise de dados, automação e IA, se unissem.

Três artigos mostram muito bem quão impactante pode ser a combinação de uso de tecnologias digitais para a fabricação de vacinas. Um é AI puts Moderna within striking distance of beating Covid-19 , o outro We Had the Vaccine the Whole Time e recomendo também o imperdível Reverse Engineering the source code of the BioNTech/Pfizer SARS-CoV-2 Vaccine.

Esses artigos mostram que estamos saindo com uma grande vitória: a capacidade de codificar e implantar mRNA arbitrário em nossos corpos é certamente uma virada de jogo, pois nos permite essencialmente programar nossas células para fazer quaisquer proteínas que quisermos.

No caso das vacinas Covid, a carga útil da vacina instrue nossas células a fazer a proteína das espículas do coronavírus, que nosso sistema imunológico aprende a atacar. As espículas na superfície do vírus são estruturas proteicas em forma de pontas, que compõem uma espécie de coroa (daí o nome corona, que é coroa em latim).

O uso de inteligência artificial no desenvolvimento de novos medicamentos também está se acelerando e o artigo DeepMind’s protein folding solution — what just happened? mostra como a DeepMind conseguiu avançar substancialmente no desafio de resolver a questão do dobramento da proteína. Também escrevi um ebook abordando o uso da IA em saúde, que pode ser acessado, para download free, aqui.

O desenvolvimento das vacinas contra a Covid-19 é apenas um exemplo do que podemos chamar de “Bio Revolução”. Estamos no início de sua curva de aprendizado. Por exemplo, tecnologias de edição de genes poderiam reduzir radicalmente a malária, que mata mais de 250.000 pessoas ao ano.

As terapias celulares podem reparar ou mesmo substituir células e tecidos humanos danificados. Novos tipos de vacinas podem ser aplicados a doenças não transmissíveis, incluindo câncer (Unlocking the potential of vaccines built on messenger RNA) e doenças cardíacas.

Mas, o potencial da Bio Revolução vai muito além da saúde: até 60% dos insumos físicos para a economia global poderiam teoricamente ser produzidos biologicamente.

Os exemplos incluem agricultura (modificação genética para criar safras resistentes ao calor ou à seca ou para lidar com condições como deficiência de vitamina A), energia (micróbios geneticamente modificados para criar biocombustíveis) e materiais (seda artificial e tecidos autorregeneráveis).

O potencial da Bio Revolução vai muito além da saúde: até 60% dos insumos físicos para a economia global poderiam teoricamente ser produzidos biologicamente

Essas e outras inovadoras aplicações poderão potencialmente gerar trilhões de dólares em impacto econômico na próxima década.

A pandemia foi uma catástrofe econômica e humana e ainda está longe de terminar. Provocou uma verdadeira e dramática reestruturação na ordem econômica e social do planeta. Mas com as vacinas começando a ser lançadas, é possível ser razoavelmente otimista de que o novo normal surgirá neste ano ou em 2022.

Minha expectativa é que aprendemos a duras penas com os erros e acertos. E que, de certa forma, esse novo normal poderá ser melhor que o de antes da Covid-19.

O que precisamos? De boas lideranças, tanto de empresas quanto de governos, para que as mudanças que discutimos acima se tornem a base para um futuro melhor no longo prazo.

Cezar Taurion é VP de Inovação da CiaTécnica Consulting, e Partner/Head de Digital Transformation da Kick Corporate Ventures. Membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA. É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral, PUC-RJ e PUC-RS.