História em quadrinhos é coisa de criança, certo? Errado. Já foi, há mais de um século. Desde a década de 1930, quando surgiram as primeiras revistas do gênero nos EUA e no Brasil – antes as histórias só saiam em jornais –, que passaram a vender centenas de milhares de exemplares, o mercado procurou expandir o público para adolescentes e adultos.

Até que, a partir de 1978, Will Eisner, criador do herói mascarado The Spirit (1940), criou um termo para definir a longa história autobiográfica “Um Contrato com Deus”, sobre sua família e os primeiros anos nos guetos de Nova York: graphic novel. A obra despertou o interesse da crítica especializada em alta literatura e alterou o rumo daquele segmento editorial.

Eisner tinha feito algo sofisticado e profundo, em que casava um texto mais elaborado, poético, delicado e carregado de emoção, combinando-o perfeitamente com a força de seus desenhos sobre o universo miserável da mais famosa metrópole americana.

Estava aberta a porta para a invasão das graphic novels na década de 1980, impressas em cores e em papel de alta qualidade, principalmente pelas editoras de super-heróis Marvel e DC, que se encontravam numa encruzilhada, com seus super-homens já bem desgastados junto aos leitores e carentes de renovação.

O novo formato, para o público universitário e adulto, poderia nem dar certo porque beleza (gráfica) por si só não se sustenta ou põe mesa, como diz o ditado popular. Felizmente, jovens talentos da escrita dos gibis estavam dispostos a contribuir nesse experimento e foram além.

Entre 1982 e 1987, nomes como Frank Miller, Alan Moore e Neil Gaiman, entre outros, conceberam algumas das obras mais influentes da cultura pop do século XX. E o mundo das artes de massas nunca mais foi o mesmo.

Com obras como “Batman – O Cavaleiro das Trevas” (Miller), “Watchmen”, “V de Vingança” (Moore) e “Sandman” (Gaiman), as livrarias absorveram as edições de luxo com capa dura e o cinema transformou por completo sua linguagem, com adaptações consagradas desses quadrinhos. É um fenômeno mundial, hoje totalmente estabelecido no Brasil – onde ganhou espaço nobre nas redes de livrarias – e está entre os gêneros mais vendidos a colecionadores.

Muita gente, claro, viu os filmes, mas não leu os quadrinhos originais. E por que não experimentá-los durante o recesso de fim de ano como leitura para entretenimento? Para quem gosta da ideia, basta conferir seis desses objetos de culto e veneração na comunidade geek que vão fazer sua cabeça:

1 – A Volta do Cavaleiro das Trevas (Frank Miller)

Lançada em 1986, em quatro volumes, a série é considerada revolucionária e a mais influentes dos últimos 30 anos por uma série de motivos. A começar pela sofisticação narrativa. São duas formas paralelas de contar a trama: a “real”, dita pelo autor, e aquela mostrada pela TV, no rodapé das páginas, algo inovador para a época. Mas é no modo como mostra Batman, envelhecido e ainda obcecado pelo assassinato dos pais, que Miller se consagrou.

Até então, heróis e super-heróis fantasiados eram infantiloides, limitavam-se a enfrentar vilões dementes que queriam dominar o mundo. Dessa vez, porém, após bastante tempo fora de ação, recluso e com 55 anos de idade, Batman decide voltar à ativa em um mundo caótico e sombrio do futuro em que ele não tem mais controle de nada. Tudo conspira para que dê errado e ele se mostra disposto a não ter escrúpulos para agir. Uma obra seminal.

2 – Watchmen (Alan Moore)

Sucesso no cinema no século XXI, a série em quadrinhos de 12 partes foi lançada originalmente entre 1986 e 1987. Desde então, é considerada uma das graphic novels mais influentes de todos os tempos. O rótulo de clássico se consolidou pela atualidade de um futuro distópico da história.

Escrita por Moore e desenhada por Dave Gibbons, a trama começa em 1985, em uma América totalitária e isolada do resto do mundo. A presença de arsenais nucleares e dos chamados super-heróis mantêm um certo equilíbrio entre as forças do planeta. Até que, como diz o autor, “o relógio do fim do mundo começa a marchar para a meia-noite e a raça humana caminha para um abismo sem-fim”.

Os protagonistas são os Watchmen, uma equipe de super-heróis diferente de tudo que se viu até aquele momento, com superforça, mas que vive dramas como qualquer humano comum. E eles podem estar na mira de uma conspiração para assassiná-los. Só unidos novamente, podem sair vivos. Para se ter uma ideia do reconhecimento dessa saga de final arrebatador, Watchmen foi considerada pela revista semanal Time uma das 100 melhores obras em língua inglesa de todos os tempos, incluindo clássicos da literatura.

3 – Camelot 3000 (Mike W. Barr)

Foi com essa série publicada entre 1982 e 1985, que a DC Comics inaugurou sua coleção de graphic novels. E de modo arrebatador. Como o título diz, a história se passa no ano 3000, com uma trama aparentemente manjada, em que alienígenas destrutivos promovem um ataque total à Terra com o propósito de conquistar o planeta.

Até que algo de mágico ou místico acontece: um menino tropeça na cripta do Rei Arthur, o lendário monarca e os Cavaleiros da Távola Redonda são magicamente reencarnados para salvar a humanidade de tão terrível ameaça.

E é assim que Arthur, Sir Lancelot, Merlin e seus cavaleiros clássicos enfrentam os extraterrestres invasores e seu líder perverso, a sedutora Morgan Le Fay, a meia-irmã de Arthur, sedenta de vingança, como se o tempo não tivesse passado.

O problema que transforma tudo em um terrível drama é inesperado e interessante: Sir Lancelot, outrora amante da rainha, volta no corpo não de um gigante guerreiro, mas na forma de uma sedutora e estonteante morena, o que vai causar uma série de complicações – e confusões – para as duas, em especial. Pela abordagem sexual, foi um escândalo em vários países e as cenas de sexo entre as duas acabaram censuradas no Brasil na década de 1980.

4 – V de Vingança (Alan Moore)

Outra obra consagrada de Moore por seu realismo e sofisticação literária, cheia de referências literárias e filosóficas, também foi escrita na década de 1980. A história se passa em uma Inglaterra do futuro, totalitária e assustadoramente realista para os dias de hoje – e que também foi levada às telas de cinema em 2005. A arte é de David Lloyd.

Tudo se passa uma década depois de sua publicação, em meio a uma nação controlada pelo fascismo, em que um misterioso e inteligente personagem decide se rebelar contra isso e passa a promover atentados terroristas com a finalidade de destruir o Estado, após uma guerra nuclear.

Nesse contexto, o governo tem o controle da informação (mídia), conta com uma polícia secreta violenta e repressora, criada para caçar cidadãos, e imensos campos de concentração para minorias raciais e sexuais estão espalhados por todos os cantos.

Moore teria se inspirado no que escreveu Hannah Arendt no seu livro "Origens do totalitarismo", de 1951. Outra influência, sem dúvida, é “1984”, de George Orwell, escrito em 1948, focado em um sistema de monitoramento por câmeras.

5 – Sandman (Neil Gaiman)

Desde a Idade Média, a figura do Homem da Areia, aquele que entra pela janela à noite para jogar pó das estrelas nos olhos das crianças – uma espécie de bicho-papão – está presente no imaginário dos povos nórdicos.

Celebrado em livros, letras de músicas e nas histórias em quadrinhos desde anos de 1930, o personagem foi recriado pelo escritor inglês Neil Gaiman de uma forma lírica e poética em que acaba por fazer uma profunda reflexão sobre a existência do indivíduo e a vida além do mundo real.

Ao longo de 75 episódios – disponíveis no Brasil em cinco luxuosos volumes de capa dura e que vai virar uma série pela Netflix –, Gaiman criou uma mitologia que adquiriu vida própria logo que entrou em contato com os leitores, tornando-se um clássico quase instantâneo.

O protagonista é Morfeus, um dos Perpétuos — criaturas análogas aos deuses –, que controla e tem acesso a todos os sonhos da humanidade e, portanto, de todas as criaturas capazes de sonhar. Enfim, é o senhor do Mundo dos Sonhos, a terra para onde todos vão quando adormecem. Instigante e imaginativo, sem dúvida.

6 – Um Contrato com Deus (Will Eisner)

Nessa novela gráfica tocante, o já veterano Eisner inspirou uma nova forma de arte, diferente de tudo que já havia sido visto e anunciou uma era em que cartunistas sérios foram libertados dos limites da história em quadrinhos para experimentar trabalhos mais autorais e introspectivos, a partir de elementos de sua própria vida.

Tudo começa quando Frimme Hersh, um judeu que segue à risca os ensinamentos de sua religião, vê-se a questionar seu relacionamento com Deus, após a terrível experiência da perda prematura de sua filha. Seu drama existencial, no entanto, está entrelaçado com os de outras pessoas, personagens secundários que Eisner soube criar de modo cativantes.

São todos moradores da Dropsie Avenue, versão ficcional de uma rua típica de Nova York ocupada por judeus e onde o próprio artista atingiu a maioridade no auge da Depressão Econômica dos anos de 1930 – ele nasceu em 1917.

Siga o NeoFeed nas redes sociais. Estamos no Facebook, no LinkedIn, no Twitter e no Instagram. Assista aos nossos vídeos no canal do YouTube e assine a nossa newsletter para receber notícias diariamente.