Otaviano Canuto representava o Banco Mundial no Grande Salão do Povo, em Pequim, em 2011, quando o então presidente chinês, Hu Jintao, anunciou o histórico “rebalanceamento” da economia da China, que levaria a uma aposta no aumento do consumo interno e ao que hoje está claro ser uma bolha imobiliária desafiadora.

Já era, e nunca deixou de ser, um participante ativo e privilegiado da cena global, que, hoje, acompanha como pesquisador sênior na Brookings Institution (não-residente) e no Policy Center for The New em Washington e no Marrocos, e diretor no Center for Macroeconomics and Development, em Washington. Ele alerta: o cenário internacional, hoje pouco amistoso para emergentes, não deixa espaço a invenções que aumentem a desconfiança dos investidores.

Ex-vice-presidente no Banco Mundial e no Banco Interamericano de Desenvolvimento, ex-diretor-executivo nos Banco Mundial e no FMI, Canuto lamenta, desde seus tempos de alto executivo em Washington, o que chama de combinação, no Brasil, entre uma anemia de produtividade e a obesidade fiscal: gastos mal calibrados, que não conseguem melhorar a capacidade produtiva do país, e, com isso, o condenam a ciclos instáveis de crescimento e queda. Enfrentar esse problema é prioridade para crescer, defende.

Ele acredita que a entrada de recursos externos nas bolsas, notável no começo do ano, deve refluir, com o “desastre” de gestão no governo Bolsonaro. Um dos fatores é a estratégia do governo, de minimizar a necessidade de ações práticas urgentes para melhorar nossa imagem em matéria de meio ambiente.

Canuto não está entre os mais pessimistas em relação à alta de juros nos EUA, que dificulta qualquer estratégia de retomada do crescimento por aqui. Mas não crê na recuperação em “V” louvada por Paulo Guedes.

Ele está entre os que enxergam cada vez mais próxima a possibilidade de eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e prefere apostar que a experiência política do candidato tem mais chances de fazê-lo repetir o governo de tons mais ortodoxos que marcou seu primeiro mandato. A seguir, os principais pontos da entrevista ao NeoFeed:

Já se prevê uma sucessão de até sete altas nas taxas de juros americanos, um dos desafios para os países emergentes como o Brasil. O que prevê o Otaviano Canuto?
Aposto em três ou quatro. Tivemos, no ano passado, choques de ofertas que ainda vamos assistir até o ano que vem, derivados das rupturas nas cadeias de valor, escassez de semicondutores, congestionamento nos portos que só estão se desfazendo gradualmente; e na Europa ainda tem um componente de preços de energia por conta da situação do gás, a crise na Ucrânia. Esses choques de custo, num contexto de demanda claramente aquecida, levam o FED a abandonar a ideia de choque inflacionário temporário e sinalizam um aperto. Botar muito peso só no controle da demanda pode ter um impacto pesado sobre vários setores; mas é claro que frear a demanda reduz, à frente, a velocidade dos choques de oferta; a rigidez nas respostas será menor.

E nós, no Brasil, como ficamos com esse cenário de contração econômica à frente?
Outro componente, o rebalanceamento (econômico) chinês, já implicava em acomodação da taxa de crescimento dos dois dígitos das décadas gloriosas do país; antes da Covid (os chineses) já estavam num ritmo que era de 6% com expectativa de declinar pouco a pouco, consequência de deixar de se basear só no crescimento do PIB, dar peso maior para o consumo de massa doméstico... A dúvida agora é a seguinte: para onde tende a acomodar o crescimento chinês, num perfil menos dependente, para o qual será menos importante a bolha imobiliária. Vai ser 4,5%, 5%? É mais baixa, de qualquer maneira. É nosso principal mercado e afeta o preço das commodities.

A China foi compradora de quase um terço de nossas exportações, e a Ásia, de quase metade. Não teremos esse fator de crescimento neste ano?
Vai continuar; talvez não no ritmo do ano passado; mas, como não antevejo crise, minha interpretação e de minha coautora Lusha Zhuang, ex-FMI, hoje no Banco dos Brics, especialista em setor bancário, é a de que o ajuste na economia chinesa e no mercado imobiliário não vai ser como (a falência de) um Lehman Brother (em 2008), que desabou levando vários junto; vai ter algum ajuste patrimonial, com breaking down assets (rebalanceamento de ativos), liabilities writing down (ajuste de preços de ativos) nessas instituições.

“A dúvida agora é a seguinte: para onde tende a acomodar o crescimento chinês, num perfil menos dependente, para o qual será menos importante a bolha imobiliária. Vai ser 4,5%, 5%?”

Não será explosão da bolha, mas uma implosão controlada...
Isso; é o cenário básico. Do ponto de vista do crescimento do PIB, não dará para contar com expansão do setor de propriedades nestes anos à frente.

Nesse cenário complexo, o Brasil está longe do foco das grandes economias?
Sim. Primeiro, temos um problema crônico de estagnação ou de baixo crescimento que contornamos quando as condições externas foram favoráveis e enquanto havia espaço de explorar outras formas de crescimento não dependentes de produtividade. É um problema crônico de anemia na produtividade, de décadas. Sem condições externas muito favoráveis, a tendencia de crescimento é baixa e talvez tenha piorado um pouco com a pandemia.

E além disso?
Segundo, temos um problema combinado a essa anemia de produtividade, de obesidade do gasto público. O gasto cresceu brutalmente nas últimas décadas, mas sua composição não está associada a fatores que aumentam a produtividade, o potencial de crescimento. Enquanto o gasto cresceu como proporção do PIB, de 22% em 1992 a 34% em 2014, os investimentos em infraestrutura ficaram abaixo de 2,5%. Gastamos com salário, com Previdência; se a produtividade estivesse crescendo, esses gastos públicos ficariam estáveis como proporção do PIB. Como reconfigurar o gasto público é o grande desafio. Enquanto isso não ocorre, o pessoal lá fora olha a tendência do crescimento do PIB, que está ruim, baixa. E é evidente que o governo Bolsonaro foi um desastre. No exterior, todos acompanham bem o que ele significa em termos de direitos humanos, sociais e meio ambiente.

A questão do meio ambiente está entre esses aspectos desastrosos?
Exatamente. Até porque não adianta observar que a matriz energética é limpa, mas na Amazônia ter uma contribuição extremamente negativa. As notícias do desmatamento, a divulgação do discurso e das ações do governo federal mostram bem o desastre. Não adianta dizer que o Brasil ainda tem o maior volume de florestas: o problema não é o estoque, é, na margem, a derrubada de nossa floresta amazônica estar dando contribuição altamente negativa na agenda da mudança climática. É isso que todo mundo está olhando.

“Não adianta dizer que o Brasil ainda tem o maior volume de florestas: o problema não é o estoque, é, na margem, a derrubada de nossa floresta amazônica estar dando contribuição altamente negativa na agenda da mudança climática”

Você não concorda que as manifestações sejam reflexo do protecionismo europeu?
É claro que o protecionismo europeu aproveita a oportunidade. Assim como os americanos. Mas tem uma legitimação política, um reforço, de evitar que eles próprios sejam canal de absorção dessa produção com base destrutiva, um incentivo para que o Brasil faça diferente. O mecanismo de ajuste na fronteira da Europa incorpora isso; estão unificando e encolhendo as autorizações de produção intensiva em carbono em áreas como alumínio, produtos metálicos e industriais, o que tornará licenças de produção mais caras para eles, e sabem que não adiante tentar fazer isso na Europa e comprar, fora, de quem não faz isso. Já existem mecanismos para aplicar tarifas de carbono ao Brasil, assim como há projeto nessa direção no Congresso americano.

Qual o cenário de recuperação que você nota, é uma recuperação em V?
É um sinal invertido de raiz quadrada: não é um V porque a economia brasileira não voltou à trajetória anterior: mesmo que o Brasil volte a crescer às baixas taxas de antes da pandemia, o que não vai ser em 2022, há uma perda que não vamos recuperar. O Itaú foi o primeiro a fazer a revisão para baixo da previsão do PIB, para 0,5%; o J.P. Morgan também projeta decréscimo de 0,5%; o BTG Pactual está em zero; e você olha o Boletim Focus, do BC e as análises de mercado convergem para valores ou em torno de zero, ou abaixo. O FMI também veio com número mais baixo. Enquanto muitos economistas estimavam o crescimento potencial do PIB em torno de 2%, pré-pandemia, isso é teto hoje.

Em 2022, houve melhoria na Bolsa e queda de dólar. É o Brasil barato ou há algo que estão vendo lá fora e nós não? Isso pode continuar?
Não nesse patamar. Na pandemia, diferentemente de outros emergentes, não houve retorno dos recursos que saíram; os números ficaram ruins até o fim do ano passado. Ninguém crê, ninguém tem confiança no governo Bolsonaro. Os desdobramentos já revelaram claramente que, ao invés de Paulo Guedes administrar Bolsonaro, Bolsonaro faz o que quer e Paulo Guedes aceita. Já se sabia que a prioridade de Bolsonaro seria a eleição; a dúvida é se ousaria jogar fora o teto de gastos como um todo. Hoje, por razões óbvias teremos um ano de muita volatilidade pela dúvida sobre onde vai Lula, o que fará. Será um Lula aventureiro como foi a política econômica de Dilma ou será um Lula mais parecido com o do começo, com o tripé macroeconômico reforçado?

Que condições um novo presidente tem de retomar o crescimento?
Espero que o governo Lula, caso eleito, tenha orientação macroeconômica na direção mais próxima ao do início de seu governo. Não é questão de ortodoxia ou heterodoxia: o desastre da gestão econômica na era Dilma foi que se elevou dívida, transferiu-se dívida para o BNDES e bancos oficiais para, por meio deles, financiar investimento privado na hipótese de que a economia entraria num loop e mudaria de patamar para um investimento mais alto em proporção do PIB. O problema, ali, é que as variáveis subjacentes à perspectiva de retorno do investimento privado já estavam apertadas por questão de custos salariais, baixa taxa de retorno do investimento industrial.

E...
Os salários reais crescentes, que funcionaram muito bem na equação do primeiro período de Lula, a partir de certo ponto tornaram-se exagerados e fonte de custo. O setor privado usou o financiamento subsidiado para trocar dívida. Como não havia as condições de atratividade maior para investimento dessas empresas, todo o processo da Nova Matriz Econômica significou transferência de dinheiro público para empresas que trocaram dívida cara por essa, mais barata. Deixaram como legado a dívida pública mais alta além de distorções como isenções tributárias e Dilma tentando conter artificialmente preços de petróleo e energia.

Mas quais as condições para o próximo governo?
O futuro vai depender se vai ser Lula 1 ou Dilma.

De um a cem, qual a chance você vê de termos de volta um Lula 1?
Eu aposto pelo bom senso, pela inteligência do Lula: 80% a 70%