Quando grupos de milícias rebeldes apoiadas pela Rússia declaram a independência de duas províncias no Leste da Ucrânia, em meados de 2014, as atenções se voltaram para a pequena cidade de Advievka. Sede da então maior coqueria da Europa, o temor era de que os crescentes e cada vez mais violentos combates destruíssem o imenso complexo industrial. Se Advievka parasse a produção, todo o setor siderúrgico europeu seria impactado.

A fábrica, um desses templos industriais faraônicos ao melhor estilo soviético, foi atingida diversas vezes pela artilharia dos dois lados do conflito. Mais de uma dezena de operários foram mortos e a pequena cidade que empresta o nome ao complexo industrial se transformou em um fronte de combates.

Mas a coqueria de Advievka sobreviveu graças a determinação e o desespero de seus operários. Com as casa destruídas e sob a constante ameaça de serem pegos no fogo cruzado, quase 3 mil deles decidiram ir morar nos abrigos nucleares construídos na década de 1960 no subsolo do complexo.

Quando estive em Advievka pela primeira vez, em 2015, no auge dos combates, era comum ver crianças correndo pelos corredores da usina. No lado de fora, operários corriam para abastecer os altos-fornos com o carvão mineral extraído há poucos quilômetros dali, nas áreas inimigas. Era uma cena surreal e com camadas e camadas de simbolismo.

Em pleno 2015, com toda a discussão em torno da transição energética já acalorada, uma fábrica que utilizava o mais poluente dos combustíveis fósseis seguia operando em meio as bombas para abastecer a indústria do mais desenvolvido dos continentes.

A lógica era simples. Sem coque, não havia ferro gusa. Sem ferro gusa, não havia aço. Sem aço, não haveriam os carros híbridos e elétricos que a indústria europeia começava a colocar no mercado. Sem carros elétricos, os países europeus não poderiam prometer zerar a emissão de poluentes nas próximas duas décadas.

Nada mudou

Passados sete anos, pouca coisa mudou em Advievka e na Ucrânia. A guerra segue viva no Leste do país, matando ucranianos de ambos os lados todos os dias. Já são quase 15 mil mortos nesse conflito. O que mudou agora foi apenas a escala, com a ameaça de Vladimir Putin de atacar e ocupar a Ucrânia para evitar que o país se aproxime ainda mais do Ocidente e se una a OTAN.

As mesmas razões, aliás, que fizeram o líder russo anexar a Crimea em 2014 e fomentar as guerras separatistas. Na Europa Ocidental, pouca coisa mudou também. Em 2014, Putin operou com relativa liberdade na Ucrânia por entender algo simples. Apesar das promessas de se tornar cada vez mais verde, a Europa ainda era absolutamente dependente da energia suja vendida pela Rússia.

Famílias de funcionários se mudaram para a coqueria de Advievka e passaram a morar nos abrigos nucleares da década de 1960 para manter a usina funcionando - Foto: Yan Boechat

Agora, dobra a aposta sabendo que esse cenário é ainda mais favorável. Mais do que nunca, a Europa depende da Rússia para manter suas fábricas operando e aquecendo os pés de seus cidadãos nos invernos frios. Ao fim e ao cabo, Putin parece ter certeza de que os mercados falarão mais alto do que os princípios democráticos. E ele parece ter razão.

Em meados de janeiro, em uma viagem a Ucrânia, o Secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, afirmara que a invasão russa era iminente e poderia começar em questão de horas. Poucos dias depois o barril do petróleo cruzou a barreira dos US$ 90 pela primeira vez em sete anos.

O estrategista global do Rabobank, Michael Every, previu que em caso de uma ação militar russa o preço do barril pularia instantaneamente dos já temidos US$ 90 para US$ 125. E foi além. No caso de os Estados Unidos aplicarem as severas sanções que vem prometendo, o preço do barril poderia chegar aos US$ 175 em questão de poucos meses e o preço do gás natural na Europa chegaria a inéditos US$ 250.

Vulnerabilidade Verde

A análise do estrategista global do Rabobank é fácil de se entender com uma rápida olhada nas matrizes de produção e consumo de energia da Europa. Ao longo da última década, os países mais ricos e desenvolvidos do continente têm se esforçado para reduzir de forma acelerada a produção de energia considerada suja, baseada em combustíveis fósseis.

A Holanda, maior produtora de gás natural do continente, vai registrar em 2022 a menor produção em décadas. O governo do país tem reduzido ano a ano a produção por questões ambientais. O consumo europeu, no entanto, não tem acompanhado a mesma tendência.

A Alemanha, a maior e mais importante potência econômica da União Europeia, é um bom exemplo. Em 2021 o país quebrou o recorde de produção de energia a partir de fontes renováveis: 40%. No entanto, o consumo ainda está baseado fortemente em combustíveis fósseis.

A coqueria de Advievka, movida a carvão, ajuda a manter em funcionamento algumas siderúrgicas do Velho Continente - Foto: Yan Boechat

No ano passado, apenas 16% de toda a energia consumida na Alemanha teve origem em fontes renováveis. Quase todo o resto teve como base os fósseis. E uma parte considerável deles veio da Rússia.

Hoje a Rússia responde pelo fornecimento de cerca de 35% de todo o gás natural consumido pela Europa. Na Alemanha, esse percentual sobe pra 40%. Em países do Leste da Europa, que estiveram sob a cortina de ferro soviética ao longo de toda a segunda metade do século 20, esse percentual pode chegar a 100%.

Segundo maior produtor de petróleo do mundo, a Rússia também responde por cerca de um terço de todo o consumo europeu. Um corte abrupto e prolongado no fornecimento de petróleo e gás russo a Europa jamais ocorreu, nem mesmo nos momentos mais tensos da Guerra Fria. Mas os tempos são outros.

Neste ano, a estimativa do j.p. morgan Chase é de que a Gazprom, a estatal russa de gás natural, tenha um lucro de US$ 90 bilhões com o fornecimento a Europa. Um salto enorme em relação aos resultados de 2021, que chegaram a US$ 20 bilhões.

Nos tempos soviéticos, essa seria uma receita impossível de ser ignorada. Mas Putin parece ter se preparado para um cenário como esse. O Banco Central russo amealhou nessas últimas duas décadas reservas superiores a US$ 600 bilhões, um colchão de tranquilidade para um bom tempo de turbulências econômicas.

Não é só petróleo

A Rússia, no entanto, não é apenas energia. O país é o maior exportador de trigo do planeta, com quase 20% da oferta mundial (a Ucrânia responde por outros 8% das exportações globais do cereal). Além disso, a Rússia também responde por 23% da oferta de amônia no mercado global, 17% do potássio, 14% da ureia e 10% do fosfato, todos ingredientes fundamentais para a produção de fertilizantes.

Para completar, cerca de 50% do níquel exportado no mundo é russo, assim como 26% de todo o alumínio. Apenas com as tensões crescentes, os preços dessas commodities têm atingido altas históricas. Em um relatório recente, o J.P. Morgan estimou que apenas uma alta do barril do petróleo para US$ 150 poderia reduzir o crescimento global para apenas 0,9% no primeiro semestre desse ano e jogar a inflação para 7,2%.

Enquanto a guerra se mantém na retórica, os mercados ainda parecem mais preocupados com as possibilidades nas altas de juros mundo afora. Mas, lentamente, o risco de um confronto com implicações globais na demanda e oferta de commodities tem mexido com os investidores.

Os títulos do Tesouro Americano para 10 anos registraram os maiores crescimentos desde 2016 e pela primeira vez desde 2019 os papéis do governo alemão saíram da casa dos 0%. Para muitos analistas, se os tanques de fato entrarem em ação, a corrida será exatamente em direção a títulos do governo. O que está acontecendo – e vier acontecer – no leste Europeu vai impactar o mundo todo. E as consequências não são nada boas.