O celular toca às 9h52, avisando que há novas mensagens no WhatsApp. A voz no áudio, um pouco tímida no início, é familiar. Ela fala sobre uma antiga história de amor que o período em isolamento social trouxe de volta à memória. Durante 12 dias, essa voz relembra alguns momentos, faz perguntas, compartilha fotos e canções.

O dono da voz é Reynaldo Gianecchini. Mas poderia ser Jonathan Azevedo, Mariana Ximenes, Débora Nascimento ou ainda os atores espanhol Jaime Lorente, conhecido pelo seriado La casa de Papel, e o argentino Leonardo Sbaraglia, de Relatos Selvagens. A decisão fica a cargo do ouvinte, ou melhor, do espectador que comprou um ingresso de R$ 40,00 para “Amor de Quarentena”.

Trata-se de uma das narrativas com base na linguagem teatral que foram desenvolvidas em meio à pandemia, usando as limitações impostas pelo fechamento dos teatros como recurso para a exploração de novas formas de contar histórias.

A história, escrita pelo dramaturgo uruguaio Santiago Loza, se passa toda no aplicativo de troca de mensagens. Depois de comprar o ingresso e escolher o ator, o espectador recebe textos, áudios e fotos desse personagem. Não dá para responder diretamente, mas a sensação é que há interação.

O diretor Daniel Gaggini, responsável pela versão nacional, diz que o Brasil é um dos maiores responsáveis pelo sucesso da montagem, que já teve mais de 27 mil espectadores no mundo. Agora, cuida também da adaptação em Portugal. Lá, a peça ainda está em cartaz, até 8 de fevereiro. Gianecchini também está no elenco, junto com atores locais.

A pandemia reforçou a necessidade de um novo modo de as pessoas se comunicarem, sobretudo com a ajuda das ferramentas de chamadas de vídeo. Essas plataformas cresceram exponencialmente em 2020 e passaram a fazer parte do cotidiano. Portanto nada mais natural do que serem usadas também na dramaturgia.

É o que se vê em “Caso Cabaré Privê”, que convida o espectador a participar ativamente do enredo. A premissa é a seguinte: o filho do presidente é encontrado morto em um cabaré privativo e o público precisa investigar as pistas, interrogando as performers do lugar. O espetáculo, cujo ingresso custa R$ 20,00, acontece na plataforma de videoconferência Zoom.

Cena de "Caso Cabaré Privê", peça que é transmitida por uma plataforma de vídeochamada

Registros no celular do filho assassinado funcionam como flashbacks e fornecem indícios do que aconteceu. “A plateia pode descobrir ou não coisas, pode mudar o final. Está completamente na mão do público”, diz o autor, Pedro Granato.

A peça fez sucesso no ano passado e recebeu um Prêmio Especial da Quarentena 2020 da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) por levar a um ambiente online um espetáculo interativo. Agora, volta aos palcos virtuais aos sábados e domingos de março, sempre às 21h.

Mas nem todos os espetáculos radicalizaram tanto na linguagem. Algumas das peças que começam suas temporadas nos próximos dias exploram um ambiente no meio do caminho, que flerta com teatro, com cinema e com série de TV.

"Farol de Neblina", websérie da diretora teatral Yara de Novaes com a cineasta Clarissa Campolina, se encaixa nesse perfil. O texto usa elementos de thriller psicológico para falar sobre o encontro de um casal, Diego (Leonardo Fernandes) e Sofia (Fafá Rennó), em uma casa sem vizinhos em uma noite fria e encoberta pela neblina.

Serão quatro episódios de 18 minutos, exibidos às sextas, no site do espetáculo. O primeiro capítulo estreia no dia 5 de fevereiro. "Quando estreamos a peça em janeiro do ano passado, pensamos que passaríamos um ano e meio viajando pelo Brasil", conta a diretora Yara de Novaes ao NeoFeed.

A pandemia atrapalhou os planos. O projeto precisou, então, ser repensado para o ambiente digital. "Queríamos fazer algo que homenageasse o espaço teatral, mas com ganhos que o cinema pode oferecer", diz. O resultado, de acordo com ela, é um diálogo que vai além da simples filmagem de um espetáculo e oferece elementos de ambas as artes.

Da mesma maneira, "Cuidado com as velhinhas carentes e solitárias", dirigida por Fernando Philbert, busca mesclar elementos do teatro e do cinema em um novo formato narrativo. “Precisamos encontrar uma nomenclatura para essa máquina de espanto”, diz Philbert ao NeoFeed. "Juntamos duas linguagens que parecem conflitantes, mas que na realidade não são."

Baseado na obra do dramaturgo romeno Matei Visniec, o espetáculo reúne quatro peças curtas que abordam temas como os ensinamentos de um franco-atirador a seu discípulo ou os encontros de uma garçonete com clientes de uma cafeteria. A peça será exibida no YouTube a partir do dia 20 de fevereiro e brinca com a cenografia do teatro, mas com elementos técnicos do cinema, como o uso de closes e múltiplas câmeras.

Setor em dificuldades

Apesar das inovações, a situação ainda é difícil e os artistas estão encontrando formas de minimizar o prejuízo. Algumas salas de espetáculo abriram as portas, mas os cuidados com a pandemia limitam a capacidade de lotação - e também os valores arrecadados. No caso dos espetáculos online, a maioria vende ingressos. Os preços são baixos para os padrões do teatro, geralmente entre R$ 15 e R$ 40, mas nesses casos não há limite de espectadores.

Há também uma iniciativa formal de auxílio. A Lei nº 14.017, de 29 de junho de 2020, apelidada Lei Aldir Blanc, foi criada para garantir uma renda emergencial e a manutenção de espaços culturais durante a pandemia. A verba é distribuída principalmente por meio de editais. Foi graças a essa lei que Fernando Philbert conseguiu financiar a peça que lançará em fevereiro.

Os mais prejudicados foram os técnicos, especialmente aqueles envolvidos em musicais, um formato que não conseguiu fazer a migração para o digital. Vaquinhas e arrecadações online foram feitas para contribuir com esses profissionais.

Mesmo quando a pandemia estiver sob controle e todas as salas abrirem suas portas, a retomada será lenta. “Sempre temos que nos reinventar, independente de pandemia”, diz Daniel Gaggini. “O teatro é um luxo para muita gente. Temos que nos redescobrir e cada vez mais usar essas novas formas de difusão que, no futuro, vão poder dialogar. Quem não apostar nisso vai dançar”

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