Desde que foi apresentada, em junho, a proposta do governo para o imposto de renda, conhecida como a segunda etapa da reforma tributária, tem gerado um vaivém de emoções no mercado financeiro. Do mal estar inicial ao alívio com os primeiros ajustes feitos, agora a impressão é de que mais um grande “puxadinho” pode vir aí, com o Congresso sob pressão dos mais diversos setores da economia.

As modificações foram tantas que já há quem pense que o melhor é não seguir adiante. Gilberto Kfouri, chefe de investimentos de uma das maiores gestoras do País, a asset do BNP Paribas no Brasil, com R$ 78 bilhões sob gestão, está nesse time.

“A reforma tributária está totalmente desconfigurada”, diz Kfouri, em entrevista ao NeoFeed. “Para fazer o que querem fazer, é melhor não fazer nada. O mercado vai reagir até bem”.

A proposta nasceu com a ideia de reduzir o imposto de renda das empresas e compensar a perda de arrecadação do governo com uma tributação sobre dividendos. As alíquotas ainda estão em discussão e o relator na Câmara, o deputado Celso Sabino (PSDB-PA), tem sido pressionado a manter alguns incentivos fiscais. No fim de julho, por exemplo, ele desistiu de eliminar os benefícios para companhias de vale-refeição e vale-alimentação.

“A expectativa de arrecadação está caindo e o resultado líquido ficou negativo”, diz Kfouri. “O (ministro da Economia) Paulo Guedes diz que o Brasil vai crescer e compensar essa queda de arrecadação. Mas, com o juro mais alto, o cenário para a economia é mais restritivo”, afirma.

O gestor, que vê a Selic saindo dos atuais 5,25% ao ano para 8,5% no início de 2022, estima também que a expansão do PIB deve desacelerar de 5,8%, em 2021, para 2,1%, no ano que vem.

Na avaliação de Kfouri, outro possível “puxadinho” envolve o teto dos gastos. Para ele, as discussões em torno dos precatórios e do Auxílio Brasil (nome da nova proposta do governo para o Bolsa Família) também reduzem a força daquilo que tem sido âncora fiscal do Brasil.

“(Acho que) o teto será mantido, mas mantido com exceções. O problema é que vem uma exceção, depois vem outra. Você vai colocando exceções e daqui a pouco não tem mais teto”, disse.

Na entrevista a seguir, Kfouri fala sobre temas como a condução do Banco Central (BC) na política monetária, as preocupações com a inflação, a visão dos estrangeiros sobre o Brasil e a expectativa para a Bolsa. Confira:

A Selic voltou a subir e parece que falta clareza ao mercado sobre o final do ciclo. Qual é o cenário da asset do BNP Paribas para os juros no Brasil?
Para nós, também tem sido difícil ter essa clareza. Eu não diria que o Banco Central (BC) foi negligente com a inflação, porque nós tínhamos uma visão parecida. Tivemos muitas surpresas com a inflação. Mas o BC começou até bem no ajuste, subindo 0,75 ponto porcentual, quando o mercado esperava 0,50 pp. Só que veio com aquela comunicação de ajuste parcial, que não precisava. Era só ficar quieto. Mas não chamaria de erro, pelas surpresas, como a crise hídrica e os preços das commodities que não param de subir. Além disso, o dólar, que já poderia estar perto R$ 5, não caiu como se esperava, e tem a incerteza fiscal.

A projeção da asset do BNP é de que a Selic para de subir em qual patamar?
Achamos que a Selic vai a 8% ao ano no fim do ano e continua subindo no primeiro trimestre do ano que vem, a 8,5%. Uma hora isso vai bater na atividade econômica e terá efeito na inflação. O que está atrapalhando, no momento, é a inércia inflacionária. O BC já está olhando para a inflação de 2022 e 2023. Para 2022, será difícil chegar ao centro da meta, de 3,5%, mas também não vai ficar acima do teto da meta. Estamos projetando 3,65% para o IPCA no ano que vem. Para este ano, ficará em 8%. De qualquer forma, acho que a Selic a 8,5% é bem factível. Depois da eleição, o BC deve voltar a reduzir, para 8%.

Há uma discussão de que a inflação está mais relacionada a um choque de oferta e, portanto, a ação do BC teria menos efeito. Você concorda?
Inflação é inflação, mesmo que seja de oferta. Se o BC não controlar isso, terá efeitos secundários. Além disso, tem a questão da expectativa do mercado, porque o BC tem de trazer a expectativa do mercado para a inflação para a meta, mesmo sendo inflação de oferta. Tem de agir mesmo assim. Talvez, seria melhor o BC já subir 1,25 ponto percentual na próxima reunião, em 21 e 22 de setembro. O problema é que, quanto mais você vai deixando, maior o risco de fazer um ciclo maior. Mas uma alta de 1 ponto percentual, ainda assim, é dura. O BC brasileiro tem sido um dos mais ‘hawkish’ do mundo. Subir 3 pontos percentuais em seis meses não é pouca coisa.

Você mencionou que o dólar poderia estar mais perto de R$ 5. Por que não está?
Para nós, o preço justo do dólar seria R$ 5,10. Não está nesse nível em razão da incerteza fiscal, basicamente. Não é a política monetária, que tem ajudado com a alta dos juros. O problema é que o teto de gastos já não é mais aquele que se imaginava. No ano passado, foi totalmente justificável pela pandemia. Mas, agora, toda hora é algo a mais que tentam colocar. São os precatórios, é o Auxílio Brasil. Daqui a pouco não é mais teto. É importante lembrar que nós tivemos uma melhora boa na expectativa para a relação da dívida pública com o PIB. Falávamos em bater 95% ou 100% e fechamos o ano passado em 89%. Mas, com os estímulos do governo, e a economia não caindo tanto quanto se esperava, estamos falando de 81%. Mas muito disso tem a ver com o juro real negativo. Com o juro voltando a subir e sem olhar com carinho para a questão fiscal, a relação da dívida com o PIB vai subir de novo. Em condições de baixo risco fiscal, o dólar poderia estar em R$ 5,10. Não está pior porque já está muito desvalorizado.

Você perdeu a esperança de que o teto dos gastos será mantido?
O teto será mantido, mas mantido com exceções. O problema é que vem uma exceção, depois vem outra. Você vai colocando exceções e daqui a pouco não tem mais teto. Poderiam resolver o precatório, o Auxílio Brasil e depois dizer que agora só vão discutir isso (o teto) no próximo governo. Mas daqui a pouco tem a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e teremos mais um puxadinho. É uma incerteza constante.

E quanto à reforma tributária, qual a sua avaliação?
A reforma tributária está totalmente desconfigurada. Do jeito que está, é melhor não fazer nada. Para fazer o que querem fazer, é melhor não fazer nada. O mercado vai reagir até bem.

A proposta inicial para a reforma tributária era melhor?
Em primeiro lugar, não era uma reforma tributária. Era uma reforma do imposto de renda. A primeira proposta teve ruído e, depois, foi ajustada pelo relator, deputado Celso Sabino (PSDB-PA). Ali, em linhas gerais, estava ok. Mas agora estão mexendo de tudo quanto é jeito, para favorecer setores. A expectativa de arrecadação está caindo e o resultado líquido ficou negativo. O (ministro da Economia) Paulo Guedes diz que o Brasil vai crescer e compensar essa queda de arrecadação. Mas, com o juro mais alto, o cenário para a economia é mais restritivo. Não estamos tendo aquela eficiência que se esperava para a reforma do IR.

"Com o juro voltando a subir e sem olhar com carinho para a questão fiscal, a relação da dívida com o PIB vai subir de novo"

A eleição presidencial de 2022 já está sendo precificada pelo mercado?
Já está entrando um pouco no preço, mas não é o principal. Ainda tem muito ruído de curto prazo para acontecer. Será uma eleição com uma polarização perigosa. E a chance de aparecer uma alternativa é baixa.

O mercado já tem falado que os dois principais pré-candidatos, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), devem moderar o discurso, para vencer a eleição. É o que você espera também?
Eu tendo a concordar. O que temos ouvido de consultorias é que os candidatos vão esticar a corda, para puxar para o seu reduto, até meados do ano que vem. Quando estivermos mais perto da eleição, aí podemos esperar movimentos mais moderados para atrair votos. Mas ainda não vemos isso, nem de um lado nem de outro.

É um mau cenário para a Bolsa até 2022?
A Bolsa tem um cenário que é favorável, mas com volatilidade. As empresas da Bolsa não representam a economia como um todo. Estão indo bem e estão entregando resultados. É claro que o aumento dos juros vai impactar. Não que vá ser ruim, mas o crescimento do lucro vai ser menor. E estamos com uma lacuna em relação ao S&P 500, que está nas máximas. Pelos múltiplos, a Bolsa está barata e tem um potencial de valorização. O fundamento é bom, não vamos ter uma derrocada. Mas também não vejo a Bolsa correndo atrás para preencher rapidamente a lacuna em relação ao que acontece lá fora. Quando chegar à máxima aqui, lá fora já vão estar bem melhores.

Pelo contato que a asset do BNP no Brasil tem com os demais escritórios pelo mundo, qual a visão do estrangeiro?
O estrangeiro já viu de tudo por aqui. O BNP está aqui para ficar. Já passou por vários estresses e o Brasil é uma região muito importante. Claro que sempre há ruídos maiores. A questão ambiental pega um pouco, porque os franceses têm mais essa preocupação. O ESG é uma coisa antiga para eles. O lado institucional, no Brasil, chama atenção, mas não é 'nossa, que loucura'. Eles mantêm os investimentos aqui. Há fundos lá fora que investem aqui e continuam investidos. Eles entendem, sabem como é, faz parte da regra do jogo. Não é nada a ponto de mudar a estratégia.

O Larry Fink, da BlackRock, tem dito que a alta da inflação nos EUA não será transitória e disse que não está tão preocupado. Você concorda com ele?
Nós temos uma preocupação um pouco maior. De um lado, há o avanço da tecnologia, que é deflacionário e já vínhamos de um histórico deflacionário na tecnologia. Mas há também a questão dos suprimentos, com a falta de chips para indústria e o aumento das commodities, que puxam a inflação para o outro lado. A tecnologia é algo mais perene, de produtividade e eficiência. Mas o que está pressionando a inflação é algo que talvez demore mais para voltar à normalidade. De qualquer forma, acreditamos que o Federal Reserve (BC dos EUA) está administrando isso. Confiamos no Fed, que tem um grau de entrega grande. Eles vão fazer o que precisar ser feito.