Lembro que em 2003 li um artigo muito instigante, na Harvard Business Review, chamado “IT Doesn´t Matter”, de Nicholas Carr. Logo após, em 2004, ele escreveu um livro aprofundando o tema, que também li com muito interesse: “Does IT Matter? Information Technology and the Corrosion of Competitive Advantage”.

O que ele dizia explicitamente é que TI, como estava sendo usada, não era uma força de vantagem competitiva, mas uma commodity, de apoio operacional. Infelizmente, esse cenário foi realidade durante muito tempo. TI, para muitas empresas era (e infelizmente ainda é) apenas um setor de apoio, subordinado ao CFO e cuja missão principal era manter o data center operando, pastoreando o ERP e alguns aplicativos adjacentes.

Mas, nos últimos anos, com a evolução exponencial das tecnologias digitais e o surgimento de disruptores como Amazon, Google, Uber, Airbnb, Facebook, Alibaba e outros, comprovou-se que a tecnologia digital podia sim ser a força motriz para transformar setores de negócios por inteiro. A pandemia do Covid acelerou o futuro e o trouxe para o hoje.

A pandemia gerou questionamentos sobre em que países localizar as fábricas, onde a força de trabalho deve exercer suas atividades (em casa, no escritório ou em ambos os locais?) e até que ponto a inteligência artificial (IA) já não deveria estar fazendo parte dos processos da organização. As estratégias que dominaram o cenário de negócios até esse ano subitamente desmoronaram. TI deixa de ser commodity e passa a ser o “core” dos negócios.

Dados concretos mostram essa realidade. De cada 10 operações feitas hoje em dia na bolsa de valores americana, somente uma é gerada por um ser humano. As outras nove são efetuadas automaticamente por direcionamento de algoritmos de IA. Nos últimos 15 anos, 52% das empresas do índice S&P simplesmente desapareceram; 87% do valor de mercado do S&P vem hoje de bens intangíveis; e 52% do headcount das empresas de fintech é formada por engenheiros de programação e designers de produtos.

Com a tecnologia digital passando a ser o cerne dos negócios, a responsabilidade pelo que costumamos chamar de TI, deixa de ser exclusiva do CIO para ser de todos os C-level da empresa. Ser digital é muito mais do que ter uma área de TI.

A TI é um dos componentes da empresa digital. Uma transformação nos modelos de negócios e nas proposições de valor para os clientes afeta de forma radical toda a organização e cada executivo tem que entender a essência da transformação digital e mudar sua maneira de pensar e conduzir os negócios da organização.

Não estamos vivenciando apenas mais um ciclo de inovações, mas uma transformação radical do mundo como conhecemos. Como a sociedade industrial nos deixou como legado a eletrificação da sociedade, a transformação digital vai nos deixar a digitalização e cognificação da sociedade.

As empresas que vão sobreviver no século 21 terão que pensar de forma digital e criar modelos de negócio que reflitam esse pensamento. Os modelos de negócio que deram muito certo no século 20 não garantirão o sucesso no século 21.

Pensar digital é muito mais que digitalizar processos. Imagine uma linha de produção de automóveis como a do Ford Model-T. O que é digitalizar o processo? Transformar esse processo, totalmente efetuado com atividades manuais, em uma linha inteiramente robotizada e automática. Mas o processo da linha de montagem, pensem bem, continua o mesmo.

E pensar digital? Pense que o automóvel está sendo fabricado por uma impressora 3D, em uma ou poucas peças. Não existe mais a linha de montagem! O digital implica em um novo modelo mental.

O conceito arraigado que as fronteiras de cada indústria estão claramente definidas, a base da competição é estável, o ambiente de negócios não sofre grandes abalos e a forte posição competitiva, uma vez conquistada, pode ser mantida, está se mostrando totalmente falha.

O cenário atual é muito diferente. Os limites de cada indústria não estão mais claramente definidos, mas estão borrados. Os ambientes não são mais estáveis, podendo ser abalados por startups disruptivas ou por concorrentes que adotam modelo de negócio diferente ou chegam de setor adjacente.

Assim, forças competitivas persistentes podem ser destruídas do dia para a noite por uma empresa que digitalizou seu negócio físico ou transformou seu produto em um serviço. A competição deixou de ser simétrica e limitada aos atores do próprio setor, para ser assimétrica, com os setores fluídos, sem fronteiras.

O modelo mental dos gestores, de enxergarem apenas o seu próprio “campo de jogo” para analisar a competição, deu lugar a outro cenário. Tradicionalmente, as escolas de gestão sempre dividiram os negócios em setores específicos. E as empresas desses setores específicos competiam apenas com outras empresas dentro do mesmo setor. Esses tempos acabaram.

Um bom exemplo é a Netflix, que saiu do antigo paradigma de “somos uma empresa de streaming de filmes e séries” para a novo paradigma “somos uma empresa de entretenimento”. Com isso, seu competidor passa a ser não a Amazon Prime ou HBO, mas o Fortnite.

Isso foi explicitado em relatório aos acionistas no fim do ano passado, quando seu CEO, Reed Hastings disse: "Nós ganhamos o tempo de tela do consumidor, tanto no celular como na televisão, longe de uma série de competidores. Competimos com (e perdemos) o Fortnite mais do que com a HBO"

Entretanto, entre a intenção de fazer e a realidade de conduzir uma transformação digital existe um espaço imenso. O balanço entre a cobrança pelos resultados de curto prazo, sustentados pelos negócios tradicionais, e as propostas de futuro, negócios que gerarão receita no médio e no longo prazo, cria tensão entre os mundos da estabilidade do modelo atual e as propostas desafiadoras dos novos modelos digitais.

A transformação de uma empesa estruturada de forma hierárquica, com silos organizacionais e processos construídos e solidificados ao longo de décadas, para uma empresa ágil e conceitualmente digital, não é uma missão fácil.

A transformação digital é uma jornada e as barreiras no caminho são muitas

A transformação digital é uma jornada e as barreiras no caminho são muitas. O primeiro sinal de alerta vermelho que reconheço em muitas empresas é o de se concentrar tão intensamente nos seus desafios diários, que não prestam atenção aos sinais de mudança. E então são surpreendidos.

Icônico deste cenário é a BlackBerry. A história de sua decadência é um case, até comum, de como uma empresa bem-sucedida não presta atenção aos sinais de mudança. O seu CEO e fundador só soube do iPhone, quando assistiu em casa uma propaganda na TV! O artigo “Inside the fall of BlackBerry: How the smartphone inventor failed to adapt” deve ser lido atentamente.

Outro erro comum que observo em muitas empresas é a forte tentação de se pensar que a transformação digital é apenas um enclave na organização, uma iniciativa isolada, muitas vezes confundida com marketing digital ou um projeto de TI. Não é isso. É um potencial transformação de toda a empresa, seus processos e modelos de negócio.

Os executivos devem ter plena consciência da necessidade de transformação e se comprometerem com ela. O board deve revisar suas estratégias, balanceando os riscos entre a ação e a inação. Os CEOs devem, obrigatoriamente, liderar a transformação. Infelizmente, nem todos estão preparados para essa missão.

O artigo “ Most CEOs Can't Lead A Digital Transformation” mostra que nem todos executivos têm o preparo adequado para conduzir a mudança. Um exemplo prático foi a substituição do então CEO global da Ford. Como disse Michael Useem, professor da Wharton School, ao NY Times: "Quem pensou que a Ford estaria competindo com o Google? Mas agora eles são competidores, e Mark Fields, o ex-CEO, não estava se movendo com rapidez suficiente.”

Velocidade é uma variável chave e é uma grande preocupação para as organizações já estabelecidas. A empresa como um todo deve ser ágil e ter a capacidade de transformar ideias em realidade muito rapidamente. Ser ágil é adotar um princípio mais colaborativo, mais aberto, mais criativo e muito mais eficiente do que os modelos de gestão e operação atuais. É um princípio que deve ser implementado em toda a empresa e não apenas em um ou dois departamentos na área de desenvolvimento da TI.

Não acredito no modelo bimodal, que mantém um sistema duplo, em que as empresas constroem lentamente a estabilidade dos sistemas de backoffice, enquanto lançam rapidamente produtos digitais. Esse modelo não atende as demandas dos negócios, e os processos e mudanças organizacionais do mundo digital, como exigido pelas transformações aceleradas que vivemos. A velocidade das mudanças exige respostas rápidas de toda a organização, não apenas de TI.

As empresas têm que se reimaginar no mundo digital e devem ser adaptar continuamente em um mundo cada vez mais complexo, volátil, cheio de incertezas e ambiguidades, que será o novo “business as usual”. A própria globalização está mais complexa. Regras tarifárias e ações protecionistas que afetam importações mudam rapidamente, à luz de debates geopolíticos e isso cria um complicador adicional.

As crescentes críticas ao capitalismo tradicional, com aumento das desigualdades também é um sinal de alerta. O regionalismo, a crise climática e a evolução exponencial da tecnologia e a IA se tornando a nova eletricidade, a nova força motriz da sociedade, são cenários, que acrescidos a crises pandêmicas como a do Covid, fazem com que um cenário de estabilidade se torne improvável nas próximas décadas.

O mundo está em transformação e essa transformação é exponencial.  Portanto, a questão é: não existe garantia nenhuma que o sucesso alcançado, solidez de marca, base de clientes, market share e resultados financeiros positivos de hoje garantam sua sobrevivência nos próximos cinco a dez anos. Se a velocidade de resposta da empresa for lenta, a probabilidade de queda é grande.

Mas além do CEO, a transformação deve envolver o CFO (que tem que adaptar seus modelos financeiros aos novos modelos de negócios), o COO (que deve liderar a transformação dos modelos operacionais), o CHRO (Humans & Robots) que deve buscar novos talentos e identificar os talentos atuais que possuem o DNA digital, e claro, o CIO. Todo líder deve ser um líder digital. Afinal, como disse Jeff Immelt, ex-CEO da GE, “Acreditamos que toda a indústria se tornará uma companhia de software.”

O CIO deve assumir um novo papel. A expertise tecnológica sai de cena e entra a expertise de negócios. Não existe mais uma estratégia isolada de TI, mas uma estratégia de negócios fortemente apoiada por tecnologias digitais.

Seu job description deve mudar para considerá-lo como um C-level de verdade (hoje o título de CIO para muitas empresas é apenas honorífico, pois não fazem parte do C-level, mas estão subordinados a um, como ao CFO). Ele deve ser responsável por desempenhar um papel de liderança no desenvolvimento do negócio, com forte ênfase em desenvolvimento e implementação da estratégia. A visão estratégica, a abertura de pensamento e as habilidades colaborativas serão essenciais, assim como a experiência de impulsionar inovação e gerar receitas a partir de negócios inovadores.

Uma empresa com viés digital deve ter sua liderança obcecada com tecnologia. O artigo da Singularity University, “Why Every Leader Needs to Be Obsessed With Technology”, mostra que mais do que nunca, os executivos precisam desenvolver uma forte compreensão do potencial de transformação provocada pelas tecnologias digitais. Eles precisam continuamente pesquisar novas inovações, prever seu ritmo de adoção, avaliar as implicações e adotar novas ferramentas e estratégias para mudanças rápidas de curso.

Se a disrupção é inevitável, faça-a você mesmo. Não espere que outro a faça em seu lugar. Porque ela virá. Não seja uma outra BlackBerry.

*Cezar Taurion é VP de Inovação da CiaTécnica Consulting, e Partner/Head de Digital Transformation da Kick Corporate Ventures. Membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA. É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral, PUC-RJ e PUC-RS.