O italiano Tommaso Buscetta (1928-2000) está longe de ser um herói. Ainda assim, o antigo chefão da Cosa Nostra exerce um grande fascínio por ter sido o maior delator da história da máfia.

Antes dele, ninguém tinha tido coragem de quebrar o código de honra, denunciando seus comparsas e revelando detalhes da organização criminosa, por temer as consequências.

A trajetória de Buscetta (1928-2000) é revivida em “O Traidor”, filme do italiano Marco Bellocchio, que chega aos cinemas do Brasil no dia 14.

Ao colaborar com a Justiça da Itália e dos EUA, ele foi o responsável pela condenação mais de 300 membros da Cosa Nostra.

Até o Brasil faz parte da história de Buscetta (chamado por aqui de “Busquêta” na mídia, por motivos óbvios). Fugindo de uma guerra de drogas crescente entre clãs rivais na Sicília, o mafioso teve várias passagens pelo país, onde mantinha um alto padrão de vida, viajando constantemente entre São Paulo e Rio de Janeiro.

Interpretado pelo ator Pierfrancesco Favino no filme, o mafioso foi casado com a carioca Maria Cristina de Almeida Guimarães (Maria Fernanda Cândido), com quem teve dois filhos. Foi a partir da prisão no Brasil, que o extraditou em 1984, que Buscetta concordou em colaborar com a polícia italiana, contando tudo o que sabia.

Em troca da delação, o mafioso ganhou uma nova identidade e passou a viver sob a proteção do FBI nos EUA. Foi lá que ele morreu vítima de um câncer, em 2000, aos 71 anos, depois de fazer várias cirurgias plásticas para não ser reconhecido pelos matadores de aluguel no seu rastro.

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“Don Masino”, como Buscetta era chamado, desvendou não só nomes como táticas e planos, expondo ao mundo a estrutura da máfia e o esquema de corrupção de políticos. Ele chegou a revelar que Giulio Andreotti (1919-2013), na época um ex-primeiro-ministro da Itália, era um dos políticos do alto escalão com envolvimento com a organização.

“Delatar deve ter sido uma escolha dolorosa para Buscetta”, diz o cineasta italiano Marco Bellocchio, ao NeoFeed, em Cannes. Foi no festival francês que “O Traidor” fez a sua première mundial, concorrendo à Palma de Ouro.

“O mafioso não foi um traidor revolucionário que queria mudar o mundo. Ele precisou delatar para salvar a si mesmo e a sua família. Mas também por ser um tipo conservador, que sentia nostalgia pela máfia na qual cresceu”, conta o diretor, de 82 anos.

Bellocchio se recorda do momento em que tomou conhecimento da história de Buscetta. “Os jornais (italianos) começaram a falar muito dele, mas nada se sabia sobre esse homem que vinha do Brasil. Exceto o fato de máfia ter matado muitos de seus familiares. A traição de Buscetta foi sendo compreendida aos poucos”, afirma o cineasta.

Na visão que Bellocchio defende no filme, Buscetta teria justificado quebrar o seu juramento de lealdade eterna à máfia, denunciando seus companheiros, em função da mudança de conduta dos mesmos. Algo que, para Buscetta, também era uma questão de princípios.

Don Masino preferia a máfia “com valores”, na qual tinha sido batizado. Por ser uma espécie de gângster à moda antiga, ele repudiava o que a organização tinha passado a fazer, adotando um comportamento mais “degenerado”, matando mulheres e crianças.

“Todos os que falam de Buscetta o descrevem como um homem de identidade e caráter fortes. Ele não tinha muita educação e cultura, mas tinha orgulho de quem era”, afirma Bellocchio, lembrando que o mafioso tinha grande respeito pelo conceito de família. “Seria muito fácil pintá-lo como herói ou vilão, o que não daria toda a complexidade que o personagem merece”, completa.

Delatar significou cuspir no prato que o mafioso comeu. Vindo de uma família pobre, Buscetta traiu o círculo mafioso siciliano que o acolheu na sua juventude, quando ele ganhava a vida fazendo pequenos contrabandos em Palermo.

Vencedor de sete prêmios David di Donatello, o Oscar italiano, “O Traidor” foi escrito a partir de biografias, documentos judiciais e entrevistas com mafiosos presos, juízes e jornalistas ligados ao caso. No que diz respeito ao gênero, a cinebiografia se alterna entre o drama de tribunal e o filme de ação.

As cenas rodadas no Rio de Janeiro estão entre as mais eletrizantes. Bellocchio reconstitui uma suposta tortura sofrida por Buscetta em 2 de novembro de 1972. Nas mãos de agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), o mafioso teria sido colocado em helicóptero militar para dar uma volta.

Durante a viagem, sobrevoando as praias do Rio de Janeiro, os agentes teriam aberto a porta e ameaçado lançar Maria Cristina no mar, de outro helicóptero, se Buscetta não revelasse a sua verdadeira identidade.

Teria sido aí o momento em que mafioso reconheceu não ser o investidor Tomas Roberto Felice. E sim Tommaso Buscetta, o homem que anos mais tarde derrubaria a Cosa Nostra. “A organização existe até hoje, mas a sua delação levou ao grande julgamento, o que significou uma derrota para a máfia. Ainda que parcial”, diz Bellocchio.