Ele passa pelos corredores com pressa, mantendo o olhar fixo no horizonte ou no chão – sem nunca encarar quem lhe cruza o caminho, que é quase sempre o mesmo: da água para a pequena sala-de-estar convertida em "backstage", e vice-versa.

Onze vezes campeão mundial de surf, Kelly Slater é a prova de que "nenhum homem é uma ilha", como um dia escreveu John Donne. Porque até o surfista, que vive cercado de água por todos os lados, (re)corre aos poucos e bons amigos – e ao violão –, assim que os pés tocam em terra firme.

Vivendo sob uma filosofia não-declarada de que "menos é mais", Slater pode, num primeiro momento, ser interpretado como antipático, mas basta uma rápida conversa para entender que o mais jovem e mais velho homem a conquistar o título mundial da World Surf League (WSL) é apenas reservado.

Assim como faz com quem o acompanha, o americano, hoje com 47 anos, também é seletivo nos negócios, optando por uma quantidade menor de contratos, mas mais duradouros.

A sala "backstage" so Surf Ranch, onde a diária custa US$ 50 mil

"Nessa indústria, muita gente troca de patrocinador. Dois amigos meus já tiveram tantas marcas como apoiadoras que, chegou uma hora, eu não conseguia acompanhar. Acho importante encontrar a empresa que seja coerente com as suas crenças e desenvolver uma parceria longeva", diz Slater ao NeoFeed.

Ele, que por 24 anos desceu as ondas mais cobiçadas do mundo com o logo da Quiksilver e Channel Island, hoje carrega no peito apenas a própria marca, a Outerknown, lançada em 2015, e, no pulso, a Breitling – marca suíça de relógios de luxo, que acaba de lançar um novo modelo em parceria com o atleta.

Surfar o paredão do empreendedorismo não é algo novo na vida de Slater. Há mais de dez anos, quando negociava a renovação de seu contrato com a poderosa Quiksilver, ele já verbalizava seu desejo de ir além dos típicos acordos de patrocínio, com começo, meio e fim. "Eu queria me envolver mais profundamente no processo; queria ser dono também", afirma.

"Eu queria me envolver mais profundamente no processo; queria ser dono também", afirma Slater

Sem obrigação comercial com a marca californiana, Slater poderia improvisar no "freestyle" do business, e assim o fez. Investiu tempo e (muito) dinheiro – cerca de US$ 30 milhões – no desenvolvimento da "onda perfeita".

Depois de estudar a fundo o movimento do mar e dos surfistas, Slater e sua equipe técnica chegaram à tecnologia que hoje abastece a Kelly Slater Wave Company (KSWC).

A primeira instalação da empresa aconteceu no Surf Ranch, também propriedade do campeão. Essa "piscina" de onda artificial construída em Lemoore fica três horas distante a norte de Los Angeles.

Além de refeição completa, o Surf Ranch conta com uma opção de acomodação alternativa: trailers tipo Airstream, equipados com cama de casal, ar condicionado e cozinha completa. Os usuários podem escolher entre quatro tipos de onda, e existe a possibilidade de surfá-las de body board também. Numa piscina ao lado, wake-surf é outra opção de atividade.

O espaço, que requer reserva com pelo menos 24h de antecedência, é bastante exclusivo. A diária ali custa US$ 50 mil e o recomendado é que, no máximo, 18 surfistas curtam as atividades, mas um número bem maior pode participar, se assim desejar os usuários.

Slater investiu US$ 30 milhões no desenvolvimento da onda perfeita

É ali que Slater passa agora a maior parte do tempo, ao lado dos amigos. Quase todos desfilam as roupas, chapéus e acessórios da Outerknown, a marca de moda sustentável que o surfista criou em sociedade com o designer de roupas John Moore, e que hoje é liderada pelo CEO Mark Walker.

Bastante confortável com o trabalho em equipe, mesmo sendo "cria" de um esporte tão individual, Slater diz que seu segredo é manter um número reduzido de parceiros. "É uma equipe bem pequena", conta. Isso faz com que a confiança e a lealdade sejam os principais pilares do império do surfista, que delega quase cegamente certas funções.

Recentemente, por exemplo, o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, enviou seu secretário adjunto de esportes a Lemoore, a fim de explorar as possibilidades de construir um Surf Ranch na maior cidade brasileira.

"Não posso falar sobre essa negociação, não porque seja segredo, mas porque eu não me envolvo em absolutamente nada disso. Eu fico com o design, e todo o resto é administrado por outras pessoas. Eu posso até fazer a ponte, montar o network, mas não negocio nada", revela Slater.

Kelly Slater e a grande piscina de onda artificial do Surf Ranch

O crescente interesse de outros países pela tecnologia da Kelly Slater Wave Company, que, desde 2016, é majoritariamente controlada pela WSL, não deve, contudo, mudar o formato do esporte. Para Slater e outros surfistas, o amor pela modalidade começa sempre no mar, e é ali que se aprende a dominar a prancha.

A piscina artificial é, para eles, um complemento, e uma oportunidade de disputar uma competição diferente, que funciona num caráter mais de apresentação, com o clima e as ondas todas controladas.

Foi cogitado, inclusive, a possibilidade de uma piscina de ondas artificiais, impulsionada pela máquina da KSWC, fosse montada em Tóquio, sede da Olimpíada do ano que vem – e estreia do surf nos jogos. A disputa, contudo, vai acontecer mesmo na praia, numa janela de 16 dias, à espera das melhores condições de mar.

Com chances de emplacar uma das vagas olímpicas, Slater não se mostra ansioso. "Se eu conseguir a vaga, vou disputar, claro, mas não cresci com o sonho de ir para a Olimpíada. Sempre assisti aos Jogos, mas não esperava que a minha modalidade fosse um dia fazer parte, então esse sonho é algo recente e é para as gerações mais novas", comenta.

Ainda sobre a disputa a ser realizada no Japão, o americano afirma que o medalhista de ouro não será, necessariamente, o melhor do mundo, porque a competição não tem variações de ondas e baterias diferentes. "Vai ganhar quem estiver no melhor dia e com o equipamento certo", finaliza.

Mesmo com as críticas, Slater não esconde o amor pelo esporte: "o surf, para mim, é um vício bom. Me deixa em forma e faz com que eu preste sempre atenção em tudo a minha volta. Quando você está no mar, precisa avaliar as pessoas, as ondas e tudo o que vem com isso".

Essa mesma tática, de analisar a movimentação ao redor, é o que faz de Slater um homem de negócios de sucesso, uma faceta que ele ostenta sem nenhuma modéstia e sem desculpa – "muita gente demoniza o capitalismo e acha que é um sistema ruim, mas eu acho que é algo quase espiritual: quando você faz algo que ama, isso eventualmente vira um business".

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