O setor rodoviário brasileiro conviveu por mais de uma década com um cenário desolador, com estradas em péssimo estado de conservação, rodovias federais sob concessão brigando com o governo para repactuar contratos defasados, que impediam execução de obras e, como efeito, pouquíssimos novos leilões, mesmo porque a crise econômica de 2015-2016 e a razia deixada pela Operação Lava-Jato afastou os tradicionais concorrentes de grandes certames.

Nos últimos três anos, porém, o cenário mudou e os efeitos dessa mudança estão se refletindo no calendário de licitações e repactuações de concessões rodoviárias previsto para o segundo semestre – nada menos que oito leilões de concessões rodoviárias, além de outras três renegociações de contratos antigos.

Só de novas licitações são aguardados R$ 45 bilhões em investimentos em mais de 3,8 mil quilômetros de estradas para os próximos anos – juntando com os dois leilões realizados no primeiro semestre, trata-se da maior quantidade de licitações num mesmo ano desde 2007.

Outros R$ 24 bilhões em investimentos extras são esperados dessas três renegociações de concessões rodoviárias à iniciativa privada. Elas fazem parte de um programa criado pelo governo no ano passado que recebeu a adesão de 14 das 27 concessões em curso.

No total, até dezembro, o setor rodoviário prevê a contratação de cerca de R$ 69 bilhões em investimentos. O mais surpreendente: boa parte bancada por novos players que até 2021 não atuavam no setor, como fundos de investimentos ou grupos estrangeiros.

Nomes como o grupo francês Vinci, a Via Appia - fundo da gestora Starboard -, Way e EPR estão assumindo concessões rodoviárias em vários pontos do País.

Fernando Gallacci sócio do escritório Souza Okawa Advogados e especialista em contratos de infraestrutura, afirma que uma confluência de fatores explica essa guinada no setor. Mas lista três grandes mudanças que viabilizaram essa mudança.

A primeira, e mais importante, foi a alteração nos modelos de contratos que vigoravam nas licitações entre 2007, quando a economia brasileira crescia 7% ao ano, até o início do segundo mandato da então presidente Dilma Rousseff, quando a crise econômica começou a dar seus primeiros sinais.

As obrigações de investimentos, como duplicação de rodovias e outras melhorias, eram inseridos nos contratos sem um estudo adequado se seriam de fato necessários esses avanços logo de cara, porque a expectativa era de que a economia continuaria expandindo nos anos seguintes.

“Na prática, a demanda não acompanhou o investimento de expansão exigido e, com a crise econômica após o impeachment, os concessionários tiveram dificuldades”, diz Gallacci. Essa situação se agravou ainda mais com a pandemia – a redução de tráfego e da cobrança de pedágio deixou um prejuízo de R$ 250 bilhões em 20 das 24 rodovias federais sob concessão.

Os novos contratos nas concessões mais recentes corrigiram essa distorção. “Os investimentos em expansão ficaram atrelados a gatilhos de serviços, sem a obrigação de fazer aportes logo no início do contrato, apenas se o tráfego maior demandar”, afirma o especialista. “Isso ajudou a racionalizar os aportes de capex e atrair investidores.”

A segunda mudança, diz Gallacci, veio do setor público: “O BNDES saiu do cenário de apenas financiador e passou a atuar mais no papel de estruturador de projetos, o que gerou mais interesse do mercado de capitais em investir no setor.”

O terceiro fator, consequência do segundo, foi a entrada em cena das debêntures incentivadas. “O maior efeito é que, com debêntures incentivadas, os investidores conseguem colocar de pé um projeto de infraestrutura recorrendo a financiamento de mercado, e não apenas ao financiamento bancário com taxa subsidiada, como é oferecido pelo BNDES.”

Novos players

De acordo com o especialista, a invasão de fundos de investimentos e de grupos estrangeiros nas licitações rodoviárias reforça o acerto das mudanças. A lista é extensa.

A Vinci, uma das maiores concessionárias de ativos de infraestrutura do mundo, obteve em 2022 o controle da Entrevias, que opera atualmente 570 km de rodovias que atravessam o estado de São Paulo, numa transação com o fundo de private equity Pátria, que operava a Entrevias.  O fundo manteve 45% de participação.

O Via Appia, fundo de investimento da gestora brasileira especializada em reestruturações Starboard, entrou no setor rodoviário em março do ano passado, vencendo o leilão do Rodoanel Norte, de São Paulo.

Em novembro, conforme revelou o NeoFeed com exclusividade, a Via Appia adquiriu trecho da AB Concessões, passando a gerir 300 quilômetros da AB Colinas, que atua no interior de São Paulo, e 370 quilômetros da AB Nascentes das Gerais, dona das concessões MG-050, BR-265 e BR-491 entre os estados de SP e MG.

Outros novos entrantes no setor de concessões rodoviárias dos últimos anos que estão investindo pesado incluem a Way (no Mato Grosso do Sul) e a Monte Rodovias, que atua no Nordeste. A EPR (formada por Equipav e Perfin), venceu o leilão da BR-040, entre Belo Horizonte e Juiz de Fora (MG) este ano.

“Outros fundos como Kinea e XP, estão usando as debêntures incentivadas para oferecer investimentos em infraestrutura, além disso, o dólar valorizado atraiu grupos de fora para entrar no setor”, diz Gallacci.

As repactuações de concessões antigas ganharam fôlego com a criação da SecexConsenso, órgão de conciliação do Tribunal de Contas da União (TCU) para discutir formas de obter um acordo sem a necessidade de romper os contratos em vigor – o que exigira pagamento de indenizações e um novo processo de licitação que duraria no mínimo dois anos.

As três repactuações que estão previstas para serem concluídas este ano tiveram as negociações interrompidas na SecexConsenso, com a recente decisão da Advocacia-Geral da União (AGU) de exigir participação nos acordos.

A iniciativa foi duramente criticada por todos os segmentos que atuam no setor de concessões. Após muita pressão política, a AGU recuou da exigência.

"A saída da AGU dos acordos costurados na SecexConsenso busca evitar conflitos de interesse, pois como a AGU advoga para o setor público, pode afastar o setor privado e pode criar instabilidade na área de concessões”, afirma Ane Elisa Perez, sócia do escritório Ane E. Perez advogados e especialista em direito público e de infraestrutura.

De acordo com Perez, o governo federal planejou para este ano iniciar e concluir 60 projetos para o setor rodoviário, com apoio do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), o pacote de infraestrutura federal.

"Dos R$ 288 bilhões em investimentos previstos pelo PAC no setor de Transportes, R$ 188 bilhões estão dedicados para o setor rodoviário, que virou prioritário para o governo", diz ela.