A confusa largada do governo federal, com anúncios de ministros durante a posse acenando com a revisão de marcos regulatórios e contratos de concessão, foi atenuada depois que a declarações dos ministros acabaram sendo desautorizadas pelo núcleo do governo próximo ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Mas a crise institucional criada com as depredações em Brasília, no domingo, 8 de janeiro, causou mal-estar e acendeu um alerta no setor privado, em especial entre os empresários da área de infraestrutura — marcada por investimentos amarrados por contratos de longo prazo e com grande aporte de recursos.

A expressão insegurança jurídica resumiu a desconfiança do setor, e motivos não faltam. Apenas em 2022, de acordo a Abdib (Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base), os investimentos privados na área de infraestrutura chegaram a R$ 131 bilhões, o maior valor desde 2003.

“O PPI (Programa de Parceria de Investimentos), iniciado no governo Temer e com seguimento no governo Bolsonaro, foi fundamental para atrair o setor privado”, afirma Venilton Tadini, presidente da Abdib.

Na contramão, os investimentos públicos foram de apenas R$ 31,9 bilhões no ano passado, o segundo pior resultado em 16 anos — só perdendo para os R$ 29 bilhões de 2021.

O resultado mais visível desse desinvestimento público são as cerca de 8,6 mil obras paradas com recursos da União espalhadas pelo País, cujo índice aumentou 38% nos últimos dois anos.

Ou seja, além de o Estado estar investindo cada vez menos em infraestrutura, a possibilidade de o novo governo mexer em contratos em curso ou na autonomia de agências reguladoras criaria a fórmula perfeita para afugentar investidores privados.

O déficit de investimento público em infraestrutura é crônico. O Brasil investe menos de 2% do PIB ao ano no setor, quando o ideal seria que a média fosse de 4,5% do PIB. “Segurança jurídica exige previsibilidade, regras conhecidas e, sobretudo, a garantia de que, não havendo alterações graves no cenário, essas regras serão executáveis”, afirma Alexandre Vitorino, gerente de estratégias jurídicas da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

O grau de incerteza jurídica espelha um velho problema nacional. De acordo com a CNI, a participação do Brasil no ranking de segurança jurídica da Limited Government Powers, que avalia 96 países, caiu da 41ª, em 2018, para a 51ª posição no ano passado.

Arranjo político

A desconfiança do setor começou a virar realidade já na composição do novo governo, com 37 pastas. O antigo Ministério da Infraestrutura foi dividido em dois – um de Transportes, que vai cuidar de rodovias, ferrovias e mobilidade urbana; e outro de Portos e Aeroportos. O setor de saneamento foi deslocado para uma terceira pasta, o Ministério de Cidades.

Na estreia do novo governo, no dia 1º de janeiro, uma medida provisória e um decreto mexeram nas atribuições da ANA (Agência Nacional de Águas), que elaborava as normas de referência de saneamento, esvaziando suas competências. A repercussão foi tão ruim que o governo recuou e manteve as atribuições da ANA.

“Apesar de o recuo do governo ter causado boa impressão, mostrando que está disposto a dialogar, a percepção de que falta ao governo uma ideia clara de como atuar no setor gerou apreensão”, diz Percy Soares Neto, diretor executivo da Abcon, associação das operadoras privadas de saneamento.

A Abcon pretende entregar esta semana ao governo federal um documento com sugestões de estratégias para a universalização dos serviços de água e esgoto. O segmento de saneamento é um dos mais suscetíveis à insegurança jurídica.

A aprovação do marco regulatório do setor, por meio da Lei 14.026/2020, já gerou investimentos públicos e privados da ordem de R$ 80 bilhões (incluindo R$ 30 bilhões em outorgas), desde que entrou em vigor, em 2020.

Com o marco regulatório, a participação da iniciativa privada em programas de saneamento subiu 14% em 2019 para 23% em 2022. Ao todo foram aprovados 22 projetos.

Os modelos de negócio incluem concessões e parcerias público-privadas (PPPs) em 6 estados, além da privatização da Corsan, no Rio Grande do Sul. Outros dez projetos estão em fase de estudo. Procuradas pelo NeoFeed, empresas do setor deixaram claro que esperam a manutenção do marco e das regras estabelecidas em contratos pelo novo governo.

“A Aegea entende que, para atingir a universalização estabelecida pelo novo marco regulatório do setor, são necessários grandes investimentos em um ambiente de segurança jurídico-regulatória, e que se ampliem os mecanismos de financiamento, além da complementaridade e atuação integrada com a gestão pública”, afirmou em nota a empresa, líder do setor privado na área de saneamento, presente em 154 municípios.

Outra gigante do setor, a BRK – com atuação em mais de 100 municípios –, também em nota, defendeu a manutenção da ANA como agência responsável pela edição de normas de referência para o saneamento.

A empresa lembra que existem 86 agências reguladoras de saneamento com atuação infranacional e atribui à ANA a uniformização da regulação da área. “A continuidade da harmonização e qualificação da regulação pela ANA dá estabilidade institucional e jurídica, que são fundamentais para atrair investimentos e garantir qualidade na prestação dos serviços de saneamento básico”, diz um trecho da nota da BRK.

Apesar do mal-estar, o temor de mexidas no marco regulatório não é compartilhado por Ítalo Joffily, sócio-diretor da Y.SanSo, operadora de concessões de saneamento criada por executivos do mercado e spin-off da Hidroconsult, empresa de engenharia consultiva.

“Não acredito que vai ter retrocesso, o marco do saneamento não volta atrás. O Poder Legislativo não teve apoio político para fazer a Lei 14.026/2020 com tudo o que precisa e quem está fazendo isso é o STF, cobrindo os buracos da lei”, diz Joffily, um dos maiores especialistas do setor.

Segundo ele, o governo não tem força fiscal, em termos de investimento, para resolver o déficit de saneamento. Ele acredita que o pragmatismo do presidente Lula deve prevalecer. “O governo federal pode apoiar os municípios pequenos, que não têm corpo técnico para elaborar um projeto de longo prazo, ajudando com linhas de crédito ou na elaboração de modelagens próprias”, diz Joffily.

Com o caixa enxuto no fim da gestão, porém, o governo Bolsonaro reduziu em 99,5% o orçamento para a área de saneamento em 2023, preocupando o setor.

Planejamento estratégico

Para o acadêmico Paulo Resende, coordenador do Núcleo de Infraestrutura e Logística da Fundação Dom Cabral, a divisão do antigo Ministério da Infraestrutura não causa preocupação.

O que interessa, segundo ele, são os dois ministérios que vão concentrar o planejamento estratégico de infraestrutura: a Casa Civil, comandada por Rui Costa, e o Ministério do Planejamento, liderado por Simone Tebet. Os dois nomes têm boa articulação com o setor privado.

A Casa Civil, por exemplo, concentra órgãos de fomento como o PPI, a EPL (Empresa de Planejamento Logístico) e a Valec, empresa pública ligada a investimentos ferroviários. Já o Ministério do Planejamento, além de pensar a área de infraestrutura a longo prazo, terá o papel de fazer um contraponto ao Ministério da Fazenda, por meio de uma equipe técnica próxima ao mercado nomeada nesta quarta-feira, 11 de janeiro.

As demais pastas (Transportes, Portos e Aeroportos, Cidades e Minas e Energia) são todas de execução. Em termos de gestão, Resende vê riscos para os novos modelos de exploração ferroviária pela iniciativa privada.

Nos últimos quatro anos, o setor de ferrovias contabilizou R$ 61 bilhões de investimentos, entre leilões de novos trechos, renovações antecipadas de concessões e construção de uma nova ferrovia pela iniciativa privada. Ele cita a ameaça ao regime de autorizações dos estados, destravado em 2015 e adotado em Minas Gerais e Mato Grosso para escoar minério e grãos.

“Não podemos ter diferentes modelos de logística integrada nem modelos conflitantes entre estados e a federação, essa é a grande ameaça”, avisa. Para atrair investimentos, Resende diz que o governo federal precisa primeiro conquistar a iniciativa privada e depois apresentar ideias para obter investimento público de longo prazo.

“Se inverter, com o BNDES começando a emprestar dinheiro para projetos de infraestrutura, o governo não criará confiança, e sim dependência – e temos um histórico de que isso não funciona”, diz.

Privatizações

O capital privado também vem investindo em outras áreas de infraestrutura. Na última década, os aeroportos de Viracopos (Campinas), Confins (Belo Horizonte) e Gilberto Freyre (Recife) e Congonhas (São Paulo) passaram a ser administrados por consórcios nacionais ou estrangeiros pelo modelo de concessão.

No governo Bolsonaro, por sua vez, houve impulso nas privatizações, como da Eletrobrás (que movimentou R$ 34 bilhões), na venda de ativos e subsidiárias da Petrobrás, além da desestatização de portos, começando pelo de Vitória (ES).

As concessões de rodovias federais também ganharam destaque, com 12 mil quilômetros de 7 rodovias federais passando para a gestão privada. O governo arrecadou R$ 48 bilhões.

A expectativa é que, nos próximos seis anos, mantido o cronograma, outros 27 mil quilômetros sejam transferidos para gestão privada, o que deve representar quase R$ 140 bilhões de investimentos.

O novo governo, porém, ainda não se manifestou sobre as nove concessões envolvidas em processo de relicitação, que se arrastam há mais de dois anos. Alguns ativos foram devolvidos e ainda não têm expectativa de um desfecho final. A última concessão a integrar o grupo foi a do Aeroporto do Galeão.

A concessionária RIOGaleão passou por mudanças acionárias, enfrentou problemas com a paralisação do mercado de aviação durante a Covid, acumulando prejuízos de R$ 7,5 bilhões, e entrou com pedido de devolução amigável da concessão.

Antes dela, concessões como Via-040 (BR-040), MS Via (BR-163/MS), Concebra (BR-060/153/262), Autopista Fluminense (BR-101/RJ), Rodovia do Aço (BR-393), Aeroporto de Viracopos e São Gonçalo do Amarante (RN) já haviam feito a devolução dos ativos.

A Rota do Oeste, que opera um trecho da BR-163 no Mato Grosso, obteve um desfecho favorável. Desde 2016 concessionária buscava alternativas para conseguir retomar o cronograma de duplicação previsto no contrato, após o recuo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em conceder o financiamento de longo prazo ao projeto.

Outros problemas que afetaram economicamente a empresa, como o aumento expressivo do valor dos insumos de petróleo, agravaram a situação. Em dezembro de 2021, a Rota do Oeste chegou a protocolar o pedido para devolução amigável do contrato de concessão da BR-163/MT.

O processo levaria a rodovia a uma relicitação para escolha de uma nova concessionária para retomar as obras. O prazo poderia levar até 5 anos para que a duplicação voltasse a ocorrer. “Mas durante o trâmite legal, o Governo de Mato Grosso e a Rota do Oeste identificaram uma saída mais benéfica para a população, com previsão de retomada das obras ainda em 2023”, afirma a concessionária em nota.

Ela inclui a troca de controle acionário da empresa, que será assumido pela MT Par (empresa de economia mista do Estado de Mato Grosso) em substituição à majoritária Odebrecht Transport. Ainda no primeiro trimestre de 2023, a negociação deve ser concluída e a MT Par passa a ser a nova acionista da Rota do Oeste.

Os casos de relicitação comprovam os riscos de insegurança jurídica na área de infraestrutura. “Qualquer medida do novo governo federal que mexa nos processos de concessões é retrocesso”, adverte Marcus Quintella, diretor da FGV Transporte, área da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro que pesquisa o setor.

Sobre as concessões, ele cita o caso do modal rodoviário, por onde passam 65% das cargas que circulam pelo país. Levantamento da CNT mostra que apenas 13% das rodovias são pavimentadas e, desse total, cerca de 60% estão em condições péssimas, ruins ou regulares.

Há uma expectativa de que o perfil da gestão petista, que sempre viu com desconfiança as concessões de rodovias, privilegie um modelo mais próximo das PPPs, para evitar pedágios elevados.

Outro problema crônico ronda o setor: a falta de recursos. Embora a área de infraestrutura do governo federal tenha sido contemplada com um orçamento de R$ 20 bilhões – o triplo da gestão Bolsonaro --, o valor é insuficiente para resolver os inúmeros problemas.

Tadini, da Abdid, porém, adverte que a participação da iniciativa privada, embora fundamental, não vai resolver o problema de expansão do setor. O Estado precisa aportar recursos. “Se o governo transfere 22% da malha rodoviária para o setor privado, por exemplo, significa que 80% seguem sem concessão e investimento”, diz.

Apenas para recuperar as rodovias pavimentadas do Brasil, seriam necessários R$ 94 bilhões. “Para ter infraestrutura integrada, unindo modais rodoviários, ferroviários e portuários, o dinheiro público é primordial, é assim na maior parte do mundo”, diz Quintella, da FGV Transporte. “Mas, nos últimos 20 anos, o Estado tem investido menos de 1% do PIB em infraestrutura de transporte, e não será nos próximos quatro anos que isso vai mudar.”