Após seguidos adiamentos, o Ministério dos Transportes ainda luta contra o tempo para anunciar a versão completa do Plano Nacional de Ferrovias – um pacote de investimentos de R$ 138,6 bilhões distribuídos em 15 ativos, com expectativa de 19 mil quilômetros de extensão de trilhos, de acordo com as primeiras informações divulgas nas últimas semanas pelo próprio governo federal.

O fato de o anúncio da versão final do plano ter sido adiado várias vezes reforça que ainda há pontos-chave em aberto da modelagem proposta, incluindo aportes, repactuação de concessões existentes e gargalos regulatórios, entre eles, definição de direito de passagem e agilidade para liberar licenciamentos ambientais.

A intenção do Ministério dos Transportes é atacar em várias frentes: além de passar cerca de 4.700 quilômetros de ferrovias para a iniciativa privada, por meio de seis leilões até 2027, estão previstas a construção ou conclusão de projetos existentes.

Técnicos da Pasta vêm se debruçando há meses para montar um plano de negócios para levantar recursos, com consultas a banco de fomento e apresentação de ativos para empresas de dentro e fora do País interessadas em participar dos leilões.

O governo espera levantar cerca de R$ 30 bilhões para bancar o chamado “gap de viabilidade” dos projetos, por meio de um modelo híbrido: concessões com aportes públicos para cobrir a diferença entre o custo da obra e o retorno esperado, outorgas a serem pagas pelas concessionárias e indenizações por ativos que foram abandonados.

O ministro Renan Filho, dos Transportes, apresentou os principais pontos previstos pelo pacote em encontro com investidores em Nova York, em 15 de maio. No dia seguinte, porém, veio o primeiro golpe - o Tribunal de Contas da União (TCU) recusou a admissibilidade do pedido de repactuação da concessão da ferrovia Malha Oeste, operada pela Rumo, indicando a necessidade de uma nova licitação.

A proposta prioritária de leilão para o setor é o corredor Fico-Fiol, formado pelas ferrovias de Integração Centro-Oeste e de Integração Oeste-Leste – uma rota com cerca de 2.400 quilômetros, que corta o Centro-Oeste em direção ao litoral baiano. O projeto tem o maior investimento previsto, de US$ 5,1 bilhões (R$ 28,5 bilhões). O leilão deverá ocorrer em junho de 26.

Outros dois projetos têm data marcada para leilão. O Anel Ferroviário Sudeste, com 170 quilômetros e acesso ao Porto do Açu (RJ), está orçado em US$ 803 milhões (R$ 4,5 bilhões) e certame agendado já para dezembro.

O terceiro leilão anunciado é o da Ferrogrão, previsto para julho do ano que vem, que ligará Sinop (Mato Grosso) a Miritituba (Pará), com uma extensão de 933 km e investimento de R$ 20 bilhões. O projeto, porém, ainda aguarda finalização do processo de licenciamento ambiental e aprovação pelo TCU.

Especialistas ouvidos pelo NeoFeed apontam várias dúvidas sobre as propostas e a viabilidade do pacote. Um ponto que chama a atenção é a ausência de uma visão de Estado em relação ao posicionamento logístico global do Brasil.

Boa parte dos projetos visa ao escoamento de exportação do agronegócio, uma commodity que alimenta o mundo, mas essa visão de Estado não estaria sendo levada em conta no plano do governo, que vai mais na direção da solução por menor custo de escoamento do que no interesse estratégico do País no longo prazo.

Custo logístico

A malha ferroviária do Brasil tem 30.653 km de extensão, dos quais 19 mil km se encontram ociosos — ou seja, são utilizados apenas 26% da capacidade instalada, de acordo com levantamento do TCU.

Estudo do Observatório do Custo Brasil, ferramenta desenvolvida pelo Movimento Brasil Competitivo (MBC) em parceria com o Ministério da Indústria e Comércio (MDIC) e com apoio técnico da Fundação Getúlio Vargas (FGV), indica que uma redistribuição eficiente da carga entre os modais — rodoviário, ferroviário e cabotagem —, reduziria o custo logístico do País em R$ 244,4 bilhões.

Hoje, 71% das cargas são transportadas pelo modal rodoviário. As ferrovias respondem por 19% e a cabotagem, pouco menos de 10%. Uma redistribuição visando ampliar a carga transportada por ferrovias para 33,6% e cabotagem para 11,5% - em detrimento do transporte rodoviário, recuando para 55% - diminuiria o custo logístico por tonelada transportada em 12,9%.

Para Tatiana Ribeiro, diretora-executiva do MBC, a ampliação do modal ferroviário esbarra em dois desafios. O primeiro deles é completar a regulamentação do Marco Legal das Ferrovias, aprovado em 2021.

“Entre os temas não regulamentados estão a desapropriação de áreas ao redor de linhas férreas, devolução trechos de concessões abandonados e normas para maior aproveitamento de malha”, diz ela.

Outro desafio diz respeito ao modelo de autorização – pelo qual empresas privadas podem assumir pequenos trechos, sem precisar passar pelo processo de concessão.

“A maioria dos pedidos de autorização ainda não saiu do papel e o desenho do modelo é falho, pois como o investimento privado é feito em poucas distâncias, avança pouco em conectar grandes polos”, afirma a diretora executiva do MBC.

Paulo Resende, coordenador do Núcleo de Infraestrutura e Logística da Fundação Dom Cabral, chama de “ambiciosa” a iniciativa do governo, mas adverte que o Brasil acordou tarde para o problema, sob pressão do agronegócio.

“O rápido avanço do granel agrícola para exportação está inviabilizando seu escoamento pelo modal rodoviário - a partir de distâncias superiores a 500 km, o custo logístico do transporte por rodovias perde para o de ferrovia”, diz.

Isso explica por que boa parte dos planos de expansão ferroviária passa pela rota de exportação do agronegócio, cortando a Região Centro-Oeste em direção ao Arco Norte – como o projeto da Ferrogrão, beneficiando exportação para Estados Unidos e Europa – e do porto de Chancay, no Peru, em direção à China.

Para Resende, o governo precisa atrair a iniciativa privada, uma vez que não tem recursos para bancar o investimento. Numa conta simples, ele lembra que a construção de um quilômetro de ferrovia custa R$ 25 milhões. Os 19 mil km projetados pelo governo, portanto, vão demandar R$ 470 bilhões, ou cerca de US$ 80 bilhões.

Corredor FICO-FIOL

Trajeto da Ferrogrão

Anel Ferroviário do Sudeste

Ferrovia Transnordestina

Ferrovia Norte-Sul

“Nos últimos 25 anos, o Brasil investiu o equivalente a US$ 30 bilhões por ano em infraestrutura, incluindo capital público e privado”, prossegue. “Portanto, mesmo com apoio de financiamentos de BNDES e de títulos de infraestrutura, sem dinheiro privado pesado não haverá ferrovias.”

As opções de investimento privado podem vir mirando a exportação de grãos via Arco Norte ou Chancay. Para Resende, empresas embarcadoras nacionais de granel agrícola, biocombustível, etanol de celulose e commodities, a princípio, teriam interesse de entrar no jogo.

“Mas só investirão se tiverem demanda garantida”, diz o especialista, acrescentando que, dos 19 mil km de linhas oferecidas, cerca de 4 mil km são de interesse imediato de quem opera no Brasil. “Minério e aço não contam, seus produtores já têm linha própria.”

Entre as empresas estrangeiras cotadas, as chinesas são as com mais interesse em investir no escoamento de grãos brasileiros pelo porto de Chancay, no Peru, operado pela chinesa Cosco.

Visão estratégica

O pesquisador da Fundação Dom Cabral adverte para o que chama de falta de visão de Estado por trás do plano do governo, que prevê a construção de um dos maiores corredores logístico ferroviários do mundo.

“Estamos definindo o posicionamento logístico global do Brasil e ninguém se deu conta do peso da China nesse processo”, diz. “Alguma dúvida de como será definido o preço de logística para granel agrícola, caso as empresas chinesas controlarem ferrovia e porto, como já ocorre hoje com Chancay?”

Ele cita o exemplo da Vale, que opera a mina, a ferrovia e o porto de escoamento de minério: “Isso define a competitividade global da empresa.”

Outro especialista em infraestrutura ferroviária, Marcus Quintella, diretor executivo da FGV Transportes, destaca o risco de o governo se propor a apresentar um plano estruturante de ferrovias faltando pouco mais de um ano para terminar o mandato.

À parte isso, aponta duas barreiras que ameaçam o pacote do governo, uma de ordem financeira e outra, operacional. “Construir ferrovias exige um investimento bilionário do Estado que, sabemos, simplesmente não existe”, diz ele, lembrando que o dinheiro a ser obtido com repactuações de concessões será insuficiente para colocar os projetos de pé.

Segundo Quintella, está claro que o plano depende fortemente de investimento privado, e ele só virá com demanda de carga definida, projeto bem estruturado e segurança regulatória.

“Não temos nenhum exemplo de construção de ferrovia no País que tenha cumprido o cronograma previsto”, afirma. “A Ferrovia Norte-Sul é um exemplo clássico: mesmo sem ter grandes desafios geográficos para tocar a obra, levou 40 anos para ser construída e não está inteiramente pronta até hoje.”

Quintella também adverte sobre a falta de perspectiva de integração das linhas. Ele não viu maiores informações sobre isso no que foi divulgado do plano, e lembra que não adianta prometer construir ferrovia sem integração bem definida com rodovia, hidrovia e portos, a chamada interoperabilidade.

Como exemplo, o especialista da FGV cita a Fiol, que já tem 75% da obra concluída, mas ainda depende da construção do porto em Ilhéus, que ainda não saiu do papel.

“Também precisamos resolver outro problema regulatório que persiste, o direito de passagem, essencial na formação de corredores ferroviários”, diz. “O corredor Fico-Fiol – prioritário no plano do governo – prevê a conexão com a ferrovia Norte-Sul, operada por outra concessionária, mas sem definir direito de passagem, o corredor fica inviável.”