Qual o sabor da jurubeba? E aparência da carqueja? Boldo pode ser mais do que remédio? Se na gastronomia chefs como Alex Atala, Rodrigo Oliveira e Mara Salles já se apropriaram de nossos ingredientes e fazeres culinários para criar uma cozinha autenticamente brasileira, reconhecida inclusive no exterior, nos bares a presença de ervas, raízes, cascas e plantas nativas ainda é tímida e seus sabores pouco explorados.

É uma cachaça com jurubeba aqui, uma catuaba ali. Quiçá uma flor de jambu para finalizar e divertir a língua nos coquetéis mais ousados. Mas desde que decidiu incrementar com drinques a carta do Espaço Zebra, galeria de arte e bar inaugurado por ela e o marido e artista Renato Larini, em 2012, em São Paulo, a pesquisadora e mixologista Néli Pereira começou a mudar o rumo dessa história.

“Vi que lá fora tinha um boom dessa coquetelaria apotecária, de ingredientes, e ainda havia muito espaço para trabalhar por aqui. Não existia uma pesquisa sobre isso. No fim, só fui fazer coquetéis por causa do Brasil”, diz ela, que também é Mestre em Estudos Culturais Latino-Americanos pela Universidade de Londres.

Com esse olhar desenvolveu, ao longo dos anos, drinques completamente autorais, como o Mastruz Aires, que leva chá de mastruz, cachaça branca, melaço de cana e Fernet-Branca. Ela também fez sua própria versão da Mimosa, que combina tintura das sementes de urucum à mistura de suco de laranja e espumante.

E reinterpretou clássicos, como o Maués, inspirado no Old Fashioned, que leva guaraná caseiro, bourbon infusionado com piprioca e guaraná ralado na língua do pirarucu.Criações que já puderam ser vistas no balcão do Zebra e em cartas feitas especialmente para casas como o hotel Arpoador (RJ) ou o restaurante A Baianeira (SP).

Os mais de dez anos de pesquisa sobre ervas e plantas medicinais brasileiras e suas “cruzas” com a cultura popular, seus encantamentos, crenças e rituais, culminaram no livro “Da Botica ao Boteco - Plantas, garrafadas e a coquetelaria brasileira”, que será lançado na próxima semana pela editora Companhia de Mesa. Trajetória que a alçou a consultora de bebidas em projetos e desenvolvimento de produtos em multinacionais do setor como Ambev, Campari e Pernod Ricard.

Maués: guaraná caseiro, bourbon infusionado com piprioca e guaraná ralado na língua do pirarucu

Por menos grapefruit e mais jucá nas taças e balcões, Néli nos conduz numa narrativa hipnótica à origem dos drinques botânicos, muitos deles nascidos de elixires, garrafadas e panaceias que atravessam o tempo, continentes, territórios, fronteiras religiosas e barreiras sociais. Que vão do uso medicinal das plantas por estudiosos, alquimistas, curandeiros, benzedeiras e povos originários aos terreiros, monastérios, laboratórios, castelos e feiras populares.

“A pesquisa me levou para esses lugares. Assimilei esses conhecimentos do jeito que me passaram e estou aqui como uma espécie de interlocutora de algo que não é meu, mas que tive muito cuidado em passar adiante”, explica a autora. Mais do que receitas, a proposta do livro é apontar caminhos para o desenvolvimento de uma coquetelaria genuinamente brasileira, baseada em nossas plantas, seus sabores ímpares e possibilidades de combinação, sem deixar de lado toda a ritualística, encantamento e histórias da cultura popular.

A proposta do livro é apontar caminhos para o desenvolvimento de uma coquetelaria genuinamente brasileira

É permitir que as pessoas se apropriem de conhecimentos milenares acumulados sobre nossa flora para ressignificá-la com todo potencial de sabor. Indo da mata ao bar com propriedade e orgulho, curando a “doença brasileira de achar que o nosso é pior ou menos valoroso”.

“A coquetelaria é parte da gastronomia. Temos de nos colocar como parceiros dos chefs. Fica até feio pensar hoje em um restaurante de comida brasileira sem uma coquetelaria a altura”, afirma Néli. “Só vamos conseguir espaço no mercado e na indústria para viabilizar nossos projetos quando estivermos lado a lado, com um trabalho autoral importante.”

Em entrevista exclusiva ao NeoFeed, a autora fala sobre o potencial dos botânicos brasileiros dentro e fora da coquetelaria.

Você começou a pesquisar e falar sobre a valorização de botânicos brasileiros na coquetelaria há dez anos. De lá para cá, houve um avanço?
O cenário mudou radicalmente e tem um movimento acontecendo. Antes não se encontrava drinks com fava de Aridam, priprioca ou cumaru. O fato de ter levado isso como pesquisa e explorado o uso contribuiu, mas também houve um amadurecimento da própria coquetelaria e a necessidade dos bares se diferenciarem. Hoje, mesmo quem não trabalha focado em coquetelaria brasileira usa ingredientes nacionais nos preparos porque começou-se a entender que o Brasil também oferece elementos complexos para bebidas.

"Mesmo quem não trabalha focado em coquetelaria brasileira usa ingredientes nacionais nos preparos"

Mas ainda temos muito a evoluir?
Esse é um movimento que precisa sair de São Paulo. Os bartenders de cada região precisam aprender a trabalhar com ingredientes locais. Temos que valorizar um pouco menos o que vem de fora. O que não falta é erva amarga para fazermos nossas versões de bitter, por exemplo. Meu trabalho futuro é divulgar essas pesquisas sobre ingredientes, formas de fazer e técnicas para que mais gente no Brasil inteiro tenha acesso. E isso estimule a surgirem ainda mais estudos.

Durante a pesquisa você foi para muitos cantos do País, entrando nas matas, visitando benzedeiras, herbários, tribos indígenas, terreiros e feiras populares em busca de um conhecimento que foi apagado pela colonização. Como foi se sentir estrangeira na sua própria terra?
Em alguns momentos, quando o conhecimento não era óbvio, tinha um encantamento. Em outros, foi muito incômodo. A sensação de entrar na Mata Atlântica (experiência guiada pelo pajé Pitotó, da aldeia Awa Porun-gawa Dju, em Peruíbe, no litoral sul de São Paulo, durante uma imersão de três dias sobre fitoterapia indígena) e descobrir que poderia já ter passado mil vezes ao lado da jurubeba ou da carqueja sem saber o que era me espantou. Como perdemos esse elo? Foi um choque pensar que o que é nosso virou exótico. Aquele momento foi crucial para a pesquisa.

"A sensação de entrar na Mata Atlântica e descobrir que poderia já ter passado mil vezes ao lado da carqueja sem saber me espantou. Como perdemos esse elo?"

Apesar de citar no livro várias ervas, raízes e cascas nativas com potencial para a coquetelaria, você optou por se aprofundar em apenas nove ingredientes. Como foi feita essa seleção?
Eu queria ter feito essa minúcia com quase todos, mas não cabe tudo. A escolha acabou sendo feita pelos que eram mais populares nas garrafadas, mais abundantes em todo Brasil e realmente nativas. Boldo, carqueja, catuaba e jurubeba não podiam faltar porque dão como mato no país todo. O jucá é exceção nessa regra porque ele é abundante no Norte, mas é um ingrediente muito especial. Adoraria ter falado mais sobre a fava de Aridam, por exemplo, mas ela veio com os povos escravizados.

Dessas, quais foram as mais desafiadoras?
Até hoje, a carqueja é muito difícil de trabalhar. Mas nenhum ingrediente se perde. Uns são mais pops, outros mais desafiadores, mas se não dá certo para uma coisa, serve para complementar outra. Milome mesmo, jamais faria algo só com ele. É muito amargo, terroso, diferente, mas cai muito bem para quebrar algo superdoce ou achocolatado. A beleza de trabalhar com diversos ingredientes é criar um vocabulário, um repertório, que te leva a acertar. Meu herbário é como uma biblioteca. A hora que me falta um sabor, eu sei para onde ir.

E qual erva se tornou sua preferida?
Minha preferida é a jurubeba. Quando encontro um pé não resisto, ela é muito interessante. Mas também gosto bastante do macaçá (apesar de não ser brasileiro), da priprioca, do cheirinho de vó da malva-cheirosa - tenho seis pés plantados. Mas a que realmente aprendi a trabalhar foi a catuaba.

Quantas garrafadas já testou nesses dez anos?
Foram centenas. No herbário do Zebra, hoje, tenho mais ou menos 80 ingredientes infusionados em diferentes bases alcoólicas. Já aconteceu de descobrir novas plantas medicinais em viagens e começar as garrafadas lá mesmo, durante as férias, para não perder o ingrediente que não iria durar na mala até a minha volta.

As ervas, em geral, têm uma base amarga. Como desenvolver esse paladar?
Você desenvolve sabores amargos à medida que permite que seu paladar seja mais curioso. O brasileiro é preguiçoso para provar coisas novas. Mas evoluir o paladar é uma viagem sem volta. Quando se tira da frente o que mascara o gosto, como o açúcar, você começa a descobrir a complexidade do ingrediente em si. A maioria das ervas tem um amargor, mas algumas surpreendem. O macaçá, por exemplo, tem um doce herbal, de coco, baunilha. O cipó-alho é salgado.

"Evoluir o paladar é uma viagem sem volta. A maioria das ervas tem um amargor, mas algumas surpreendem como o acaçá que tem um doce herbal, de coco, baunilha"

Numa escala de amargor, quais ervas você classificaria como mais e menos amargas? Como combiná-las?
O milome certamente vem no topo da lista. Seguido da carqueja, catuaba, boldo e jurubeba, que tem um umami muito gostoso. Sabores cítricos se complementam muito bem com o amargo.

No futuro, com o desenvolvimento de uma coquetelaria com ingredientes brasileiros, podemos esperar outros drinques para nos representar no exterior ao lado da caipirinha?
Não falta esforço da comunidade de mixologistas para levar nossa coquetelaria para fora, mas acho que falta mais protagonismo do que é nosso nesse trabalho. A coquetelaria mundial está valorizando muito os produtos locais, mas ainda é pouquíssima coisa que chega do Brasil lá fora. É o que aconteceu com a gastronomia. Só quando os chefs brasileiros saíram daqui com tucupi, tacacá e pirarucu para mostrar a nossa biodiversidade é que ela fez sucesso. Enquanto não fizermos isso seremos apenas mais um.

"Não falta esforço da comunidade de mixologistas para levar nossa coquetelaria para fora"

Você sente que também há interesse das indústrias de bebida pelos ingredientes brasileiros?
Sim. No Norte e Nordeste já têm empresas produzindo cajuína, cachaça de jambu, licor de pequi. E tem muita coisa sendo explorada pelas grandes indústrias com frutas amarelas (como maracujá e caju), frutas vermelhas (por conta dos antioxidantes) e plantas com propriedades calmantes ou energéticas. Talvez em dois anos começaremos a ver muita coisa não só pelo viés do sabor, mas pela funcionalidade. Minha grande aposta é a catuaba.

As bebidas funcionais e destilados não-alcoólicos são uma forte tendência de consumo no exterior. Isso também conversa com a sua pesquisa?
A coquetelaria sem álcool fora do Brasil é um mercado gigante. Um dos maiores crescimentos da Diageo, por exemplo, é com uma linha de destilados sem álcool chamada Seedlip. Mas, um cuidado que tomei no livro é deixar claro que não existe drinque funcional. Se você chegar no bar com gripe, no máximo vou te falar para tomar chá de guaco. Embora tenha aprendido sobre as funcionalidades das plantas não aplico isso na hora de fazer um coquetel. Ali o que entra é o sabor.

Da Botica ao Boteco - Plantas, garrafadas e a coquetelaria brasileira
Néli Pereira
208 páginas
Impresso:R$ 59,90
Ebook:R$ 37,90
Lançamento: 29/09/2022
Selo: Companhia de Mesa