A informação não está no rótulo, mas é possível que o vinho que você bebe, além de uva fermentada, tenha um bocado de inteligência artificial (IA). Historicamente, a vinicultura sempre esteve profundamente ligada a práticas artesanais, o que confere a cada garrafa a expressão única da identidade de seu terroir e do estilo de seu produtor.
Mas, a tecnologia avança em ritmo acelerado e pode ser aplicada em todas as etapas de produção da bebida — do vinhedo à taça. Se vale a pena usá-la na cadeia inteira, porém, há controvérsias.
“Vejo a aplicação da IA com otimismo”, diz Sergio W. Bruxo, sommelier da Associação Brasileira de Sommeliers de São Paulo (ABS-SP), em entrevista ao NeoFeed. “Ela nos permite melhorar o cultivo das videiras, garantindo a produção de uvas de alta qualidade e processos de vinificação mais precisos, o que certamente resultará em vinhos melhores.”
Terceira maior vinícola do mundo, a chilena Concha y Toro é uma das pioneiras no uso de IA na América Latina. A plataforma Smart Winery integra dados de sensores no campo com algoritmos para prever a qualidade do vinho e o momento ideal para o fim da maceração, processo no qual se extraem as substâncias responsáveis por dar cor e aroma à bebida, entre outras características.
Graças à tecnologia, a companhia conseguiu economizar US$ 375 mil em tanques de fermentação e aumentou sua capacidade de processamento de uvas sem precisar investir em novos equipamentos.
Além disso, a IA também tem ajudado a vinícola a enfrentar os desafios impostos pelas mudanças climáticas, permitindo ajustes rápidos e estratégicos para garantir a sustentabilidade dos negócios e a qualidade dos vinhos a longo prazo.
Adoções semelhantes são vistas mundo afora. Na Austrália, o vinhedo Mount Langi Ghiran, do Grupo Rathbone, famoso por seu Shiraz, implementou soluções baseadas na tecnologia para monitorar os níveis de água na plantação e prever o melhor momento para a colheita.
Também conseguiu otimizar o uso de equipamentos e a logística de transporte, reduzindo custos e melhorando a qualidade do produto.
No Vale do Napa, em Oakville, nos Estados Unidos, a vinícola boutique Gamble Family Vineyards, detentora do Napa Green, certificação para viticultura sustentável, foi uma das primeiras da região a investir em tratores que utilizam IA.
Equipados com câmeras e sensores de 360 graus, os veículos analisam todos os dias o vinhedo, o que permite ajustes em tempo real e estimativas de rendimento a longo prazo. Ali, também é comum ver drones circulando sobre a propriedade, identificando doenças em videiras, medindo a densidade das vinhas e aplicando defensivos em plantas de difícil acesso.
O "sommelier digital"
No Brasil, a vinícola Arpuro, de Uberaba, no interior mineiro, já nasceu, em 2020, integrada à IA. “Temos um sistema de dados próprio que nos permite o controle de todas as etapas da produção e, com isso, temos entregado bons vinhos”, comemora Valério Marega Júnior, idealizador e sócio do projeto, em conversa com o NeoFeed.
“Este ano, a estimativa é de que produzamos 25 mil garrafas”, complementa Marega Júnior. E o melhor: ele consegue acompanhar tudo de São Paulo, onde mora e atua no mercado financeiro.
Entre os vários equipamentos da Arpuro, o idealizador do projeto cita como exemplo os tratores autônomos, conectados a um banco de dados.
“Se vamos pulverizar um produto nas vinhas, mas o centro de meteorologia prevê ventos fortes para o horário em que a tarefa estava programada, essas informações são cruzadas e o trator nem vai ligar. Essa decisão é tomada pela IA porque, nesse cenário, é entendido que o produto seria desperdiçado”, explica o sócio da vinícola Arpuro.
Além disso, com a ajuda da ferramenta, é possível identificar quais plantas não receberam as quantidades corretas de fertilizante. A ferramenta tem ajudado também na fase de vinificação. Se durante essa etapa houver alguma mudança de temperatura, um sistema emite o alerta e mostra exatamente em qual tonel está ocorrendo o problema. Assim, é possível agir imediatamente.
A IA também está sendo aplicada como uma poderosa ferramenta de vendas. A Concha y Toro implementou o Sommelier Digital, em teste em uma unidade do Carrefour, em São Paulo. Por meio de um quiz interativo, o programa indica o melhor vinho, conforme as preferências de cada consumidor.
“Muita gente fica perdida diante de tantas opções”, explica Pietro Capuzzi, country manager da Concha y Toro no Brasil, ao NeoFeed. “Pesquisas mostram que 58% dos rótulos nas prateleiras nem chegam a ser notados pelos clientes. Isso se traduz em frustração e, muitas vezes, em escolhas que não correspondem ao que o consumidor realmente gostaria de levar para casa.”
Graças ao Sommelier Digital, as vendas aumentaram 35%, conforme levantamento feito pela companhia. Agora, a Concha y Toro iniciou uma parceria com a rede Condor, de Curitiba, para, até o final do ano, levar o projeto para cinco novas lojas, em diferentes regiões do País.
O "enólogo meta-humano"
Mas a IA pode ir (muito) além dos cuidados com os vinhedos e as ações de marketing. Em tese, a ferramenta poderia ser aplicada em todos os processos de produção da bebida. O exemplo do alcance da tecnologia foi dado em março, durante a ProWein, em Düsseldorf, na Alemanha, uma das maiores feiras internacionais do setor.
No evento, a Wine of Moldova, marca nacional de vinhos da Moldávia, apresentou um tinto, um branco e dois cuvées (vinhos elaborados a partir da mistura de safras, geralmente as mais excepcionais) como um dos primeiros do mundo inteiramente desenvolvidas por um bot de IA — o Chelaris, conhecido como o "enólogo meta-humano".
O sistema foi utilizado para guiar todas as etapas do processo, da colheita e fermentação até a composição do blend e o design dos rótulos. Obviamente, o Chelaris não fez tudo sozinho. O robô foi criado por uma equipe multidisciplinar formada por enólogos, produtores de vinhos, especialistas em tecnologia e profissionais de marketing.
Apesar dos benefícios, os desafios do uso de IA na produção de vinhos ainda são grandes. Um dos principais é garantir a ética dos negócios e evitar a transformação da bebida em um produto excessivamente padronizado.
A combinação precisão tecnológica e sensibilidade humana ainda precisa ser ajustada para que cada rótulo preserve suas características mais particulares.
“A IA é bem-vinda como ferramenta de suporte, ajudando na compilação de dados, no gerenciamento de rotinas e na interpretação de análises complexas que orbitam a vinícola. No entanto, a criação de um vinho de qualidade é, e sempre será, um processo sensorial e artístico”, defende Mario Lucas Ieggli, vice-presidente da Associação Brasileira de Enologia (ABE), ao NeoFeed.
A vinícola italiana Marchesi Antinori, uma das melhores do mundo, serve de paradigma para o equilíbrio entre tradição e inovação, uma a serviço da outra. Fundada em 1385, na Toscana, já está na 26ª geração. Desde 2007, a família adotou a viticultura de precisão.
"O uso de IA certamente ajuda a melhorar e simplificar alguns dos processos de produção, além de tornar o trabalho no vinhedo e na adega mais fácil. Mas, estamos firmemente convencidos de que a abordagem artesanal é essencial na produção de vinho, para poder expressar a identidade do terroir e o estilo do produtor, juntamente com as características da safra e das variedades de uva", diz Renzo Cotarella, CEO e chief winemaker na Marchesi Antinori, em entrevista ao NeoFeed.
E ele completa: "Para nós, o toque humano sempre fará a diferença, especialmente quando se trata da identidade estilística do produto".