A sommelière Gabriela Monteleone, consultora em estratégia criativa para o setor de vinhos do grupo D.O.M, do chef Alex Atala, passou a enxergar a bebida muito além dos filtros cerimoniais que a cercam. Da terra à taça, olhando o vinho como alimento e produto agrícola e não como artigo de luxo. Parte desse processo de reflexão pode ser conferido no livro “Conversas Acerca do Vinho”, que acaba de lançar.

Responsável também pelas cartas de vinhos das casas das chefs Bel Coelho (Cuia Café e Clandestino) e Gabriela Barretto (Chou e Futuro Refeitório), Gabriela lançou em março de 2020, o projeto “Tão Longe, Tão Perto”, uma série de encontros e degustações virtuais com produtores de todo o mundo que fazem um trabalho fora da curva.

Com resgate de castas pouco valorizadas ou quase esquecidas, mínima intervenção nos vinhedos, metodologias e práticas que levam a um mercado mais ético e sustentável. “A ideia era pegar alguns temas que convergiam para o mundo do vinho tendo sempre os produtores no centro da narrativa”, diz Gabriela. E foram as mais de 20 conversas desse projeto online que deram origem ao livro

Diálogos com Sebastián Zuccardi, da Zuccardi; Marina Santos, da vinícola Unna (RS); Paz Levison, sommelière do grupo PIC, por exemplo, foram transcritos para explicar suas principais ideias e crenças sobre esse universo, indo da fruta e produção até o papel do vinho no mundo de hoje, “como ele pode ajudar na transformação do futuro”.

Ao longo das quase 300 páginas, a sommelière dá ferramentas para escolhas mais conscientes, que liberte o consumidor da padronização do paladar, da "visão colonizada" de vinho de qualidade, do marketing muitas vezes enganoso da indústria, e de uma imagem romantizada do pequeno produtor artesanal. A seguir, trechos da conversa em que se propõe a despertar para um futuro ético e regenerativo no mundo do vinho:

Trazer questões mais amplas sobre o universo do vinho é papel do sommelier moderno?
A abordagem está mudando, especialmente na América do Sul. Existe uma tentativa dos profissionais de tirar o vinho do lugar de artigo de luxo e colocá-lo como alimento, como produto da agricultura. Quando você está na sala do restaurante tem muito pouco tempo para dar uma orientação. E só falar de aromas, da ponta final, é muito vazio e superficial. Agora, contar a história por traz do rótulo ou a intenção de quem fez aquele vinho pode ser muito mais eficiente para contextualizar a escolha. Ter uma visão macro do mercado deveria ser papel de todo mundo.

Como despertar o consumidor para esse olhar?
Esse livro é uma tentativa de conscientizar cada vez mais as pessoas a questionar a maneira de consumir. A partir do momento em que se tem essa consciência você pode escolher suas batalhas. Se acha que é a agricultura, então vai buscar vinhos com agricultura mais ética. Se acha que é o lado social, então ele vai querer saber quem são as pessoas por trás dos rótulos. É difícil abraçar todas as lutas, mas é importante ter claro o que nos incomoda e o que enxergamos como possibilidade de mudança para tomarmos isso como norte na hora das escolhas. No mundo capitalista que vivemos as coisas só mudam se o consumo mudar. O consumidor tem uma força gigantesca.

"Com consciência você pode escolher suas batalhas. Se acha que é a agricultura, então vai buscar vinhos com agricultura mais ética. Se acha que é o lado social, vai querer saber quem são as pessoas por trás dos rótulos. É difícil abraçar todas as lutas"

E o consumidor sabe disso? Você sente esse movimento acontecer?
Tem muita gente preocupada com a questão da saúde e buscando produtos com menos intervenção. Ou buscando vinhos mais personificados, de produções artesanais e familiares, e menos commodities. É obvio que estamos, na história do mundo, sendo confrontado com essa mudança agora. Por isso o livro deixa muitas perguntas. A intenção é pensar junto. Ainda não temos fórmulas.

Qual é a sua batalha?
Um pouquinho de tudo. Mas, acima de tudo, comunicar com verdade o que está acontecendo. Hoje, tenho uma preferência enorme em trabalhar com vinhos de pessoas que já conheço, já apertei a mão, sobre as quais consigo falar com mais verdade. Acho que a agricultura é um ponto fundamental porque vai dialogar não só com a uva e, no fim do dia, com a qualidade do vinho, mas também com questões ambientais. A viticultura é uma monocultura muito potente, que simboliza muito do PIB de muitos países, e por isso é um ponto de atenção.

"A agricultura é um ponto fundamental porque vai dialogar não só com a uva e, no fim do dia, com a qualidade do vinho, mas também com questões ambientais. A viticultura é uma monocultura muito potente"

Você joga luz sobre o resgate de uvas consideradas menores por serem associadas a vinhos de garrafão como as variedades Isabel, Criolla, País. É mesmo possível fazer vinhos de qualidade com essas castas?
Não dá para pensar em vinhos feitos com variedades americanas tendo na cabeça aqueles feitos com variedades europeias. Isso reflete muito como o consumidor brasileiro ainda tem um olhar muito colonizado, que nos leva a acreditar que se não segue padrão europeu, não é bom. Você pode ter aqui uma agricultura primorosa com variedades americanas, como a uva Isabel, que são mais adaptadas e exigirão menos interferências, mas não esperar como resultado uma Cabernet Sauvignon.

É aceitar mais as características de cada vinho ou aprender a resgatar a alma dos vinhos, como você diz no livro?
Precisamos ter um olhar mais respeitoso para as particularidades de cada uva, cada vinho e filosofia para realmente entendê-los de forma realista. A partir disso começamos ver a alma de cada vinho. Porque tudo virou commodity, homogêneo, massificado, Coca-Cola. Quando a gente olha para o vinho de uma forma mais individualizada, aí sim consegue olhar para a alma dele. Mas se você quiser tomar um vinho Coca-Cola também, tudo bem. Contanto que você tenha esse olhar realista e respeitoso para o que você espera. Isso não é sinônimo de menos qualidade. É questão de verdade.

"Se você quiser tomar um vinho Coca-Cola, tudo bem. Contanto que você tenha esse olhar realista e respeitoso para o que você espera. Isso não é sinônimo de menos qualidade. É questão de verdade"

E como quebrar esse preconceito?
Quanto mais informação sobre o produto, mais teremos ferramenta para aguçar a curiosidade do consumidor. Claro que não são todos que estarão tão abertos, mas vai também da sensibilidade do profissional na hora de sugerir. Não adianta oferecer um vinho de Isabel para quem quer tomar um Malbec. Aí entra a importância e responsabilidade do sommelier de aproximar as duas pontas.

Algumas marcas de vinho estão produzindo seus rótulos acessíveis e de sucesso comercial em outras regiões do mundo, que não a original, para driblar questões fiscais. Como fica a “alma” nessa equação?
Isso para mim é corrupção. Você não pode fazer isso. É enganar o consumidor. Minha régua é mais curta. É por isso que são criados os sistemas de Denominação ou Apelação de Origem Controlada na Europa, porque se não vira o comércio pelo comércio. É preciso ter ética na hora de comunicar claramente o que se está fazendo e colocando na garrafa.

"Não adianta oferecer um vinho de Isabel para quem quer tomar um Malbec. Aí entra a importância e responsabilidade do sommelier de aproximar as duas pontas"

Todas as entrevistas do livro terminam questionando sobre a visão de cada um sobre o que é ética e sustentabilidade no vinho. Poderia você responder essas perguntas dessa vez?
Ética é justamente essa verdade. Ter responsabilidade com a informação que você está passando. Essa é a ética fundamental. Sustentabilidade, é um termo ainda muito usado, mas para mim, já está defasado como ideia. Hoje temos de falar de regeneração, porque o mundo já está colapsando. Não vamos conseguir sustentar nada se não começarmos a regenerar.

Um dos pilares nessa questão da sustentabilidade é o envase. Hoje já temos muitos vinhos em lata e bag-in-box. Como você vê essas alternativas?
De 30% a 35% do custo de uma garrafa de vinho é referente ao vidro, que tem maior custo de reciclagem, fora o peso que representa no transporte. O que impacta na pegada de carbono. Então, embalagens como o bag-in-box, os growlers retornáveis ou kegs (barris de inox de 20 litros, que salva do planeta 24 garrafas de vidro) são alternativas muito mais interessantes.

"De 30% a 35% do custo de uma garrafa de vinho é referente ao vidro. Embalagens como o bag-in-box, os growlers retornáveis ou kegs (barris de inox de 20 litros) são alternativas muito mais interessantes"

Como funciona seu projeto nesse sentido?
No fim de 2020 comecei a ensaiar uma curadoria de vinhos brasileiros para bares e restaurantes em growlers, que garante nas torneiras (as mesmas usadas para chopp) a qualidade do vinho como se ele estivesse na vinícola. Então, você tem um produto que preserva muito mais e é sustentável. Temos esse projeto já em diversos bares de São Paulo, Salvador, Curitiba e Rio de Janeiro, e tem tido uma adesão muito boa. Não tenho a pretensão de colocar um Romanée Conti dentro do keg, não é essa a proposta. Mas é um pontapé inicial de comunicação assertiva da produção de vinhos artesanais e familiares brasileiros.