A Resolução CVM 179, que determina novas regras para a divulgação de informações a respeito dos valores de remunerações que assessores de investimentos recebem, é uma nova onda gigante que se aproxima desse mercado.
Para aqueles menos cuidadosos na administração de seus conflitos, parecerá mais com a parede de um iceberg. A parte da norma que entra em vigor em novembro vai impactar diretamente a relação do assessor de investimentos com seus clientes. Todos os comissionamentos recebidos por assessores deverão estar claros e transparentes no momento da comercialização de qualquer produto de investimento.
Se a norma não obriga que esses comissionamentos sejam iguais, nem que as participações cruzadas do vendedor sejam informadas, ao menos ela torna clara para o investidor as diferenças de comissionamento entre os diferentes produtos. Dá ao investidor a chance de fazer sua própria análise com (quase) tudo às claras.
É notável a transformação do mercado financeiro na última década. O sisudo gerente do banco de terno e gravata que vendia títulos de capitalização deu lugar ao descolado assessor de investimentos de patinete e coletinho vendendo uma infinidade de produtos com nomes pomposos. Depois do tsunami de mudanças que redesenhou esse mercado para sempre, uma nova onda se aproxima para mudar tudo de novo.
Na época em que a XP vivia de cursos e formava seus agentes autônomos, investidores aprendiam a operar na Bolsa. Quanto mais o cliente operava, mais o assessor recebia de comissão.
Pouco importava se o cliente operava ações da Vale ou da Petro. Boas recomendações dariam bons trades e bons trades faziam clientes operarem mais. A corretagem era única e a comissão não era função do que o cliente operava, mas de quanto operava. Tudo certo!
A XP foi crescendo e outras plataformas surgiram seguindo seu modelo de “arquitetura aberta”. Guide, Órama, Necton, Toro, BTG Digital e tantas outras. Esses verdadeiros supermercados de produtos financeiros se tornaram cada vez mais populares e, como todo mercado, a variedade de produtos se tornou cada vez mais importante.
Chegaram centenas de fundos multimercados de gestoras com nomes criativos, que só não foram mais populares do que os patinetes que cruzavam a Faria Lima naqueles dias.
A CVM 179 dá ao investidor a chance de fazer sua própria análise com (quase) tudo às claras
Os juros baixos de alguns anos estimularam o investidor a assumir mais riscos e o volume de ativos sob custódia das plataformas cresceu exponencialmente.
Na renda fixa, primeiro vieram os CDBs dos bancos pequenos e médios. Depois, debêntures com juros gordos foram amplamente distribuídas. COEs, fundos fechados listados em bolsa e toda sorte de emissões primárias encontraram no “canal” da pessoa física um destino seguro para riscos variados. Assim crescia o cardápio oferecido a investidores de todos os perfis.
O problema é que, com essa infinidade de produtos, vieram comissões distintas e os incentivos deixaram de ser ideais. Se, no passado, era indiferente para o assessor se o cliente operasse ações da Vale ou Petrobras, isso deixou de ser verdade quando um cliente passou a optar por um CDB de um banco pequeno ou uma emissão primária de um fundo fechado.
Produtos com comissões diferentes representam um incentivo para que o assessor de investimentos venda aquilo que remunere melhor a ele, assessor. Mecanismos de controle existem, mas se mostraram insuficientes para coibir possíveis exageros na montagem de carteiras.
Mecanismos de controle existem, mas se mostraram insuficientes para coibir possíveis exageros na montagem de carteiras
Os incentivos se distanciaram ainda mais do ideal com a forte consolidação que se viu nessa indústria. Plataformas antes independentes foram integradas a bancos (o Banco Safra adquiriu a Guide, o BTG adquiriu a Órama e a Necton, por exemplo) e gestoras foram vendidas a plataformas.
As prateleiras desses mercados passaram a reservar seus lugares nobres para casas onde exista alguma participação acionária. É análogo aos produtos das marcas próprias dos supermercados, que estão sempre na altura dos olhos. Isso torna, naturalmente, cada vez mais difícil uma curadoria isenta de conflitos na sugestão de uma carteira.
As mudanças previstas na Resolução CVM 179 acontecem num momento particularmente interessante do mercado. Escritórios de agentes autônomos eram, até recentemente, sociedades uniprofissionais, onde todos os sócios deveriam ser, obrigatoriamente, agentes autônomos de investimento devidamente registrados.
Foi só em 2022 que o Conselho Monetário Nacional autorizou sócios externos em empresas de agentes autônomos. De lá para cá, vimos empresas recebendo sócios estratégicos, algumas tornando-se distribuidoras de valores mobiliários, outras criando empresas de consultoria e várias gestoras de recursos surgindo a partir dos antigos “Escritórios”.
Esse movimento criou pressão para a revisão dos percentuais que cabem a cada assessor no comissionamento total. Quando um produto é negociado, as plataformas repassam uma comissão ao “escritório” e cada escritório repassa parte disso ao assessor. Com a entrada de sócios estranhos ao negócio, essas empresas agora precisam remunerar capitalistas, não apenas quem trabalha nelas.
A boa e velha relação capital/trabalho se fez mais do que presente no coração da Faria Lima: para se tornar lucrativa (e atrativa), a empresa precisa rever a divisão do bolo
A boa e velha relação capital/trabalho se fez mais do que presente no coração da Faria Lima: para se tornar lucrativa (e atrativa), a empresa precisa rever a divisão do bolo. Repasses que antes eram de 70% a 80% tornam pouco atrativa a participação de sócios externos nessas sociedades e foram reduzidas sucessivamente até as faixas de 35% a 50%, que vemos mais comumente hoje, redividindo a parcela entre trabalho e capital.
Por que toda essa perspectiva histórica? Porque o momento é único. Porque estes profissionais precisam se mexer para voltarem a ser bem remunerados em suas carreiras e porque o momento é para alinhar interesses com aquela base de clientes conquistada arduamente nos últimos anos.
Onde está a oportunidade? No redirecionamento de suas carreiras. Uma mudança onde o profissional passe a assessorar verdadeiramente o cliente. Onde a preocupação deixa de ser com venda dos produtos e passa a ser centrada no entendimento das necessidades do cliente e na manutenção e aprofundamento de seu relacionamento.
É a evolução do assessor de investimentos para, por falta de um termo melhor, “banker” (“Faria Limers” e seus termos em inglês). No cerne da transformação está a mudança no modelo de atendimento e outra sacada visionária da XP: a plataforma de Wealth Services, que também foi rapidamente replicada por seus concorrentes.
A venda de produtos de investimento através da “assessoria” está dando lugar à gestão de carteiras administradas ou a consultoria de valores mobiliários. O foco passa do “produto a ser vendido” à “necessidade a ser atendida”. O cliente vira o centro da nova relação. Nasce uma relação de confiança alimentada pelo alinhamento de interesses.
As carteiras administradas – antes privilégio de milionários – estão se popularizando graças ao uso cada vez mais intenso de soluções tecnológicas. Ao invés de comissões pagas por gestoras ou bancos ao assessor, têm a cobrança de taxas diretamente do investidor, que, em contrapartida, recebe de volta o comissionamento/rebates da cadeia de distribuição.
Os interesses ficam muito mais alinhados pois a remuneração dos profissionais se torna transparente e deixa de ser função do ativo investido.
É a evolução do assessor de investimentos para, por falta de um termo melhor, “banker” (“Faria Limers” e seus termos em inglês)
Quem ganha com isso? Primeiro, ganha o cliente, obviamente.
Depois, ganha o assessor que decide abraçar a carreira de “banker”. Ganha porque deixa de gastar tempo cuidando das alocações, dos vencimentos, das aplicações e resgates e passa a cuidar exclusivamente do relacionamento com seu cliente.
Ganha porque os horizontes de investimento de seus clientes se alongam e o “churn” de sua carteira diminui. Ganha porque cada real se soma ao seu volume total e, como um tijolo numa parede, vai edificando uma base de clientes sólida. E, por fim, ganha porque o “share of wallet” com a relação de confiança e interesses alinhados tende a ser muito maior.
Ganham as plataformas de investimento que, através de seus braços de “Wealth Services”, são utilizadas pelos gestores para acesso aos produtos. Ganham porque esse novo modelo de atendimento catalisa o que hoje é o Santo Graal dessas empresas: “Net New Money”, o dinheiro novo que migra para elas por intermédio dessas carteiras administradas com maior “share of wallet”.
Assessores que já perceberam as mudanças profundas que estão ocorrendo nessa indústria já fizeram a correção de rota. Assessores incomodados com a pressão por receita e o desalinhamento de interesses já estão migrando.
Rogê Rosolini é profissional com mais de 30 de experiência, foi diretor dos bancos Barclays e Bank Of America Merrill Lynch e é sócio da gestora independente Journey Capital.