Um retângulo verde escuro cobre praticamente metade do quadro, seguido de uma faixa azul larga e outro retângulo cor de areia. Saltam ainda da tela uma palmeira de folhas vermelhas e duas estacas segurando uma rede de vôlei amarela. Na legenda da obra, “sem título" — e tudo bem, está evidente do que se trata.

O colorido contrastante e o poder de síntese em representar uma cena com poucos objetos são as características mais marcantes do trabalho da pintora Eleonore Koch (1926-2018). Pouco conhecida, a produção da artista vem sendo resgatada com exposições, filme e livro, enquanto suas telas ganham cifras milionárias no mercado de arte.

Em cartaz no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), a mostra Eleonore Koch: Em Cena é sua primeira grande retrospectiva.

Já exibido no festival É tudo verdade, em breve, chega aos cinemas, o documentário As cores e os amores de Lore. No filme, o cineasta Jorge Bodanzky recupera a vida íntima da pintora. E, para julho, está programado o lançamento de um livro sobre sua obra, com textos críticos e imagens dos trabalhos.

Se o trabalho da artista vem ganhando projeção, nos últimos anos, nem sempre foi assim. Aliás, durante muitos anos, poucos se interessaram pela produção de Eleonore.

A pintora sempre foi muito determinada. Aos 16 anos, disse ao pai: "Vou ser artista". O desejo da adolescente parecia algo distante para a família de imigrantes judeus-alemães, que desembarcara no porto de Santos em 1936, fugindo do nazismo. Eleonore, entretanto, persistiu em seu sonho.

Frequentou os ateliês de pintores e escultores como Yolanda Mohalyi, Elizabeth Nobiling, Samson Flexor e Bruno Giorgi em meados dos anos 1940. Para aprofundar seus conhecimentos, viajou, no fim daquela década, para a Europa, onde teve aula com o pintor húngaro Arpad Szenes e o escultor francês Robert Coutin.

No ateliê de Volpi

Quando voltou ao Brasil, já nos anos 1950, por indicação do colecionador e crítico de arte Theon Spanudis, procurou Alfredo Volpi. Ele não costumava dar aulas para artistas e relutou em aceitar a presença de Eleonore em seu ateliê. Hoje, ela é considerada por muitos a única discípula do pintor mineiro.

Para Fernanda Pitta, curadora da mostra do MAC e professora da USP, não é bem assim. "O que o Volpi e a Eleonore tiveram foi um contato de troca profissional", diz ao NeoFeed. "Era como se fosse uma mentoria. Com a convivência, eles passaram a produzir juntos. E, claro, Volpi ensinou para Eleonore a técnica da têmpera."

Essa troca fez com que a artista adotasse a técnica em sua produção e passasse a se preocupar cada vez mais com a cor e a composição. Na exposição do MAC, há desenhos e projetos de quadros, nos quais é possível observar seu processo criativo.

Em vez de compor suas obras por meio da observação dos objetos, Eleonore usava recursos fotográficos. A partir de fotografias e cartões postais, ela decantava a imagem até conseguir capturar o que seria essencial em cada figura. Dizia que precisava ter a imagem dentro de si para colocá-la na pintura.

Além das paisagens, Eleonore se dedicou à observação de objetos e cenas do interior. Embora se preocupasse, como os artistas concretos, com a composição, a forma e as cores, ela nunca abriu mão do figurativismo.

Quando perguntavam sobre sua predileção pelos objetos, respondia: "Porque são lindos". Simples assim. Na exposição, estão as duas únicas telas nas quais ela trabalhou com figuras humanas — os retratos dos filhos de Volpi. Para a pintora, uma pessoa era uma forma, assim como um vaso.

A herança das 2 mil cartas

Eleonore, entretanto, só conseguiria viver de sua arte a partir de 1968, aos 42 anos, quando se mudou para Londres.  Na capital inglesa, o empresário e colecionador Alistair McAlpine se encantou com o trabalho da artista e passou a ser seu mecenas.

Antes disso, ela pintava só nos finais de semana e à noite. Durante o dia, trabalhava como secretária, para se manter. Ainda jovem, Eleonore foi estagiária de Rosa Bodanzky, na livraria Cosmos, na capital paulista, e mãe de Jorge Bodanzky.

"Minha primeira conversa com ela foi mais uma curiosidade sobre a minha mãe”, lembra o cineasta, ao NeoFeed. “Mas a história pessoal dela foi ficando cada vez mais interessante."

Sem título, 1992, têmpera sobre tela . Esse é o quadro descrito no início da reportagem (Crédito: Coleção particular)

"Abismo", 1962, têmpera sobre tela (Crédito: Acervo MAC-USP)

Eleonore só viveria de suas pinturas a partir dos 42 anos, quando conheceu, em Londres, o colecionador Alistair McAlpine (Crédito: Divulgação "As cores e os amores de Lore")

"Motivo Japonês", 1959, têmpera sobre tela (Crédito: Acervo MAC-USP)

"Naquele momento, eu fui a mulher mais feliz do mundo", diz Eleonore, no documentário, ao lembrar do dia em que, em companhia do crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, assistiu o filme francês "Hiroshima, meu amor" (Crédito: Divulgação "As cores e os amores de Lore")

Sem título, 1963, têmpera sobre tela (Crédito: Acervo MAC-USP)

"Natureza Morta com Moldura Verde", 1970, têmpera sobre tela (Crédito: Acervo MAC-USP)

Bodanzky captou 15 horas de conversa com a artista, ao longo dos últimos cinco anos antes da morte da pintora, em 2018, aos 92 anos. Embora nesses encontros a artista falasse muito abertamente sobre sua vida pessoal, ele só percebeu que tinha um filme nas mãos, algum tempo depois, quando recebeu o telefonema do inventariante do espólio da artista .

Eleonore havia lhe deixado uma caixa com 2 mil cartas, todas organizadas em pastas. Lá estavam as correspondências de uma vida inteira, incluindo as trocadas com amantes e com a mãe — a psicanalista Adelheid Koch, primeira mulher a exercer psicanálise clínica no Brasil.

No filme, em diferentes momentos, a pintora aborda a decisão de não se casar e não ter filhos para se dedicar à arte — como se quisesse reafirmar a si mesma que tomara a melhor decisão.

Não foi fácil. Eleonore enfrentou a dificuldade de se inserir no incipiente mercado de arte brasileiro dos anos 1950 e 1960. E, foi recusada várias vezes pela Bienal de São Paulo, até ser aceita em 1961.

"O trabalho dela não se encaixava nas vertentes daquele momento: arte concreta ou pintura figurativa de caráter social", explica a curadora Fernanda. "E há também uma questão de gênero. Uma artista mulher não tem a mesma projeção e o mesmo reconhecimento que os artistas homens naquele contexto."

"Eu existia como mulher"

Se o ambiente artístico lhe era dificultado, a ousadia, a liberdade sexual e a coragem permitiram a Eleonore experiências memoráveis. "Se eu não existia como pintora, eu existia como mulher", declarou ela a Bodanzky.

Eleonore  manteve um triângulo amoroso com os atores Zbigniew Ziembinski e José Guerreiro, e também um romance com o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes. Com ele, a artista viu Hiroshima, meu amor, de Alain Resnais. "Naquele momento, eu fui a mulher mais feliz do mundo", revela no documentário.

Mais do que visitar exposições de arte, a pintora gostava de ir ao cinema e catalogava em pastas recortes de artigos de jornais sobre os filmes a que assistia. O interesse pelo cinema também está presente em seu trabalho pictórico que, às vezes, se revela um cenário pronto para uma ação que nunca acontece.

Olhar para um quadro isolado de Eleonore pode passar a ideia de que sua obra é a antítese de sua vida repleta de experiências.

Quem analisa com cuidado as 190 obras da exposição no MAC, entretanto, compreende que as decisões particulares da artista podem ser reflexo de sua obra.

Ela experimentou diversas possibilidades de tudo o que poderia viver para reafirmar sua escolha pela liberdade.