Biodiesel, biometano, biogás, HVO (óleo vegetal hidrotratado), GNV (Gás Natural Veicular) e GNL (Gás Natural Liquefeito). O setor de transportes pesados também está se curvando ao processo de descarbonização da economia brasileira.
Por iniciativa própria ou por pressão de empresas clientes engajadas na redução de pegada de carbono de sua cadeia produtiva, montadoras, transportadoras e companhias responsáveis pela frota de 2 milhões de caminhões e 380 mil de ônibus do País estão se mexendo para abandonar o uso do diesel, o grande vilão das emissões de gases de efeito estufa no transporte pesado.
A eletrificação, opção sustentável que começa a invadir o mercado de veículos leves, ainda é uma solução inviável, pois os custos são proibitivos para a conversão da frota de caminhões e ônibus.
O CEO da Scania Brasil, Christopher Podgorski, resumiu a estratégia do setor até que a eletrificação vire uma realidade, o que deve levar ao menos duas décadas. “O futuro não será só elétrico, mas eclético”, disse Podgorski, em janeiro, durante evento do banco UBS, em São Paulo.
Na prática, empresas de vários setores perceberam que a equação da descarbonização entre os transportes pesados é mais complexa: não vale apostar em apenas uma alternativa verde ao diesel. Seja qual for, a região onde é produzida - em especial os biocombustíveis feitos a partir dos insumos do agronegócio - também conta.
“Quem atua no segmento precisa pensar primeiro na infraestrutura que uma determinada fonte verde oferece, é essencial que facilite a logística de abastecimento”, afirma o economista Diogo Lisbona, pesquisador do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Ceri).
Em um país de dimensões continentais, é preciso analisar a autonomia do veículo pesado, custo e competitividade desse combustível verde, além de quanto essa mudança vai agregar na redução de emissões.
Lisbona observa que as empresas estão mirando prioritariamente os custos financeiros para fazer a migração. “Por enquanto, os custos de emissão ainda não são o driver dessa conta, mas serão no futuro.”
Por outro lado, há muito espaço a ser ocupado. Segundo a Anfavea, associação das montadoras no Brasil, 99,55% dos caminhões com três anos de uso são movidos a diesel.
Mistura obrigatória
O biodiesel saiu na frente nessa corrida verde por já ser misturado de forma compulsória ao diesel na bomba de abastecimento, na proporção de 12%. Em novembro, o governo decidiu passar para 14% a mistura obrigatória, medida que passa a valer em março deste ano.
Símbolo da categoria de biocombustíveis, o biodiesel é feito a partir de óleos vegetais, principalmente trigo e soja, mamona, amendoim, gorduras animais (suínos, bovinos e aves) e óleo de cozinha usado. Seu uso tem grande impacto ambiental, pois emite 98% menos dióxido de carbono do que o diesel.
A possibilidade de se impor como combustível de caminhões e ônibus, porém, esbarra no preço do biodiesel: 18% acima do diesel nas bombas. Com isso, seguindo a lógica da equação da descarbonização, as empresas que investem na conversão da frota levam em conta outras vantagens.
A JBS - empresa global que atua no processamento de carnes -, por exemplo, deu início a um projeto no fim de 2023 para introduzir biodiesel 100% (B100), que usa sebo bovino, em sua frota de caminhões a partir de fábricas localizadas em Lins (SP), Mafra (SC) e Campo Verde (MT).
Já a Be8, maior produtora de biodiesel no País, está investindo na produção do Be8 BeVant. O biocombustível utiliza biodiesel como matéria-prima, mas tem a característica drop-in do chamado diesel verde (HVO) no abastecimento de ônibus e caminhões, que dispensa a necessidade de fazer alterações nos motores.
O HVO é feito de óleo vegetal hidrogenado (principalmente soja). A vantagem do BeVant é que seu custo é 50% inferior ao do diesel verde "puro". A empresa está investindo R$ 80 milhões em P&D e na ampliação de uma linha de produção na unidade de biodiesel de Passo Fundo (RS).
A Tupy, multinacional brasileira do ramo da metalurgia, e a MWM (fábrica de motores adquirida em 2022) firmaram parceria em 2023 com a cooperativa agrícola Primato para a construção de uma usina de biogás em Ouro Verde do Oeste (PR).
O biogás é gerado pela fermentação de matéria orgânica de origem vegetal ou animal, como dejetos de bovinos, suínos e aves, e também de aterros sanitários e bagaço de cana, entre outros.
Na Primato, o objetivo a médio prazo é substituir o diesel, que abastece a frota de 60 caminhões da cooperativa, pelo biogás produzido na usina ali instalada.
Biometano e GNL
Outro projeto da Tupy, em parceria com a Comgás, principal distribuidora de gás natural encanado do Brasil, prevê a transformação de motores a diesel de uma empresa de ônibus de Campinas para motores movidos a GNV (Gás Natural Veicular).
A frota de caminhões movidos a GNV também tem aumentado. O GNV leva algumas vantagens em relação ao biodiesel, como a autonomia – percorre, em média, 400 km com os cilindros cheios – e a infraestrutura de abastecimento, bem distribuída no Brasil por causa do uso disseminado do GNV em automóveis.
“Neste momento, o GNV é viável, temos suprimento suficiente e a tecnologia para caminhões está madura, com performance semelhante ao de modelos a diesel, a ponto de o motorista não perceber a diferença”, diz Paulo Genezini, gerente de sustentabilidade da Scania.
Segundo ele, o caminhão que sai de fábrica movido a GNV tem uma vantagem adicional: a possibilidade de ser abastecido com biometano, combustível renovável derivado do biogás que, por sua vez, é feito a partir da decomposição de materiais orgânicos de origem vegetal ou animal.
Como não há diferença entre a molécula de combustível do GNV e do biometano, Genezini afirma que existem transportadoras que fazem a rota São Paulo-Rio de Janeiro com um “bem-bolado”: abastecem o caminhão em São Paulo com GNV e, na volta, com biometano na região de Seropédica (RJ), que recebe gás de aterros sanitários.
“A grande vantagem do biometano é que diminui em até 90% a emissão de CO₂ comparado ao diesel”, diz o especialista da Scania, montadora que já vendeu mais de 850 caminhões movidos a gás desde 2020.
A Scania também está atenta ao avanço de outro tipo de gás, o liquefeito (GNL), na rota verde do setor. O caminhão movido a GNL tem uma vantagem em relação ao GNV – maior autonomia, que chega a 900 quilômetros – e uma desvantagem: a infraestrutura praticamente inexistente de abastecimento.
A boa notícia é que empresas que atuam no setor de gás estão descobrindo que a descarbonização dos transportes pesados pode ser agregada a novos modelos de negócio.
No início do mês, Eneva, Scania e Virtu GNL firmaram contrato de aquisição de 180 caminhões movidos a GNL, primeiro passo para criar o maior corredor logístico rodoviário com foco na redução de emissões de CO₂, abrangendo principalmente a Região Nordeste.
A parceria prevê que a Eneva (operadora de gás natural) forneça o GNL, a Scania atue como provedora da solução de transporte, e a Virtu GNL - especializada em transporte de gás natural liquefeito - seja a fornecedora de serviços logísticos envolvendo a operação dos caminhões e postos de abastecimento.
Para Lisbona, do FGV-Ceri, a criação dos chamados corredores azuis - rotas em que caminhões utilizam GNV ou GNL em vez de diesel, comuns na Europa – é um atalho para ampliar o uso do gás no setor de transportes pesados.
Segundo ele, o Brasil tem redes de gasodutos em todas as regiões, mas que não são capilarizadas. Neste sentido, é preciso liquefazer o gás de forma centralizada, levando o GNL para postos de suprimento e criar redes de postos de abastecimento.
“Para tirar isso do papel, precisamos de uma política estruturada, que amarre todas essas questões, incluindo demanda, custos e viabilidade econômica”, diz o especialista da FGV.