No começo de 2019, o executivo Eduardo Horai foi chamado para uma conversa com Carlos Brito, o todo-poderoso CEO da AB Inbev, a maior cervejaria do mundo, que controla a Ambev. Na entrevista, Horai foi convidado para assumir a área de tecnologia da dona das marcas Skol, Brahma e Antarctica.
Mas, em um primeiro momento, Horai não viu com bons olhos o convite – na época, ele estava na AWS, a companhia de computação em nuvem da Amazon. “Cheguei a indicar dois outros nomes para ele porque não era uma empresa que queria trabalhar”, relembra Horai. “Mas depois de cinco meses de conversa e de entender a cultura, aceitei o convite.”
Em outubro de 2019, Horai assumiu o cargo de chief technology officer (CT0) da Ambev. E, desde então, ele está ajudando a cervejaria em uma mudança da cultura forjada pelos empresários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira. Por décadas, a Ambev, que faturou R$ 39,8 bilhões e lucrou R$ 5 bilhões nos nove primeiros meses de 2020, foi obcecada por eficiência operacional, processos, meritocracia, foco em resultado e disciplina financeira.
Isso não deixou de ser importante. Mas se tornou insuficiente. As transformações provocadas pela digitalização, bem como a necessidade de se relacionar diretamente com os consumidores, fizeram com a que a Ambev tivesse que se reinventar. E nessa transformação, a área de tecnologia assumiu um papel de protagonismo.
Quando assumiu a área de tecnologia da Ambev, Horai contava com 500 profissionais. Hoje, são 1,3 mil pessoas, sendo que 1 mil deles são desenvolvedores, e há 150 vagas abertas neste trimestre – no total, a companhia tem 30 mil funcionários, desde os que trabalham nos escritórios até aqueles que estão nas fábricas. Mas, muito mais do que isso, o setor passou a ter uma dinâmica própria mais parecida com uma startup, a ponto de ser chamada internamente de AmbevTech, como se fosse uma empresa independente.
Em um ano e quatro meses, Horai foi também mudando pouco a pouco a percepção da área que se tornou um pilar fundamental no processo de transformação digital da Ambev, que teve de deixar de olhar exclusivamente para o seu “próprio umbigo”, como havia dito Jean Jereissati Neto pouco antes de assumir a operação brasileira em 2020, para enxergar para além de seus próprios muros.
A iniciativa mais recente é a “Além”, um programa para se aproximar de startups, cujas inscrições vão até o dia 31 de janeiro. “Ele é um programa de conexão com o ecossistema para potencializar a Ambev e as startups”, diz Horai. “Estamos em busca de novos modelos de negócios digitais e de novos produtos. Como uma empresa que desenvolve tecnologia dentro de casa não sabemos necessariamente de tudo.”
Dito dessa forma, o programa se parece com centenas de iniciativas corporativas que surgiram nos últimos dois anos para aproximar grandes empresas de startups. A própria Ambev fez negócios com 250 startups no ano passado, duas vezes mais do que há cinco anos. Mas o “Além”, sem trocadilhos, quer ir além.
Em geral, o processo de selecionar uma startup envolve um método semelhante. A Ambev tem uma dor e busca uma empresa que resolva esse problema. O “Além” quer encontrar dores que a própria Ambev não sabe que tem.
Todas as startups inscritas vão passar por um pré-filtro. As escolhidas vão fazer uma apresentação para vice-presidentes e diretores da Ambev. Estes, por sua vez, definem as que seguem adiante. O critério é simples: precisa contribuir com o negócio da Ambev e a Ambev precisa ajudar as startups a escalar. Não há um número fechado de quantas vão ser selecionadas. “Podem ser 5, 10, 20 ou 30. Não sabemos”, afirma Horai.
Mas não é só trazer as startups para dentro da Ambev o que está no roteiro de Horai. Ele quer também que a dona da Skol, Brahma e Antarctica tenha um jeitão de startup. E, para isso, um de seus desafios é atrair os principais talentos de tecnologia do País.
Desde que chegou à Ambev, Horai conseguiu atrair talentos de empresas como Netflix, Google, 99, Nubank, Buzzfeed, Gympass, Cabify, GetNet, Accenture, dentre outras companhias. Para conseguir convencer essas pessoas a trabalharem na Ambev – lembra que no começo da reportagem o próprio Horai titubeou em ir para a cervejaria? – , um plano de carreira específico para os profissionais de tecnologia foi desenvolvido.
A lógica desse plano de carreira foi permitir que os profissionais da área pudessem ascender profissionalmente sem necessariamente assumir funções gerenciais. “É uma trilha totalmente diferente das outras áreas da Ambev”, diz Horai. “Muitos não querem ser diretores ou gerirem pessoas.”
Dessa forma, a Ambev começou a atrair profissionais que são motivados por desafios técnicos – e querem ganhar bem por isso – mas que tem pavor de assumir funções gerenciais só para que o salário fique maior, algo comum na estrutura hierárquica da maioria das empresas.
A ponta do iceberg
Quando o consumidor pede uma bebida pelo Zé Delivery ou compra cerveja no Empório da Cerveja, ambos iniciativas para se aproximar do consumidor final da Ambev, ele não sabe a complexidade por trás do aplicativo ou do site de comércio eletrônico. Até mesmo o dono de um bar, que recebeu um caminhão de cerveja, não conhece os sistemas de rotas usados pela Ambev para otimizar o roteiro.
Esses sistemas são a ponta do iceberg. Mas se a retaguarda não funcionar bem, o reflexo do serviço ruim vai aparecer para o consumidor ou para o cliente B2B da Ambev. Atualizar a infraestrutura é também uma das missões de Horai. “Nosso ERP tem 20 anos e roda em um mainframe”, diz o executivo. “É super-rápido, mas não é ágil.”
A meta da Ambev é se ver livre dos mainframes em cinco anos – para quem não sabe, eles são equipamentos antigos, confiáveis, mas que não dão a flexibilidade necessária para se adaptar nesses tempos em que a agilidade é fundamental.
Toda a arquitetura tecnológica está sendo revisada. Mas, para não correr riscos, pois são sistemas críticos, o trabalho é feito de forma cuidadosa, removendo módulo a módulo. Um exemplo é a gestão de preços e estoque, que está sendo reescrita em linguagem de programação mais moderna, que dá mais flexibilidade.
Com isso, a correção de falhas é também mais rápida. Há um ano, o tempo médio para restauração de uma falha no sistema era de 1 hora e 15 minutos. Hoje, a Ambev diminuiu esse tempo para 16 minutos.
Desde que chegou à Ambev, Horai conseguiu atrair talentos de empresas como Netflix, Google, 99, Nubank, Buzzfeed, Gympass, Cabify, GetNet e Accenture
Mas o mais importante de tudo é a forma como esse desenvolvimento está sendo feito. E aí entra de novo o jeitão startup que Horai quer que a Ambev tenha. Em vez de colocar no ar uma solução pronta, a equipe de tecnologia desenvolve rápido um recurso ou um aplicativo para ser testado e aperfeiçoado em conjunto com as outras áreas da empresa.
É a famosa cultura do beta, consagrada pelas principais empresas de tecnologia do planeta, como Google, Facebook ou Microsoft. O importante é colocar um recurso rápido no ar e aperfeiçoá-lo à medida que se usa. Se não funcionar, ele também morre na mesma velocidade em que foi criado.
“Um elemento chave da cultura digital é a colaboração”, diz Alberto Serrentino, sócio da consultoria Varese Retail. “É preciso quebrar os silos internos e fazer com que a colaboração funcione de maneira mais fluida e integrada.”
Competição acirrada
Essa movimentação da Ambev acontece em um momento em que o consumo de cerveja está em queda por conta da Covid-19 e os consumidores mais jovens, da chamada geração millennial, estão optando por consumir produtos mais saudáveis. É cedo ainda para saber quais resultados essas mudanças culturais trarão para o negócio.
Mas é bom os resultados não demorarem a aparecer, pois a competição ficou mais acirrada. Durante anos, a Ambev manteve uma margem confortável de quase 70% de participação de mercado. Hoje, estima-se que ela esteja na casa dos 60%. A holandesa Heineken cresceu e já está próxima de 20%.
Não bastasse isso, a margem de lucro da Ambev encolheu de 61,6%, em 2018, para 52,4%, no terceiro trimestre de 2020. Seu valor de mercado está em R$ 242 bilhões e suas ações acumulam queda de 13,7% nos últimos 12 meses.
Uma pesquisa do Credit Suisse, realizada com 800 consumidores, em novembro do ano passado, mostra que a Heineken tem começado a incomodar as marcas da Ambev. A cerveja Heineken foi escolhida como a marca favorita e a mais consumida entre os pesquisados, segundo o relatório. Antes, a Skol liderava nesses dois quesitos.
A Heineken também está se movimentando na área digital. Em setembro do ano passado, a empresa anunciou a promoção de Celso Bica para cargo de vice-presidente digital da cervejaria. “A Heineken tem a ambição de ser a cervejaria mais conectada do mundo e estávamos discutindo quais os caminhos”, disse, na época, Bica, em entrevista ao NeoFeed. “Precisávamos transformar a própria área de tecnologia para ela ter um escopo diferente.”
A nova área da Heineken era considerada vital para aprofundar o relacionamento com clientes, fornecedores e os próprios funcionários do grupo Heineken, dona de marcas como Heineken, Sol, Amstel, Bavaria, Baden Baden, Devassa, entre outras, e que conta com 12 mil empregados e 15 fábricas espalhadas pelo Brasil.
Durante anos, Ambev e Heineken competiram para saber qual empresa produzia o líquido a base de água, cevada e lúpulo mais agradável ao paladar brasileiro.
A cervejaria brasileira, fruto da fusão de Brahma e Antarctica, em 1999, sempre levou vantagem. Até por conta de seu sistema de distribuição, muito mais avançado do que a rival holandesa. Agora, o digital é o novo ingrediente dessa batalha. Sem ele, a cerveja corre o risco de ficar “águada”.