A fuga espetacular de Carlos Ghosn, escondido em caixa de instrumentos musicais transportada em avião particular, é digna de filme de ação. Isso explica a missão quase impossível, de resgatar do Japão o brasileiro ex-CEO da Renault-Nissan, ser o clímax da série documental “Procurado: A Fuga de Carlos Ghosn”.
Toda a operação, para tirar o executivo da prisão domiciliar em Tóquio e levá-lo ao Líbano, é reconstituída na produção que chegou ao catálogo da Apple TV+. E com requintes de cinema, com cenas fazendo a simulação do resgate, a partir de depoimentos do próprio Ghosn e de Michael Taylor, o ex-Boina Verde que orquestrou toda a fuga.
Com direção de James Jones, mais conhecido pelo documentário “Chernobyl: The Lost Tapes” (2022), a série explora o que a história de Ghosn tem de mais fascinante. Isso inclui a ascensão e a ruína do empresário de origem libanesa nascido no Brasil e educado na França, com foco na saída clandestina do Japão, que chama a atenção por ter sido tão audaciosa, mas, ao mesmo tempo, tão simples.
Na época, em 2019, Ghosn cumpria prisão domiciliar, após pagar fiança pelas acusações de ocultar ganhos e apropriação indevida de fundos da Nissan. Seu caso era notícia no mundo inteiro por envolver crimes financeiros de um dos homens mais poderosos no mundo dos negócios.
Ele ainda é uma referência na indústria automobilística. Foi apelidado de “Mr. Fix it” (algo como “Sr. Conserta tudo”), ao voltar a dar lucratividade à Renault, depois de uma reestruturação radical, e ao salvar a Nissan da falência.
Justamente por ser um rosto muito conhecido no Japão, onde virou até personagem de história em quadrinhos, passar pelos trâmites de um aeroporto comercial estava fora de questão no seu plano de fuga. Foi escolhido então um aeroporto particular, onde os passageiros são menos escrutinados.
“Contratar um avião é fácil, quando você paga em dinheiro vivo”, conta Ghosn, de 69 anos, no documentário. “Eu estava tão motivado a sair do país e mudar o que tinha sido os últimos 13 meses da minha vida que eu sequer avaliei as chances de sucesso do resgate. Só pensei na oportunidade”, completa ele.
Por serem muito organizados, os japoneses são considerados previsíveis. E o êxito da operação se baseava em usar a previsibilidade dos japoneses contra eles mesmos. “Como eles não costumam checar as bagagens que saem do país, apenas as que entram, eu vi nisso imediatamente uma vulnerabilidade que poderia nos beneficiar”, recorda Michael Taylor, na série, dividida em quatro episódios.
Foi dele a ideia de se passar por músico e de colocar Ghosn em uma caixa de transporte de instrumentos. No dia 29 de dezembro de 2019, ele desembarcou no terminal VIP do aeroporto de Osaka, com a caixa que tinha sido confeccionada sob medida. Ele a deixou em Osaka e partiu de trem para Tóquio, onde se encontrou com o empresário no Grand Hyatt hotel – após Ghosn conseguir driblar o sistema de vigilância domiciliar.
“O plano foi tão brilhante por ser simples”, comenta Taylor, que contou com a ajuda do filho, Peter Taylor. Juntos, os três embarcaram de trem para Osaka, com Ghosn usando máscara cirúrgica, óculos de sol e um boné.
Ao chegarem ao hotel Star Gate, Ghosn estrou na caixa, que havia sido discretamente perfurada no seu fundo, para permitir a sua respiração. Um estojo de guitarra foi colocado sobre a caixa, para dar a impressão de se tratar mesmo de músicos, principalmente na chegada apressada ao aeroporto.
Na hora da inspeção, quando perguntaram o que estava na caixa, Taylor respondeu se tratar de equipamento musical que não poderia passar pelo scanner. E, como esperado, a caixa nunca foi aberta pelas autoridades, permitindo a fuga. O primeiro destino foi Istambul, na Turquia, e de lá, eles partiram para Beirute, no Líbano.
Até hoje Ghosn continua escondido no Líbano, onde deu a entrevista para a série. O empresário afirma ser vítima de uma conspiração corporativa liderada pelos japoneses que buscavam mais autonomia diante da Renault. Ele seria “inocente” das acusações no Japão, que fariam parte de um plano para “destruir a sua imagem”.
Mas Ghosn também é alvo de ordem de prisão decretada na França, por suspeita de crimes de abuso de ativos corporativos, lavagem de dinheiro, corrupção, tráfico de influência e outras irregularidades.
E até hoje o empresário não se entregou às autoridades francesas para lidar com essas acusações, alegando que o governo libanês o impede de viajar. Na série, ele sugere que o caso seja transferido para Beirute, para que o julgamento seja feito lá.
“Simplesmente fui capturado em uma armadilha e tentei desesperadamente ter outra chance na vida”, resume o empresário, considerado vítima por uns, mas vilão por outros. “O que restou foi um sentimento profundo de injustiça. Estou lutando pela minha reputação.”
Desde maio último, o empresário pede US$ 1 bilhão, em processo movido contra a Nissan, a Renault e a Mitsubishi por difamação, calúnia e fabricação de provas materiais.
“Francamente, depois de tudo o que eu fiz, depois de tudo o que construí, é isso o que ficará de mim? Não dá para acabar assim”, diz Ghosn, nos momentos finais do último episódio.