A comparação entre o filme (e o livro) O diabo veste Prada e a obra Private Equity — Memórias dos bastidores de Wall Street, de Carrie Sun, parece inevitável. Só que o segundo é mais radical e mais assustador, quando a autora relata em detalhes sua experiência de trabalho no início da década de 2010 como assistente pessoal de Chase Coleman III, o fundador da Tiger Global Management, atualmente com 50 anos.
Não, o leitor não encontrará na narrativa os nomes verdadeiros do bilionário e do fundo de private equity de Manhattan, onde a autora ambienta a história. Para evitar processos por danos morais, ela optou por usar somente pseudônimos em quase todos os personagens nesse relato perturbador sobre a cultura excessivamente competitiva no ambiente de trabalho, para falar sobre saúde mental e física e outros problemas que a levaram ao esgotamento ocupacional.
Curioso que nenhuma resenha de seu livro, aliás, publicada nos Estados Unidos ou na Inglaterra por grandes veículos de imprensa, tenha citado os nomes reais dos protagonistas, pelo menos. Mas, na loja da Amazon e no Goodreads, leitores identificaram a Carbon como a Tiger Global e Boone Prescott como Chase Coleman III, entre outros nomes reais que foram mascarados. E ninguém questionou essas afirmações.
Um dos títulos mais recomendados pela revista Time em 2024, que chega agora ao Brasil, a obra de Carrie descreve a experiência de autodescoberta de uma imigrante chinesa dentro de uma das principais firmas de Wall Street, ao mesmo tempo em que denuncia, de forma contundente, os privilégios, a riqueza extrema e os vícios corporativos no topo da economia mundial.
Nascida na China e criada desde pequena nos Estados Unidos, Carrie se destacou como uma aluna prodígio, com as melhores médias no colégio e na faculdade. Tanto que se formou antes do esperado em matemática e finanças pelo MIT e cresceu rapidamente na carreira corporativa, com salário anual de US$ 300 mil.
Aos 29 anos, porém, ela deixou o trabalho de analista e abandonou o MBA, perdida entre o desejo de ser escritora e o noivado infeliz com um sujeito machista, até aparecer à sua frente um dos empregos mais cobiçados do mundo.
"'A Carbon é um dos fundos mais importantes que existem e, mesmo assim, se mantém fora do radar’ — contou [a ela] Peter [seu headhunter], baixando a voz e levantando o dedo indicador. — ‘Nunca vemos currículos da Carbon circulando por aí porque, quando as pessoas entram lá, elas ficam. “Para sempre”, descreve a autora.
Não foi fácil ser escolhida, claro. Carrie teve de passar por 14 entrevistas até se tornar a única assistente do fundador da empresa. “No início da década, Boone estreou em uma lista importante com os bilionários mais jovens dos Estados Unidos. O que o destacava era sua idade, seu patrimônio líquido e seu setor de atuação”, observa a narradora.
"Sofisticação extrema e alienação silenciosa"
Ela prossegue, com um detalhe estarrecedor: “Se Boone continuasse a aumentar sua riqueza a uma taxa de, digamos, 20% ao ano — uma estimativa conservadora, considerando alguns de seus supostos retornos; um número que nem leva em consideração o carry, isto é, a parte dos lucros à qual ele teria direito por possuir e gerir os fundos —, seu patrimônio líquido seria de mais de US$ 5 trilhões quando chegasse à idade de Warren Buffett”. A autora se refere ao investidor e filantropo americano que completa 95 anos em agosto.
Contratada, de imediato, Carrie se tornou o braço direito de um homem que podia mover montanhas e mercados com apenas um telefonema. Nos primeiros meses, para impressioná-lo, entregou-se ao lema do fundo, cuja prioridade é o retorno sobre o tempo investido. E um mundo de luxos se abriu diante dela, quando descobriu que o dinheiro pode resolver quase tudo. Para ela, o preço seria alto.

Aquele era um universo “de sofisticação extrema e alienação silenciosa”. Os escritórios com cadeiras cobertas de couro bege tinham vista para o Central Park, biblioteca com sofás de veludo e lavabos com mármore. A empresa chegou a contratar uma funcionária apenas para limpar os banheiros após cada uso.
Em poucos dias no cargo, Carrie tinha de frequentar o escritório aos fins de semana e cuidava da vida pessoal do chefe, que incluía alugar uma mansão em Malibu ou atender seus caprichos mais imediatos. Sua vida parecia não importar ou não valer nada, “pois a rotina intensa” diluía sua identidade, “alimentava o vazio existencial e revelava as exigências absurdas do capitalismo financeiro”.
O ambiente, embora envolto em aparência “familiar”, impunha disciplina monástica e lealdade absoluta. Boone exigia que ela colocasse o coletivo acima de tudo, enquanto buscava privilégios para si, como furar filas em aeroportos, por exemplo. Nesse contexto, a assistente vivia sob pressão constante, sem espaço para refletir sobre sua própria vida.
O livro também expõe uma relação tóxica permanente entre assistentes, que ela percebe já no dia da primeira entrevista de emprego, marcada por competição predadora entre mulheres, falta de transparência e desigualdade salarial. Em reuniões internas, as profissionais relatavam frustração diante da ausência de apoio e negação de diretrizes básicas.
Segundo ela, a educação rígida em casa a transformou na “serva perfeita do capitalismo financeiro". A autora vai além, nesse sentido, ao fazer um paralelo entre os valores familiares internalizados e a submissão ao mundo corporativo.
Carrie reconhece que a lógica da empresa, que se apresentava como “família”, apenas reforçava estruturas de poder e apagava identidades individuais.
Ela ficou no cargo por dois anos e meio. Após um processo interno de exaustão e culpa, optou por romper com a carreira promissora e com o noivo controlador. Recusou a possibilidade de dois mestrados simultâneos e decidiu priorizar a saúde mental.
A saída da Carbon não se deu sem resistência: Boone tentou dissuadi-la, afirmando que ela jamais teria sucesso como escritora por ser “analítica demais”. Dessa vez, o gênio das finanças estava errado.