Ano passado li um livro que me marcou muito. Chama-se “Medicina Dos Horrores: A História De Joseph Lister, O Homem Que Revolucionou O Apavorante Mundo Das Cirurgias Do Século XIX”, da historiadora Lindsey Fizharris.
O livro descreve os primeiros anfiteatros de operações, que eram lugares abafados onde os procedimentos eram feitos diante de plateias lotadas, e cirurgiões pioneiros, cujo ofício era saudado não pela precisão, mas pela velocidade e pela força bruta, uma vez que não havia anestesia.
Os mais célebres cirurgiões da época eram capazes de amputar uma perna em menos de trinta segundos. Trabalhando sem luvas e sem qualquer cuidado com a higiene básica, esses profissionais, alheios à existência de micro-organismos, ficavam perplexos com as infecções pós-operatórias, o que mantinha as taxas de mortalidade implacavelmente elevadas.
É nesse cenário, em que se considerava mais provável um homem sobreviver à guerra do que ao hospital, que emerge a figura de Joseph Lister, um jovem médico que desvendaria esse enigma mortal e mudaria o curso da história.
Concentrando-se no tumultuado período entre 1850 e 1875, o livro nos conduz por imundas escolas de medicina, os sórdidos hospitais onde eles aprimoravam sua arte, as “casas da morte” onde estudavam anatomia e os cemitérios, que eles, volta e meia, invadiam para roubar cadáveres.
Este ano, com a Covid-19 nos afetando diretamente, li outro livro, “A Grande Gripe: A História da Gripe Espanhola, a Pandemia Mais Mortal de Todos os Tempos”, de John M. Barry.
O livro mostra que, em 1918, um novo vírus influenza, até então restrito às aves, passou a se manifestar também em humanos. Um ano mais tarde, o saldo era de cerca de 50 milhões de mortos (o planeta tinha cerca de 2 bilhões de habitantes, ou 1 em cada 40 pessoas na Terra faleceu) no que ficaria conhecida na história como gripe espanhola, marcando o primeiro grande embate entre a ciência e uma pandemia.
Em apenas dois anos, o vírus matou mais pessoas do que a Aids em todo o mundo ao longo dos 24 anos desde a sua descoberta, e mais pessoas em um ano do que a peste bubônica ao longo de um século.
O conservadorismo muitas vezes domina a medicina
O que estes dois livros têm em comum? Primeiro, mostram que a medicina avançou muito em dois séculos. Mas também mostram que muitas vezes o conservadorismo domina o setor. Por exemplo, levou uns 200 anos para o termômetro ser aceito na prática médica. Na França ele começou a ser usado por volta de 1820, quando sua origem remonta aos anos 1600. O microscópio também levou muito tempo para ser aceito. Era considerado supérfluo no estudo da cirurgia, mas também como uma ameaça a própria classe médica.
Com o avanço da tecnologia digital e mais precisamente com a evolução acelerada da inteligência artificial (IA), vemos este conflito se acirrar. De um lado temos entusiastas de sua aplicação. De outro, mentes mais conservadoras extremamente receosas de seus efeitos, até mesmo com a IA sendo vista como ameaça a própria carreira do médico.
Um dos médicos pioneiros na aplicação de tecnologias digitais na medicina, Warner Slack , da Harvard Medical School, falecido em 2018, sintetizou o contexto com uma frase célebre “If a physician can be replaced by a computer, then he or she deserves to be replaced by a computer”. A tecnologia, como IA, não vai substituir o médico, mas vai mudar sua forma de atuação.
Uma área da medicina onde IA tem um papel muito importante e transformador é nas especialidades médicas focadas na identificação de padrões, como radiologistas, dermatologistas e patologistas. Olhemos, por exemplo, o radiologista.
Uma área da medicina onde IA tem um papel muito importante é nas especialidades médicas focadas na identificação de padrões
Ele passa o dia inteiro em salas escuras, analisando radiografias e escrevendo laudos, sem contatos com os pacientes. Reconhecer padrões em imagens é uma tarefa que pode ser automatizada? Sim. Na verdade, tem um artigo instigante, publicado na Scientific American, “Using Pigeons to Diagnose Cancer”, que mostra estudos feitos em universidade americana com pombos treinados que conseguiram um grau de acerto superior a de radiologistas no reconhecimento de câncer de mama em radiografias.
Isso significa que radiologistas serão substituídos por um pombal? Absolutamente. Os pombos, como os algoritmos de IA, não tem senso comum e não entendem o significado do câncer e seus impactos psicológicos na pessoa doente e na sua família. Reconhecer algo em uma imagem não significa compreender aquele algo. O médico sabe e pode atuar neste contexto. Talvez esteja aí a chave da sinergia entre IA e o radiologista. Tirar do médico radiologista a atividade robotizada e colocar apenas o do ser humano, com empatia, cuidando de outro ser humano.
A concentração total na identificação de padrões torna a pessoa insensível a outros contextos, como um curioso estudo, “Why Even Radiologists Can Miss A Gorilla Hiding In Plain Sight”, demonstrou, sobrepondo imagens de gorilas no canto de radiografias: 83% deles não viram o gorila. A IA pode ajudar identificando nas imagens outros padrões que estejam fora do foco de atenção. Além disso, o radiologista, como todo humano, tem cansaço e dias ruins. Isso afeta sua precisão de diagnósticos.
O contato direto radiologista–paciente, hoje uma anomalia, pode e deve passar a ser a rotina. O radiologista com IA será muito mais eficiente e empático que um radiologista sem IA. Com essa mudança, seu papel, de interpretar o resultado e atuar mais intensamente, faz a função sair da periferia, para estar mais próximo do centro do tratamento.
Um exemplo é o estudo “High-Risk Breast Lesions: A Machine Learning Model to Predict Pathologic Upgrade and Reduce Unnecessary Surgical Excision” que mostrou que usando algoritmos de IA com resultados de biópsia que indicavam altos riscos de câncer, pode fazer com que mais de 30% das cirurgias possam ser evitadas, por serem desnecessárias.
Os radiologistas, com apoio de DL, ficarão mais livres para ter uma visão mais holística da situação. Em vez de concentração exclusiva em uma solicitação, onde uma “narrow AI” será mais eficiente, ele poderá ter uma visão mais ampla de evidências de outras anormalidades.
Minha visão é que os radiologistas só analisarão imagens depois que elas tenham passado primeiro por algoritmos. Um artigo interessante, “Current Applications and Future Impact of Machine Learning in Radiology, publicado pela RSNA mostra esta perspectiva.
Mas, como hoje é possível a IA atuar no campo do reconhecimento de imagens com precisão superior a de médicos? Várias forças convergentes. Algoritmos cada vez mais sofisticados de Deep Learning (DL), que evoluem rapidamente com o apoio de processadores especializados (GPU e TPU), disponíveis em ambientes de cloud computing, com custos bem econômicos de utilização, como podemos ver em “All-optical machine learning using diffractive deep neural networks”; ferramentas (framewoks) de desenvolvimento open source, como Tensor Flow, PyTorch, Caffe e Paddle; e principalmente dados. Algoritmos de DL requerem massivas bases de dados para aprenderem. Na prática são as bases de dados e não os algoritmos, os atuais fatores limitantes na evolução de sistemas de IA mais sofisticados.
O fator disparador da melhoria do reconhecimento de imagens deu-se com a criação do ImageNet, por Fei-Fei Li em 2007. É imperdível o TEDTalks com ela, “How We´re Teaching Computers to Understand Pictures”. Para efeito de comparação, um radiologista na sua vida útil profissional refina sua técnica com a prática, analisando milhares de imagens.
Mas, para cada mil imagens que ele analisa, um sistema de IA pode analisar milhões de vezes mais, em muito menos tempo, refinando exponencialmente o processo de aprendizado. Por isso que em 2015 a IBM pagou US$ 1 bilhão pela empresa Merge Healthcare: ter acesso a 30 bilhões de imagens médicas.
Para cada mil imagens que um médico analisa, um sistema de IA pode analisar milhões de vezes mais, em muito menos tempo
E quanto as outras especialidades focadas em identificação de padrões, como patologistas e dermatologistas? O uso de DL como auxílio no diagnóstico reduzirá em muito os erros de interpretação. O estudo “Deep Learning for Identifying Metastatic Breast Cancer” mostra que algoritmos de DL podem ajudar em muito, até porque o estudo mostrou que o consenso quanto ao diagnóstico, entre patologistas chega muitas vezes, a menos de 48%.
De maneira geral, os médicos aprendem a identificar doenças complexas através do reconhecimento de algumas características fortes e marcantes. Nós temos muitas dificuldades em correlacionar muitas variáveis ao mesmo tempo e por isso nos guiamos pelos marcadores que sejam mais significativos.
A pesquisa médica, por exemplo, já identificou dezenas de características de um linfoma que podem afetar o processo de tratamento e a sobrevida da pessoa. Mas memorizar estas correlações é impossível para um ser humano. Assim, um linfoma é caracterizado em estágios, de acordo com os marcadores mais significativos, mas que nem sempre são confiáveis. Assim, o uso de técnicas digitais acopladas com algoritmos de DL, chamado de WSI (Whole Slide Imaging) pode produzir resultados muito mais assertivos.
Um estudo, “Predicting non-small cell lung cancer prognosis by fully automated microscopic pathology image features”, analisando 240 características com um sistema de DL, mostrou que é muito mais eficiente que os processos tradicionais que se limitam a análise poucas caraterísticas.
Algoritmos também podem identificar evidências de metástases que por serem microscópicas, passam desapercebidas ao olho humano. A IA vai mudar o dia a dia dos patologistas. Isso já é reconhecido, como vemos nas publicações especializadas, como no artigo “AlphaGo, Deep Learning, and the Future of the Human Microscopist”.
Como os radiologistas, os patologistas passarão a ter mais contato com seus pacientes e não ficarão apenas na retaguarda escrevendo diagnósticos. Talvez radiologistas e patologistas se transformem em uma nova especialização, unificada, como especialistas em informação, com forte uso de IA e analisando e interpretando os resultados gerados pelos algoritmos e atuando em sinergia com outras especialidades médicas no contato direto com o paciente.
A dermatologia trabalha também com identificação de padrões. Com a crescente evolução das câmeras fotográficas embutidas nos smartphones, começam a proliferar apps que auxiliam o trabalho do dermatologista. As fotos são analisadas por algoritmos de IA que podem identificar sinais que passem desapercebidos aos humanos.
O estudo “Dermatologist-level classification of skin cancer with deep neural networks” mostrou que o algoritmo conseguiu maior precisão que os médicos. Como radiologista e patologistas, a IA vai acabar com os dermatologistas? Novamente, um sonoro não! Mas vai mudar sua maneira de atuar, uma vez que dispondo algoritmos cada vez mais eficientes e confiáveis, reduz sua carga de trabalho na fase de diagnóstico e pode se dedicar mais à fase de tratamento e acompanhamento do paciente.
A medicina está em transformação e a velocidade das mudanças está cada vez mais acelerada
Nossa conclusão? A medicina está em transformação e a velocidade das mudanças está cada vez mais acelerada. Em cinco anos o que se aprende em uma faculdade de medicina provavelmente já estará errada ou obsoleta. Isso leva a um redesenho da profissão e de sua formação acadêmica. Não temos mais como esperar uns 200 anos para aceitar o uso de termômetros. Ou recusar o uso de microscópios. As tecnologias, como a IA, são um meio, mas permite que nós, humanos, a usemos para transformar nossas carreiras e vidas.
Vivemos um cenário de mudanças significativas. Estamos no meio de um evento histórico que mudará muitos aspectos do nosso mundo. O mundo pós-Covid será diferente do pré-Covid. Veremos grandes impactos na economia global, na geopolítica e em nossas sociedades.
Esses impactos e riscos globais são altamente interdependentes e mudarão o cenário de riscos globais, atual e futuro. A medicina será, como muitas outras atividades, profundamente afetada, em seus modelos econômicos, sistemas, métodos, processos e formação profissional. A IA vai ajudar a transformar de forma bem profunda a prática da medicina.
A série continua. No próximo artigo, vamos abordar algumas especialidades médicas que não focam em padrões. Como IA as afetará
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*Cezar Taurion é Partner e Head of Digital Transformation da Kick Corporate Ventures e presidente do i2a2 (Instituto de Inteligência Artificial Aplicada). É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral. Antes, foi professor do MBA em Gestão Estratégica da TI pela FGV-RJ e da cadeira de Empreendedorismo na Internet pelo MBI da NCE/UFRJ.