Os Estados Unidos são atualmente o quarto maior produtor de vinhos do mundo, atrás apenas da Espanha, da Itália e da França. Seus rótulos premium superam, facilmente, a barreira da centena de dólar. Para citar apenas dois exemplos, o ainda jovem Opus One 2017 custa US$ 420, no site da vinícola, e o Sine Qua Non Cumulus Vineyard, também de 2017, é cotado a US$ 435, na Vinfolio, loja da Califórnia.

Por trás dessa valorização está o crítico inglês Steven Spurrier, que morreu em 9 de março, às vésperas de completar 80 anos. O Julgamento de Paris, como ficou conhecida a degustação que colocou os rótulos californianos a frente dos franceses, foi a primeira de uma série de ações pioneiras e ousadas de Spurrier no vinho.

Em 1976, Spurrier tinha uma loja de vinhos em Paris, a Cave de la Madeleine e, ao lado, uma pioneira escola de vinhos, a Académie du Vin. Degustador irrequieto, ele percebia que os vinhos californianos estavam ganhando qualidade e complexidade, mas que poucos prestavam atenção a eles. Decidiu colocar esses vinhos a prova, comparando-os com os grandes Bordeaux.

Para a prova às cegas (sem saber que rótulo corresponde a cada amostra), ele convidou degustadores experientes. Chamou também o jornalista George Taber, que tinha sido aluno da Académie du Vin, para assistir a prova. Em seu livro “O Julgamento de Paris”, Taber narra o clima do evento.

Os degustadores franceses elogiavam algumas amostras, afirmando que com aquela qualidade, aquele finesse, só podiam ser franceses. Mas, quando os rótulos foram revelados, descobriu-se que os melhores elogios e as melhores notas, na verdade, foram dados para as amostras que correspondiam aos vinhos californianos.

Não demorou para o resultado da degustação cruzar o Atlântico. Os produtores californianos, mesmo sem a internet atual, alardearem o feito para o mundo. A propósito, uma garrafa do Stag’s Leap SLV Cabernet Sauvignon 1973, o grande vencedor dessa degustação, é vendida atualmente por US$ 9,6 mil, na Wine Consigners, loja nos Estados Unidos, algo como R$ 53 mil no Brasil.

Dirceu Vianna Júnior, o primeiro (e único) master of wine brasileiro, conta que uma vez perguntou a Spurrier qual de suas conquistas ele tinha mais orgulho. E ele respondeu: "O Julgamento de Paris". “Ele disse que essa prova não apenas mudou o curso dos vinhos da Califórnia, como de toda a sua vida”, lembra Vianna.

O mérito da prova, destaca o especialista, foi “mostrar que um bom vinho pode ser feito fora das regiões tradicionais europeias, e isso ajudou muitos países, não apenas os Estados Unidos, mas a China, o Chile, a Índia e, inclusive, o Brasil”, afirma Vianna Júnior.

Mas Spurrier não ficou preso à fama do evento. Em sua carreira, ele foi conquistando espaço como educador, escritor e degustador, e fazendo amigos pela maneira respeitosa e descontraída que lidava com as pessoas. Era um gentleman.

Veio ao Brasil duas ou três vezes, inclusive para um evento que comparava os espumantes brasileiros com os demais do Hemisfério Sul. Na ocasião, declarou que os brasileiros deveriam se orgulhar de seus espumantes.

Em um artigo sobre os dez melhores Bordeaux que provou na vida, Spurrier cita o Château Mouton Rothschild 1959, que tomou no Brasil em uma degustação promovida pelo empresário Clélio Pinto de Almeida. A degustação privada aconteceu no Locanda dela Mimosa, em Petrópolis (RJ), com 61 safras de Mouton.

Como escritor, Spurrier fez carreira na revista inglesa Decanter. Do primeiro artigo, em 1993, até decidir deixar a revista dois anos atrás para focar na Académie du Vin, hoje uma editora de livros, foram mais de 300 colunas, que se tornaram referência no mundo do vinho.

Em 2004, ele convenceu a diretora de redação Sarah Kemp a criar um concurso de vinho. Não tardou para o Decanter World Wine Awards se tornar um dos mais importantes e confiáveis concurso de vinho do mundo. Na última edição, no ano passado, foram avaliados 16.518 vinhos.

Spurrier ousou também em decidir ter o seu próprio espumante. Em 2008, quando as mudanças climáticas começaram a possibilitar o amadurecimento de uvas na Inglaterra, ele investiu em um vinhedo em frente à sua casa de campo, em Dorset. A primeira safra foi em 2011. No ano seguinte, as uvas não maturaram suficientemente e, desde então, Spurrier passou a elaborar o seu Bride Valley, em volumes que dependem do clima de cada safra.

Nada mal para um garoto que, ao provar uma taça do vinho do Porto, o Cockburn’s 1908, quando tinha 13 anos decidiu que queria trabalhar com vinho quando crescesse.