Uma carreira sólida de sete anos em cargos de liderança do Facebook, na América Latina. Uma passagem anterior, também de sete anos, por diversas áreas do Google, no Vale do Silício. Com essa bagagem, Patrick Hruby decidiu, em outubro de 2019, partir para um novo desafio.

Esse roteiro teve início, no entanto, em 2012, quando ele conheceu Fabricio Bloisi, cofundador da Movile. A empresa brasileira acabara de instalar um escritório no Vale do Silício, como uma escala inicial do plano ambicioso de se consolidar com uma holding de startups com 1 bilhão de usuários globais.

De lá para cá, essa estratégia ganhou corpo. Com 350 milhões de usuários mensais ao redor do mundo, 4 mil funcionários e escritórios em seis países além do Brasil, a Movile atraiu US$ 395 milhões em rodadas de investimentos e se tornou um dos primeiros unicórnios do País.

Hoje, seu portfólio abriga uma segunda operação avaliada em mais de US$ 1 bilhão, o aplicativo de delivery iFood, além de outras cinco empresas: as plataformas Sympla, de entretenimento, e PlayKids, de conteúdo educativo infantil; as fintechs Zoop e Movile Pay; e a Wavy, de serviços de mensageria, que acaba de anunciar uma fusão com a sueca Sinch.

Enquanto esse ecossistema era construído, não faltaram convites para que Hruby embarcasse na operação. “No ano passado, as estrelas se alinharam e aconteceu”, diz ele, que chegou à Movile como executivo em residência. “Eu comprei o sonho de que era possível construir uma empresa brasileira de tecnologia capaz de conquistar o mundo.”

Sem uma função específica durante os primeiros cinco meses na casa, sua rotina consistiu em conhecer de perto cada negócio da Movile. Nesse intervalo, ele pôde enxergar semelhanças entre o grupo e as gigantes nas quais trabalhou.

Mas também notou um diferencial. “Google e Facebook demoraram para perceber seu impacto na sociedade. A Movile percebeu isso antes. E tem feito o seu papel”, afirma Hruby que, foi anunciado como novo CEO do grupo na semana passada. Ele substituiu Bloisi, que passou a acumular o cargo de CEO do iFood com o posto de presidente do conselho de administração da Movile.

Hruby assume o comando da operação em meio à crise generalizada causada pelo Covid-19. E entende que esse é o momento de a Movile mostrar, de fato, que pode exercer um papel de protagonismo. Especialmente por meio de iniciativas para ajudar a reduzir os impactos em sua cadeia. “Não queremos sair dessa crise como um oásis no meio do deserto”, diz.

Em entrevista ao NeoFeed ele fala sobre como a empresa tem feito isso na prática, entre outros temas. Acompanhe:

O que fez você aceitar o convite da Movile?
Eu comprei o sonho de construir uma companhia brasileira, resolvendo problemas brasileiros, com inovação local. E de usar isso como plataforma para voos mais altos no mundo. É mais arriscado do que a segurança de ficar no Facebook, mas foi o que mais me atraiu. Eu até brinco. Fiquei sete anos no Google e a empresa cresceu de 4 mil para 50 mil funcionários. Sete anos no Facebook, que saiu de 3 mil para 40 mil pessoas. A Movile tem 4 mil funcionários. Se, em sete anos, tiver 40 mil, terá sido outra boa jornada.

Como a sua entrada se encaixa nessa jornada?
Ela permite que o Fabricio siga provendo a visão e a inspiração como presidente do conselho de administração, e, ao mesmo tempo, se dedique mais ao iFood, como CEO. Ele não conseguia fazer tudo o que era demandado pelo restante do grupo. Venho preencher essa lacuna e ajudar as outras empresas a alcançarem o que o iFood já alcançou.

Como foi a experiência como executivo em residência?
Eu simplesmente tinha o trabalho de aprender. Pude ver, realmente, a força do ecossistema que é o grupo, que trabalha muito bem junto. Ao mesmo tempo, cada empresa tem sua liderança, sua personalidade e toca o seu negócio de forma independente. E eu encontrei algumas sementes que ajudaram o Facebook e o Google a serem empresas bem-sucedidas.

Que sementes são essas?
Quando alguém olha para o Google e o Facebook e vê balões coloridos, o pessoal levando cachorro para o trabalho, acha que é só festa. Mas quando você está lá, vê que o pessoal está comprometido, tem metas e que essas empresas sabem fazer dinheiro. E a Movile tem isso muito forte. Ela tem as mesas de pingue pongue, o ambiente descontraído, mas também a entrega, o resultado, o fazer dinheiro.

E o que o grupo tem de diferente na comparação com essas gigantes?
Google e Facebook demoraram para perceber seu impacto na sociedade. Do Facebook na democracia, do WhatsApp nas eleições. Acho que a Movile percebeu isso antes e tem feito o seu papel. E isso acontece em diversas linhas. Com os entregadores, por exemplo. Temos obrigação de ajudar, oferecendo capacitação, treinamento, seguro de acidentes de trabalho.

Além do Vale do Silício, a Movile traz semelhanças com o modelo das empresas chinesas de tecnologia. Quais desses dois centros influenciam mais o grupo hoje?
Vamos seguir nos inspirando muito no idealismo, na cultura e no ímpeto de criar soluções ultra ambiciosas do Vale do Silício. Mas a China traz uma forma diferente de pensar o negócio. Além do uso, hoje talvez até mais forte, de tecnologias como inteligência artificial, que é uma macro tese nossa.

No que esses dois polos se diferem?
Os Estados Unidos sempre buscam resolver problemas com o máximo de tecnologia e o mínimo possível de pessoas. A China já é mais aberta. Você vê a expansão de serviços como food delivery no país, que são muito mais intensivos em pessoas. E eles inovam também em modelo de negócios. Empresas como Tencent, Alibaba têm uma pegada de holding, com diversas verticais diferentes, mas onde uma operação ajuda a outra. Nós nos espelhamos muito nessa abordagem.

"São duas crises paralelas. Estamos lidando com 50% da informação, mas somos exigidos a tomar 100% das decisões"

Como é assumir o posto de CEO do grupo em meio a uma crise como a que estamos vivendo?
A Movile já tem um papel importante na economia. Seria uma responsabilidade grande em qualquer momento. Agora, muito mais. Há muitas incertezas. Ninguém consegue prever a evolução da crise de saúde, da crise econômica. São duas crises paralelas. Estamos lidando com 50% da informação, mas somos exigidos a tomar 100% das decisões.

E como vocês têm lidado com esse desafio?
Temos ambições, objetivos de longo prazo e eles estão bem traçados. Mas agora, eles estão na gaveta. O que vale é o que temos para a próxima semana, o próximo mês. É um plano vivo, que vai sendo adaptado, mas que tem três pilares claros.

Quais são?
O primeiro é a saúde dos funcionários e dos nossos parceiros. Todos o nosso time está em home office. Para os parceiros, o iFood criou um fundo de R$ 1 milhão para financiar o ganha-pão do entregador que contrair a doença. Vimos que isso não era suficiente e criamos mais um fundo de R$ 1 milhão para quem estivesse no grupo de risco. Pouca gente sabe, mas temos entregadores com mais de 65 anos. Essas pessoas foram automaticamente travadas no sistema e vão seguir recebendo.

Qual é o segundo pilar?
Garantir sustentabilidade dos nossos negócios. Estamos segurando todos os investimentos, as despesas não essenciais, congelando o volume de contratações, que era muito acelerado, e revendo todas as despesas de marketing.

Há risco de demissões?
Não pretendemos fazer nenhum corte. Mas temos que lidar com todos como adultos. Não fazemos promessa que não podemos cumprir. Não sabemos quanto tempo vamos ficar nessa situação. Só podemos pensar que faremos de tudo para que ninguém perca o seu emprego.

E a terceira prioridade?
Queremos não só garantir a saúde do nosso negócio, mas assumir um protagonismo e ajudar a minimizar os impactos na sociedade. Não queremos sair dessa crise como um oásis no meio do deserto. Queremos trazer nossa cadeia inteira conosco. O iFood, por exemplo, criou um fundo de R$ 50 milhões para pequenos restaurantes. E lançou uma parceria de R$ 2,5 bilhões com o Itaú e a Rede para antecipar recebíveis dos estabelecimentos, para que eles tenham fluxo de caixa mais rápido.

Com a crise, houve um aumento no volume de pedidos?
É muito cedo ainda para dizer. O impacto, a cada semana, é muito diferente. Nosso foco agora é garantir a saúde dos entregadores e a sustentabilidade dos restaurantes. E muito menos no total de pedidos.

Há uma discussão anterior à crise, sobre as taxas elevadas cobradas dos restaurantes por aplicativos como iFood, Uber Eats e Rappi. Como você enxerga essa questão?
À medida que uma empresa como o iFood ganha relevância, as demandas sobre o serviço crescem. Assim como o que é exigido da companhia. Pede-se que ela seja lucrativa e dê resultados. E nem sempre vamos conseguir fazer tudo ao mesmo tempo. O iFood precisa de receita para pagar seus funcionários e oferecer seu produto. É uma discussão natural e estamos sempre abertos. Mas existem trocas. Você oferece mais aqui e menos ali. Não consegue dar tudo. Ninguém consegue.

E quanto às outras empresas do grupo, há mais iniciativas relacionadas ao Covid-19?
Nós lançamos um produto de streaming, ainda em beta, da Sympla, para que artistas e produtores sigam fazendo arte e cultura, e recebam por isso. Isso já estava no escopo, mas era algo mais de longo prazo. Esse mercado também foi muito afetado e é uma forma de reduzir esse impacto.

Falando em impacto, que reflexos essa crise trará ao ecossistema de startups no País?
A crise vai ajudar a acelerar a digitalização que já vinha acontecendo. Do varejista que sabia, por exemplo, que era preciso ter um e-commerce, mas que não via isso como crucial. Todo o ecossistema de tecnologia vai se beneficiar desse contexto e algumas startups vão aproveitar melhor esse cenário.

Por quê?
Nós passamos por um período onde as startups esqueceram que dinheiro não é de graça e nem infinito. O alerto veio com o WeWork. E essa tendência que começou ali vai se ampliar agora. Você já vê todos os fundos falando sobre controle de caixa. São questões que ficam esquecidas em tempos de exuberância, mas que voltam em momentos como esse. E as empresas que já estavam preocupadas com esses indicadores têm mais chance de sobreviver.

E como isso se reflete nos investimentos de venture capital?
Eles vão ser afunilados para quem tem um plano de negócios sólido, um time de gestão mais estabelecido e operações que já começam a mostrar resultados. O valuation vai estar atrelado a métricas mais sólidas, financeiras, e menos etéreas.

"O valuation vai estar atrelado a métricas mais sólidas, financeiras, e menos etéreas"

Você vê um ajuste em relação ao que vinha sendo praticado? Havia uma distorção?
Com certeza já está havendo um ajuste das prioridades, com as pessoas dando importância aquilo que deveriam pesar desde o início: a rentabilidade, as alavancas do negócio, o controle de custos. É um realinhamento para onde deveríamos estar.

A Movile tem caixa para enfrentar esse período?
Temos investidores muito próximos e acesso a capital, se preciso. Conversamos sempre com eles para entender a necessidade de recursos de cada operação. Mas estamos bem como grupo. E com nosso ecossistema, conseguimos equilibrar, amortecer os impactos e trabalhar de uma forma que uma empresa consegue ajudar a outra.

À parte da crise, quais são as prioridades? Como fica a meta de chegar a 1 bilhão de usuários, antes prevista para 2020?
Isso está em pausa. Mas vamos retomar e chegar nesses objetivos, talvez, com uma curva diferente. Nosso objetivo segue sendo construir uma empresa de US$ 100 bilhões, que pode competir de igual pra igual com as grandes do mundo. E o mapa para chegar a esse estágio passa por três pilares, que vamos trabalhar depois de passar por esse momento.

Que pilares são esses?
O primeiro é o crescimento exponencial dos negócios que já estão no grupo. E isso passa por investimento orgânico e por fusões e aquisições, que são o segundo pilar. Vamos voltar às compras, a olhar para o mercado.

Vocês já têm definido quais seriam as áreas exploradas via aquisições?
Fintechs é, com certeza, uma delas. Já temos uma presença muito forte, com a Zoop e a Movile Pay, que se complementam e se beneficiam, em grande parte, do nosso ecossistema. É uma vertente que acreditamos muito. Fora isso, estamos muito abertos para explorar as oportunidades que vão surgir.

Além das fintechs e do iFood, que é o carro-chefe do grupo, quais são as perspectivas para as demais empresas? Como elas vão ajudar a Movile a alcançar 1 bilhão de usuários?
Nós acreditamos muito em entretenimento. A Sympla tem uma oportunidade grande de crescer não só no Brasil, mas também globalmente. Ela oferece algo que ainda não está bem resolvido em lugar nenhum no mundo. Já temos um produto bom, mas precisamos ainda ampliar o valor que ele gera para a cadeia como um todo, para depois buscar esse salto. A PlayKids, por sua vez, já nasceu com essa pegada global, com jogos como o PK XD, que já fazem sucesso em outros países. E a Wavy acaba de anunciar um acordo com a Sinch, da Suécia. Tudo o que a companhia vinha desenvolvendo em termos de customer experience, de uso de inteligência artificial em mensageria, agora vai, automaticamente, para o mundo. É outra forma de alcançar um mercado maior.

E qual é o terceiro pilar na estratégia pós-crise?
Vamos assumir papel de protagonistas e criar empresas mais justas. Com a questão da sustentabilidade, por exemplo. Vamos abraçar mais forte isso e criar soluções para reduzir o impacto ambiental da nossa cadeia. Investir mais em diversidade, na participação das mulheres em cargos de liderança, de negros no quadro de funcionários. Precisamos ter empresas que reflitam e sejam o espelho da sociedade. E não apenas porque é a coisa certa a se fazer. Mas também porque isso nos dará um diferencial e nos fará chegar mais rápido à nossa ambição de atender a todos.

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