A região Sudeste brasileira está fora de qualquer mapa vinícola. Não está entre os paralelos 30 e 50, dos hemisférios Norte ou Sul, que são as regiões clássicas para os vinhos de qualidade. Nem está na borda destas localizações, nos novos vinhedos que os produtores vêm cultivando na tentativa de fugir dos efeitos das mudanças climáticas.

Mas, mesmo assim, o Sudeste vem chamando a atenção para os seus brancos e, principalmente, os seus tintos. Minas Gerais foi a pioneira, com rótulos como Primeira Estrada e Maria Maria, seguido por São Paulo, onde a Guaspari é a principal representante desta tendência, e por Rio de Janeiro, com a vinícola Fluminense. E novos bons exemplos chegam a cada safra.

O sucesso destes vinhos, que têm um perfil diferente dos rótulos gaúchos, está em um pequeno “truque” no cultivo. A partir da irrigação, a videira é, digamos, “enganada” e produz frutos quando o clima lhe é mais favorável.

Explica-se: os meses do outono e do inverno, na região Sudeste, são caracterizados por dias ensolarados, noites frescas e solo seco, exatamente as características indicadas para que a uva amadureça devagar e dê origem a vinhos de qualidade.

Mas, no seu ciclo natural, a videira produz no verão, época que coincide, no Sudeste, com as chuvas da estação e a menor amplitude térmica. Estas características do clima tropical não são tão propícias assim para que que a uva resulte em vinhos mais concentrados e equilibrados. Nas regiões clássicas, o clima temperado tem características de calor e de chuvas bem diferentes.

A técnica, que começou a ser testada nos vinhedos em 2001, é conhecida como colheita invertida ou dupla poda e foi desenvolvida pelo pesquisador Murillo de Albuquerque Regina, então pesquisador da Epamig, o órgão de pesquisa agrícola do governo mineiro.

E é ele que explica este pulo do gato. “Por meio da dupla poda, conseguimos inverter o ciclo das plantas. Ao invés de podar em julho e colher em janeiro, um mês chuvoso, nós podamos em janeiro e colhemos em julho, quando as condições são excelentes para a qualidade da uva.”

O sucesso dos vinhos do Sudeste está em um pequeno “truque” no cultivo. A partir da irrigação, a videira é “enganada” e produz frutos quando o clima lhe é mais favorável

O primeiro a apostar na técnica foi o empresário Marcos Arruda Vieira, da Fazenda da Fé, que começou a plantar videiras em 2001, em parceria com Murillo Regina. A safra pioneira do Primeira Estrada, elaborado apenas com a variedade syrah, foi a de 2010, lançada em 2013. Atualmente são seis hectares de vinhedos, e os sócios acabaram de construir uma vinícola, em parceria com o Vinho Maria Maria, com a ideia de dobrar a produção, atualmente em 20 mil garrafas por safra.

Sócio da empresa Vitácea Brasil, que fornece mudas para os vinhedos, Murillo Regina hoje dá consultoria para 15 vinhedos, em diversas regiões de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Atualmente, a Guaspari, vinícola no lado paulista da Mantiqueira, em Espírito Santo do Pinhal, é o projeto mais conhecido da dupla poda. Começou com assessoria de Murillo Regina em 2006 e hoje tem voo próprio, com a enologia a cargo do americano Gustavo Gonzales, que tem no currículo dez anos de enologia na vinícola Mondavi, e a viticultura com o consultor português Paulo Macedo.

Com 50 hectares de vinhedos, divididos em 12 campos ou vistas, de acordo com suas características, a Guaspari foi a primeira vinícola brasileira a conquistar uma medalha de ouro no Decanter World Wine Awards, em 2016, um dos concursos mais conceituados da atualidade.

A estrela da vinícola é o seu Vista do Chá, um syrah cultivado em um pequeno vinhedo de três hectares e que teve a safra de 2016 lançada nesta semana. Tanto a safra de 2012 como a de 2014 ganharam medalha de ouro no concurso da Decanter, o que chamou a atenção para a vinícola.

Em todos os projetos, a syrah vem despontando como a melhor variedade para a dupla poda. Com vigor elevado, ela resiste as duas podas anuais e matura lentamente, tanto de seu fruto, como a madurez fenólica da casca, o que resulta em tintos mais estruturados e equilibrados. Nas brancas, a maior aposta é na viognier, que, assim como a syrah é originária da região do Rhône.

Mas há outras variedades cultivadas nestes vinhedos. “Em 20 hectares, temos syrah, cabernet sauvignon, sauvignon blanc e chardonnay”, afirma Eduardo Junqueira Nogueira Júnior, da quinta geração de cafeicultores do sul de Minas Gerais e que lançou o Vinho Maria Maria. Em 2009, ele plantou as primeiras mudas na fazenda Capetinga e o nome do projeto vem da amizade do proprietário com o cantor Milton Nascimento.

Como os primeiros capítulos desta história ainda estão sendo escritos, ainda há muitas perguntas em aberto. Uma delas é se as videiras terão vida longa, ou precisarão ser replantadas em duas ou três décadas, comprometendo a viabilidade econômica do projeto. Outra é como cada sub-região do Sudeste será conhecida, pelo perfil dos seus vinhos.

“No momento, acreditamos que as características dos vinhos do Sudeste, além das regiões de altitude do Centro-Oeste e do Nordeste, como a Chapada Diamantina, na Bahia, os difere das outras regiões brasileiras”, afirma Nogueira Júnior. Mas estas respostas virão com o tempo.

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