Um dos aspectos mais positivos do Marco Regulatório do Saneamento de 2020, que impôs aos municípios brasileiros cumprir a meta de oferecer 100% de fornecimento de água potável e de tratamento de esgoto até 2033, foi colocar em risco a existência das empresas estatais do setor, que sempre controlaram o saneamento e nunca se preocuparam com concorrência nem atingir metas.

A análise é de Guilherme Duarte, presidente da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), empresa de economia mista, com 50,3% participação do governo mineiro. Com cerca de 10 mil funcionários, a Copasa atende 12,5 milhões de clientes em 640 municípios do estado.

“A simples implementação da concorrência por meio do marco regulatório do saneamento trouxe à tona o risco do fim das estatais do setor”, diz Duarte, nesta entrevista ao NeoFeed. “Se não cumpro as metas de universalização, coloco os meus contratos em risco – e os municípios estão cada vez mais conscientes de que há oportunidades.”

A rigor, Duarte é o gestor de uma estatal com desempenho de empresa privada eficiente. No cargo desde 2022, ajudou a colocar a Copasa nos trilhos, com 99% de fornecimento de água potável e 75% de cobertura de rede de esgoto, e deu início a um plano alternativo de obtenção de receita, explorando aterro sanitário e água de reuso, por exemplo.

A empresa registrou lucro líquido de R$ 437 milhões no terceiro trimestre de 2023 (últimos resultados disponíveis), alta de 92,4% em relação ao mesmo período de 2022. Com uma dívida líquida sob controle, de R$ 3,44 bilhões, a Copasa ostenta uma relação dívida líquida/Ebitda de apenas 1,4 vez.

Esses números a credenciaram para ser privatizada, como o governador Romeu Zema (Novo) sempre desejou fazer. Os planos, porém, foram suspensos em novembro do ano passado, quando Zema iniciou negociações com o governo federal para federalizar a Copasa e outras duas estatais mineiras, a Cemig e Codemig, como forma de Minas Gerais amortizar sua dívida pública de R$ 160 bilhões com a União.

A proposta divide especialistas. No caso da Copasa, que tem avaliação de mercado de R$ 7,6 bilhões, o negócio é complexo por ser uma empresa de saneamento, o que exigirá do governo federal o estabelecimento de acordos com os municípios atendidos pela estatal.

Duarte diz que essa é uma decisão do governo mineiro. Mas admite que a privatização é o melhor caminho para as estatais de saneamento. “O ganho principal é livrar a empresa das amarras que uma estatal tem, como as limitações de contratação de licitações públicas, que não garantem qualidade dos serviços.”

Leia a seguir os principais trechos da entrevista exclusiva concedida por Duarte:

O governo de Minas Gerais suspendeu recentemente as discussões de privatização da Cemig e da Copasa, estatais que podem ser federalizadas em troca da redução da dívida com a União. Isso afeta o planejamento?
Não, em nada. O governo suspendeu as discussões num primeiro momento até que se defina essa questão da dívida do estado. Na minha opinião pessoal, uma decisão muito coerente para que o governo tenha foco administrativo e político numa solução para que depois eventualmente possa retornar à privatização. O dia a dia da companhia continua o mesmo e, internamente, trabalhamos na direção de torná-la eficiente do ponto de vista de geração de resultado para os seus acionistas, independentemente da velocidade com que o governo controlador esteja tocando tocado a privatização.

Olhando para o mercado, há vários tipos de privatização sendo discutidos. Qual modelo que, em tese, se adequaria melhor à Copasa?
A Copasa em si não participa dessa discussão da definição de modelo de privatização. O governo estadual, sim, tem um estudo que foi elaborado pelo BNDES e finalizado no ano passado, que aponta ao estado várias alternativas: alienação completa, uma capitalização, uma corporação. Enfim, o governo estadual tem todas essas alternativas na mão. Que eu saiba, até o momento, ainda não foi definido um modelo.

Entre os vários modelos de privatização existentes, na sua opinião pessoal, quais são adequados?
Vejo dois modelos positivos. O que há alienação completa ou um modelo de capitalização ou pulverização, mas que o estado fique limitado dentro do controle da empresa, como é o caso que está sendo previsto para a Sabesp. Não vejo problema a permanência do estado de forma limitada, pode gerar valor no longo prazo para o próprio estado. Isso porque uma empresa tende a se valorizar ao longo do tempo e o estado pode se desfazer dessa segunda fatia no futuro, embora isso seja um exercício de futurologia, porque o inverso pode acontecer.

Quais são os ganhos de gestão nesses dois modelos?
O ganho principal é livrar as amarras que uma empresa inteiramente estatal ou de economia mista têm, ou seja, de estabilidade de empregados, de limitações de contratação de licitações públicas, principalmente por menor preço, que não garantem qualidade dos serviços. Isso sem nenhum demérito ao corpo funcional das empresas, mas gera mais problemas do que facilidades.

“A privatização completa ou o modelo de pulverização, como a Sabesp pretende fazer, livra as estatais da limitação de licitações públicas, que não garantem qualidade de serviço”

O modelo de privatização parcial, adotado pela Cedae, do Rio de Janeiro, que manteve o serviço de captação de água e privatizou a distribuição de água, coleta e tratamento de esgotos, não é interessante?
É um modelo que funciona em alguns casos, mas que não necessariamente é o melhor. Dou muito valor ao que foi feito porque foi o possível naquele momento, mas é um modelo que na minha percepção pode gerar algum problema no futuro.

Por quê?
Porque se mantém a estrutura da estatal inchada. É inclusive a estrutura que controla a produção de água, que tem que ser eficiente - e não necessariamente se garante essa eficiência no longo prazo. Isso pode gerar um sobrecusto para o sistema como um todo.

Como foi sua experiência de adaptar a Copasa, uma estatal, a essa nova realidade imposta pelo novo marco?
Esse trabalho de ruptura e mudança cultural dentro da empresa de fato é desafiador. Antes do marco regulatório, os municípios assinavam os contratos de saneamento diretamente com as companhias estatais, não havia concorrência. Com isso, não havia uma grande preocupação dessas estatais com o resultado e redução de custos. Afinal, por que vou buscar a modicidade tarifária se não tenho concorrente? Isso acabava pesando no bolso do consumidor e consequentemente as empresas tinham resultado pior porque a inadimplência era mais alta. Não é à toa que o Brasil fala de universalização de saneamento há décadas e não se avançou.

Qual o impacto do novo marco às estatais de saneamento?
A simples implementação da concorrência trouxe à tona o risco do fim das estatais - se ela não for competente, o vencimento dos seus contratos pode significar a possibilidade de não vencer novas licitações. Ou seja, se não me preocupo com modicidade tarifária, sei que pode vir uma empresa concorrente e praticar tarifas menores. Além disso, é preciso avançar com os investimentos porque, se não cumpro as metas de universalização, coloco os meus contratos em risco - e o risco da caducidade dos contratos hoje é muito mais relevante porque os municípios estão cada vez mais conscientes de que há oportunidades.

"O marco implementou a concorrência e, com isso, o risco do fim da estatal - se ela não for competente, pode vir uma empresa concorrente e praticar tarifas menores"

Internamente, na Copasa, houve essa percepção?
O funcionário, hoje, tem medo de a empresa desaparecer no longo prazo. Isso por si só gera uma mudança de atitude. Claro que é trabalho aqui da administração da Copasa mostrar que a mudança de atitude não tem que acontecer apenas pelo medo do fim da empresa, mas porque a mudança de atitude gera na verdade uma oportunidade para a companhia caminhar para um cenário de eficiência. Infelizmente nem todas as estatais de saneamento estão nessa trilha, e muitas se negam a reconhecer os avanços que o marco busca.

A Copasa é uma empresa de economia mista com boa saúde financeira. Quais são os planos de investimentos para 2024?
No final de 2022, fechamos o plano de investimentos de R$ 1,2 bilhão, que já tinha sido um recorde. Ainda não divulgamos os resultados de 2023, mas posso dizer que foi significativamente maior até porque nos três primeiros trimestres de 2023 já tínhamos feito investimentos de R$ 1 bilhão. É um movimento recente de virada de chave – até cinco anos atrás, a Copasa performava investimentos menores anuais, entre R$ 300 milhões e R$ 700 milhões. Para 2024, por exemplo, nossa proposta é investir R$ 1,7 bilhão, mas esperamos ultrapassar essa marca.

Quais são os principais desafios da operação?
A Copasa já tem na sua área de concessão 99% de cobertura de água, ou seja, já é universalizado pelas regras do marco regulatório do saneamento. De tratamento de esgoto, que o marco regulatório também exige, temos apenas 75% de cobertura devidamente tratada. Nosso gap de esgoto é grande, mas temos obras em andamento. Outro foco nosso é reduzir a perda de água.

"Nossa cobertura de água já é universalizada, mas temos um gap no tratamento de esgoto, com apenas 75% de cobertura"

O índice de perda é elevado?
O índice geral é de 39%, abaixo da média nacional, que está acima de 40%. Mas isso nos incomoda. O marco já aponta um limite de 25% de perdas até 2033. Temos um programa muito robusto para reduzir tanto a perda comercial quanto física. Estamos trocando parte da rede de encanamento, que gera desperdício. A Copasa tem 60 anos de existência e uma parcela da tubulação tem essa idade. Também trocamos cerca de 900 mil hidrômetros por ano, por exemplo. O hidrômetro analógico – aquele do relógio que gira – perde a eficiência com o tempo, e sempre a favor do cliente, e não da concessionária. Ou seja, mede menos do que estou cobrando, gerando grande perda comercial.

Há espaço para se criar novas ferramentas financeiras para alavancar os investimentos em saneamento, como as debêntures de infraestrutura, ou dificilmente vai aparecer coisas novas no horizonte?
Há espaço, sim. O BNDES pode ter um papel importante nisso, na medida em que possa simplificar o acesso a recursos. É possível prever novos mecanismos em que a captação de recursos seja feita junto à própria iniciativa privada e não necessariamente por intermédio de recursos públicos. A demanda por saneamento é tão alta que vamos precisar das duas vias.

Os números da Copasa mostram um perfil de dívida bem baixo. A empresa está mirando novas fontes de receita?
É preciso lembrar que nosso foco principal é direcionado para investimentos das metas do marco de saneamento – é o business da companhia. Estamos avaliando todas as possibilidades de concessões dentro do estado de Minas Gerais. Isso inclui as concessões que a Copasa já opera e estão para vencer ou novas concessões em processo de licitação em andamento. Estamos avaliando também negócios acessórios.

Quais são as oportunidades em vista?
A Copasa detém uma concessão de tratamento de resíduo solido urbano, um aterro sanitário, que gera sinergia. O negócio de aterro e os modelos de concessão, se forem bem trabalhados, podem ser rentáveis para as empresas de saneamento. Porque as companhias já são chamadas pelo poder concedente a promover o cofaturamento. Isso significa trazer o pagamento de uma concessão de resíduo, que pode ser de um terceiro, para dentro da conta de água. Como há sinergia de administração e operacional, sendo o mesmo operador, ali se mitiga o risco da inadimplência e eventualmente pode-se ter algum ganho. Mas precisamos mirar bons modelos.

Poderia citar alguns?
Citaria o tratamento e destinação adequada de lodo de estações de tratamento de esgoto, que podem eventualmente gerar novos negócios. O esgoto gera uma grande oportunidade para o saneamento, seja na geração de energia, de biometano e de lodo, que pode ser destinado para vários fins, inclusive de fertilizantes. E também a água de reuso, que precisa ser desmistificada no Brasil.

Por quê?
Vemos outros países autorizando que a água de reúso possa ser destinada até para a própria rede de abastecimento – claro, após receber o devido tratamento. Para uso industrial e eventualmente até para uso no agronegócio, vejo uma grande possibilidade de aplicação da água de reuso, isso gera um valor agregado enorme paro o saneamento. Estamos falando de coisas que eventualmente são custos que transformamos em receita.

"O esgoto gera oportunidade de novas receitas, seja na geração de energia, de biometano e de lodo, que pode ser destinado para fertilizantes"

Existe uma queixa ou temor de o órgão regulador exigir das concessionárias utilizar essa receita extra para poder abaixar tarifa?
Sim. É parte do nosso trabalho convencer o regulador que melhor do que ele querer destinar 50% para modicidade tarifária e 50% no resultado da empresa, eventualmente permitir 75%, 80% ou 90% para o resultado da empresa e uma parcela menor para modicidade tarifária. É melhor que essa receita extra ganhe escala do que matar o negócio na origem -- e aí sim, a modicidade tarifária venha a ter um efeito positivo. Querendo ou não, esses negócios acessórios têm a sua rentabilidade própria, e a depender de como se divide, o resultado dele não fica viável, não sai do papel e aí ninguém sai ganhando. Acho que é um caminho sem volta.