Selic em alta e colada a 12% no fim do ano é a face visível de desafios do Banco Central que deve entregar a inflação na meta. Tarefa árdua com a economia crescendo a 3% pelo terceiro ano seguido.

Mas nem só de Selic vive o BC, cujos desafios têm uma face invisível, técnica e, também, com impacto na atividade e nas finanças públicas. E envolvem instrumentos de política monetária: os recolhimentos compulsórios do sistema bancário sobre depósitos de clientes e as “operações compromissadas” do BC com bancos, representadas pela venda de títulos do Tesouro pela autoridade monetária que assume o compromisso de recomprá-los em datas futuras.

Os depósitos compulsórios são reserva de emergência para as instituições sobretudo em caso de crises financeiras, enquanto as “operações compromissadas” ajudam a financiar a dívida pública brasileira e fornecem lastro para aplicações de elevada liquidez e juro alto.

Esses instrumentos são utilizados por bancos centrais do mundo inteiro para regular a quantidade e o custo do dinheiro disponível na economia. O Brasil segue a cartilha, mas exagera. Aqui, os compulsórios e as “compromissadas” acolhem mais de R$ 2 trilhões. Dinheiro para ninguém botar defeito e que deverá ser objeto de reflexão e futura revisão com a troca de comando do BC.

A nova presidência e três diretorias, com estreia em janeiro e vigência até 2028, terá tempo suficiente para voltar a cortar a Selic, estabilizar a taxa e dedicar-se a redesenhar esses dois instrumentos que podem contribuir para a expansão sustentada do PIB fortalecendo o crédito – uma bandeira histórica defendida pelo PT e pelo presidente Lula – e, com sorte, reduzir a Dívida Bruta do Governo Geral, onde as “compromissadas” são contabilizadas.

As estatísticas revelam o tamanho da encrenca. Os compulsórios dos bancos atingiram R$ 675 bilhões em agosto. As “operações compromissadas” cerca R$ 1,39 trilhão – cifra equivalente a 11,6% do PIB ou 15% da Dívida Bruta do governo, de R$ 8,826 trilhões ou 78,5% do PIB, em julho.

Esses dados estão distantes do cotidiano dos brasileiros, mas importam pelo que representam. Os compulsórios correspondem a recursos represados. Não à toa, a Caixa reivindica a liberação de parte desse dinheiro como estratégia para aperfeiçoar (e bancar) o financiamento imobiliário. As “compromissadas” bancam a rolagem de parcela da dívida pública no curtíssimo prazo.

Quando (muito) dinheiro atrapalha

Essas operações ganharam pulso a partir de 2004 com a política de acumulação de reservas internacionais lançada pelo presidente Lula, durante o 1º mandato, como primeira linha de defesa da economia contra crises financeiras e cambiais. Hoje, uma muralha de US$ 355 bilhões.

Um feito de inegável importância, mas que levou o BC a retirar dólares de circulação em troca de reais que expandiam fartamente a liquidez e geravam instabilidade na taxa de juro. A operação tornou-se um atrativo e tanto para investidores. Notadamente, os bancos, dada a magnitude das cifras envolvidas.

Há quase uma década, as “compromissadas” do BC giram R$ 1 trilhão ao dia.

Esse montante, alcançado em 2016, refletiu a necessidade de financiamento do governo pressionado por elevado endividamento e investidores ariscos. Não sem razão. O quadro recessivo herdado de 2015, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e sua substituição pelo vice-presidente Michel Temer geraram uma brutal instabilidade e agravaram o risco no mercado financeiro.

Desde então, o encastelamento de recursos no curtíssimo prazo não cedeu. Chegou, inclusive, a crescer em 2020, no auge da pandemia de Covid-19.

Prova que o investidor segue ressabiado, sobretudo com o equilíbrio fiscal, na quarta-feira, 4 de setembro, o Tesouro anunciou um aumento da participação da LFT (título indexado à Selic) na composição da dívida pública, em detrimento da papéis com retorno prefixado ou atrelados à inflação.

Em 2016 ou 2020, durante a pandemia, as “compromissadas” avançaram porque, dada a instabilidade do cenário com incertezas futuras, o Tesouro não conseguia rolar a dívida pública. “As ‘compromissadas’ se mostraram de importante ajuda”, avalia o especialista em contas públicas Josué Pellegrini, economista na Warren e ex-diretor-adjunto da Instituição Fiscal Independente.

Ao NeoFeed, o economista explica que se o Tesouro, em 2020, decidisse vender títulos em leilões convencionais, o governo pagaria juros altíssimos por 15 ou 20 anos – para “prejuízo” de suas contas.

As operações no auge da pandemia são um exemplo de que as “compromissadas” podem ser vistas como uma “anomalia” útil no sistema financeiro brasileiro. Pellegrini reconhece, porém, que esse financiamento de prazo tão curto não chegaria à expressão adquirida ao longo dos anos, se a situação fiscal no País não revelasse tanta instabilidade.

“Um programa gradual, transparente e explícito para redução das ‘compromissadas’ pode dar resultado. Mas não a curto prazo, inclusive, porque o quadro fiscal convive com déficit estrutural e, portanto, exige financiamento.”

Em 2021, o BC lançou o Depósito Voluntário Remunerado para os bancos com a intenção de substituir gradualmente as “compromissadas” e, por tabela, reduzir o impacto dessas operações na Dívida Bruta. Entretanto, a iniciativa não colou. Em meados de agosto, esses depósitos abrigavam R$ 144 bilhões.

É fato, porém, que o instrumento existe, diz Pellegrini para quem, num cenário consistente de estabilização da Dívida em proporção do PIB, os investidores poderiam estar abertos a outras aplicações. “As ‘compromissadas’ perderiam naturalmente relevância e o Tesouro poderia incrementar a colocação definitiva de títulos em mercado. Mas isso não se faz na marra”, alerta o especialista.