Jantar num restaurante brasileiro de fine dining num bairro da moda em Lisboa é uma experiência nova. Principalmente porque o país, que concentra a maior comunidade brasileira no exterior, sempre se especializou em "clássicos da saudade" tais como feijoada, pão de queijo e caipirinha. Mas o Cícero, em Campo de Ourique,é um restaurante-galeria diferente, que reúne num ambiente, entre o descontraído e o sofisticado, vários sotaques do Brasil.

A ideia foi do empresário pernambucano Paulo Dalla Nora Macedo, colecionador da obra do pintor modernista Cícero Dias (1907-2003), daí o nome do restaurante. O menu leva a assinatura de Alessandra Montagne, chef carioca que vive e tem restaurantes em Paris, e é executado por Ana Carolina Silva, também pernambucana e uma das sócias. Daí que o resultado é uma casa de comida luso-brasileira contemporânea, que tem de caldinho de feijão e coxinha a ingredientes locais — o que não é comum em Portugal.

Paulo trabalhava no mercado financeiro e vivia em São Paulo quando decidiu se estabelecer em Lisboa, há três anos. “Eu saí do Brasil, mas queria continuar conectado. Não sou aquele brasileiro que deixa o país com raiva, que diz que não aguenta mais a violência e a corrupção. Esse não é meu perfil!”, diz ao NeoFeed.

Carolina já tinha um restaurante de cozinha brasileira em Lisboa, o Dalí, que criou com o marido, o publicitário Luís Otávio Vieira, colega de escola de Paulo. “Depois de comer lá tive a ideia de usar parte da minha coleção como inspiração para um restaurante e convidei o casal para entrarmos nesse projeto”, conta Paulo.

O restaurante foi aberto no final de 2023, mas só recentemente passou a ter o cardápio elaborado por Alessandra Montagne, depois que o empresário visitou o Nosso, o restaurante da chef em Paris.

O Cícero tem três ambientes e logo na entrada as obras de arte chamam atenção.

Na primeira sala, a de “arte moderna”, está em destaque um quadro de Picasso, que foi grande amigo de Cícero. O espaço continua no subsolo, onde fica a cozinha aberta, e há a sala de “arte contemporânea”, com artistas de novas gerações como Sidnei Tendler. Ao fundo fica a sala “origem”, mais privada, usada por grupos e que tem elementos que mesclam África e Portugal.

“A arte é uma forma óbvia de conexão, daí a ideia de usar parte de minha coleção”, diz Paulo que, “infelizmente”, não é o maior colecionador da obra do pintor que teve a chance de conhecer pessoalmente já no fim da vida.

E ele completa: “ O Cícero, também, não era só um artista, ele foi um defensor do Brasil e da arte brasileira no exterior. Teve um papel importante na criação da Bienal Internacional de São Paulo e ajudou muitos artistas europeus a participarem levando suas obras. Foi ele, inclusive, que viabilizou a ida de Guernica, o mais famoso quadro de Picasso, que estava no MoMA, em Nova York, para ser exposto no Brasil, na 2a Bienal de São Paulo”.

As obras de Cícero Dias, como a gravura "Mulher com guarda-chuva", são da coleção de Paulo Macedo (Foto: cicerobistrot.pt)

A tela do espanhol Pablo Picasso é um dos destaques do Cícero (Foto: Divulgação)

O restaurante fica perto da Basílica da Estrela, onde Cícero Dias se casou, no curto período de tempo em que viveu em Lisboa (foto: Fábio Pelinson)

O magret de pato é um dos pratos do novo menu primavera (Foto: Fábio Pelinson)

A primeira das três salas do Cícero é a de "arte moderna" (Foto: Fábio Pelinson)

O salão de "arte contemporânea” reúne obras de artistas de novas gerações (Foto: Fábio Pelinson)

Mais privada, destinada a grupos, a sala “origem” reúne elementos da África e de Portugal (Foto: Fábio Pelinson)

Cícero Dias morou 65 anos em Paris, mas também viveu um curto período em Lisboa, onde se casou na Basílica da Estrela, que fica muito próxima ao restaurante. “Me pareceu interessante reforçar essa conexão Brasil-França-Portugal, quando escolhi Campo de Ourique, o bairro mais francês de Lisboa, onde há a maior comunidade francesa daqui”, lembra Paulo.

A frequência do Cícero tem sempre brasileiros, mas muitos portugueses e estrangeiros em geral, visto que Portugal se tornou um país internacional. Segundo Carolina, é um “público mais gourmet” do que aquele que frequenta seu outro endereço, o Dalí, que tem um tíquete médio mais acessível.

Nesta semana estreia o menu primavera, o segundo desta nova fase do Cícero. São três opções de menus: em oito etapas (€ 95), degustação vegetariana em cinco momentos (€ 62) e a sugestão semanal da chef por € 60. A harmonização de vinhos é opcional e custa € 65.

A ida para Lisboa mudou a vida de Carolina. Ela tem doutorado em ciência política, foi professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco, mas sempre adorou cozinhar. “

Quando recebia as pessoas em casa, fazia tudo. Da entrada à sobremesa. No Dalí eu cuidava da gestão, tinha uma chefe e dava meus toques, não ficava na cozinha. Depois, com dois restaurantes resolvi que tinha que estudar gastronomia apenas para conhecer melhor, sem a pretensão de ser chef de fato”, afirma ao NeoFeed. “Mas enlouqueci e não quis mais largar”.

O menu é 100% desenvolvido por Alessandra Montagne e para ela é a primeira experiência de fazer algo à distância. “Não dá para correr para Lisboa e ver se tá tudo certo, então, você tem que confiar. E tem dado certo, eles são super respeitosos”, diz a chef ao NeoFeed. A cada novo menu, Carolina vai para Paris e fica uma temporada.

Depois ela volta e executa com acompanhamento inicial de Alessandra. O resultado é uma pequena síntese desse Brasil que existe hoje fora do Brasil e que vai da arte à mesa.