A brasileira JBS se tornou uma das empresas mais globalizadas do Brasil com um estilo de gestão que foi batizado como Frog (From Goiás), um jeito de dizer que a cultura da empresa, fundada em Anápolis (GO), tem como base a simplicidade e o pragmatismo.

Agora, Goiás está começando a ficar conhecido por seus avanços na área da inteligência artificial. E os protagonistas por criarem uma “IA from Goiás”, que estão conquistando empresas e colocando o Brasil no mapa global da inovação, são o Centro de Excelência em Inteligência Artificial, o CEIA, e o Centro de Competência Embrapii em Tecnologias Imersivas Aplicadas a Mundos Virtuais, o AKCIT, ambos da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Os dois centros, baseados em Goiânia, contam com 700 pesquisadores de 14 estados brasileiros e de quatro países diferentes. Eles estão desenvolvendo, no momento, 67 projetos de IA e as soluções que saíram de seus “laboratórios”, feito em conjunto com empresas, já impactaram mais de 92 milhões de brasileiros.

O número de empresas que já tem (ou tiveram) convênios e contratos com o CEIA é bem extenso e reúne nomes como iFood, Itaú, Globo, Positivo, Vivo, Natura, Américas Health, Sicoob, Flextronics, FSB, entre tantas outras. São dezenas de companhias que “usam” os pesquisadores da UFG para ajudar em seus desafios de IA, em um acordo em que entram com parte do dinheiro.

Não bastasse isso, o CEIA e o AKCIT também têm relações próximas com as principais universidades do mundo, como a Universidade da Flórida, a Universidade Flinders (Austrália) e a Universidade de Bologna (Itália). E, neste momento, estão negociando um acordo com a prestigiosa Universidade Harvard, nos Estados Unidos.

E por último, mas não menos importante, o CEIA será a única instituição no Brasil – e até mesmo empresa - a receber a plataforma de inteligência artificial DGX B200, da Nvidia, a mais avançada da companhia, que ajudará no projeto de desenvolver um LLM (Large Language Model) brasileiro, uma espécie de ChatGPT tupiniquim.

“Os Estados Unidos são pioneiros em LLMs. Estamos vendo avanços na China e em diversos outros players. Então, essa corrida é tênue e descentralizada. O Brasil é gigantesco, tem heterogeneidade de dados e características que nos permite estar nessa corrida”, afirma Arlindo Galvão, diretor de inovação aberta e internacionalização do CEIA e diretor geral do AKCIT, ao NeoFeed.

Galvão, em conjunto com Telma Soares e Anderson Soares, que também atuam no CEIA e AKCIT, são os responsáveis por levar a “IA from Goiás” para todos os cantos do Brasil e fechar parcerias internacionais.

Inovação no Planalto Central

Nas últimas semanas, o NeoFeed ouviu empresas que têm projetos com o CEIA e o AKCIT e especialistas da área para entender em que estágio estão os dois centros. E o que ouviu mostra que ambos não devem nada para ninguém ao redor do mundo e que têm uma visão que consegue unir empresas e universidades.

“É uma ponte muito bem-feita entre o meio acadêmico e o mercado”, diz Rodrigo Helcer, fundador da Stilingue, vendida para a Blip, e conselheiro do CEIA. “Gravitam em torno do CEIA os investidores, os empreendedores, as empresas e os pesquisadores, que não estão restritos ao Brasil.”

O que explica ter surgido, no Centro-Oeste do Brasil, um centro de pesquisa de classe mundial em IA que está atraindo empresas? A visão pró-business das pessoas que estão à frente do CEIA e do AKCIT pode ser uma das respostas. Em vez de criar obstáculos, eles facilitam acordos e trabalham em conjunto com as empresas.

Os recursos para os projetos são divididos entre as companhias e institutos de fomentos à pesquisa, como Embrapii, ministério de Ciência e Tecnologia, BNDES, fundações e diversas outras fontes. Os projetos são selecionados sempre em linha com a pesquisa dos mais de 700 pesquisadores e precisam ter algum apelo para o mercado.

A empresa que faz o acordo, além de fornecer parte do dinheiro, conta com o apoio dos professores, doutores e alunos da UFG, que se tornam bolsistas. “Mais de R$ 250 milhões já foram investidos em tecnologia de IA”, diz Galvão.

O CEIA e o AKCIT não colocam também empecilhos para que a propriedade intelectual do projeto fique com a empresa, o que é um atrativo para parcerias corporativas. “Nossa rota é flexível. Tem a possibilidade de comprar uma porcentagem ou ficar com 100% do propriedade intelectual”, afirma Galvão.

Helcer acrescenta outro fator que pode ter ajudado a surgir no Planalto Central o CEIA. Ele cita o exemplo de que o desenvolvimento de uma LLM, como o ChatGPT, necessita de muito recurso para ser processado. “E o Brasil é bom em fazer mais com menos”, afirma. “O CEIA conseguiu desenvolver dentro do Brasil modelos que superam os laboratórios dos EUA e da China.”

Um celeiro de projetos inovadores

Com todos esses atrativos, o CEIA e o AKCIT conseguiram atrair diversas empresas e desenvolveram (e estão desenvolvendo) projetos de classe mundial. A Globo, por exemplo, fez um acordo no início de 2024 e já colocou no ar dois dos quatro projetos que está trabalhando em conjunto com o centro de Goiás.

Em um deles está usando voz sintética, a partir de inteligência artificial, para descrever áudios para que pessoas que não enxergam entendam o contexto de um seriado ou novela, substituindo, dessa forma, a voz de pessoas.

Em outro projeto, a Globo consegue fazer a conversão automática de novelas e seriados gravados em formatos antigos para full HD, de maior qualidade. Já foram processados pelo GloboPixel, nome desse sistema, Os Aspones, Malhação 2000, Sampa, Rainha da Sucata e Chocolate com Pimenta.

Um exemplo da sofisticação das ferramentas desenvolvidas pelo CEIA é a que o centro fez em conjunto com a Cilia, uma startup investida do fundo de venture capital Cloud9 Capital, que desenvolveu um sistema que permite que seguradoras e oficinas façam um orçamento a partir de uma foto. “O sistema é treinado com 25 mil orçamentos de carros batidos por dia”, afirma Daniel Barbosa, fundador e CEO da Cilia.

Agora, além das fotos dos carros batidos, uma nova versão usa modelos sintéticos, criados em computador, para fazer a análise dos itens que precisam ser reparados. “Isso aumentou muito a nossa assertividade”, diz Barbosa. “É difícil ver empresas fazerem treinos em base sintética com a solução em produção.”

Na Positivo Tecnologia, o CEIA está criando a Licia, uma ferramenta para ajudar a companhia a decidir se entra em licitações. “Ela vai analisar licitações e acelerar a nossa capacidade de responder (se participa ou não)”, afirma Leandro Rosa dos Santos, vice-presidente de estratégia e inovação da Positivo.

Outro projeto é a criação de um “executivo virtual” para ajudar a companhia a fazer o planejamento, realizar previsões e tomar decisões mais rápidas. Neste momento, está sendo organizado um “data lake” com informações da Positivo para que este “profissional” tenha dados para “trabalhar”. “Esse é um desafio bem maior”, diz Santos.

Mesmo a empresa de telefonia Vivo, que desde 2015 vem desenvolvendo soluções de IA, como o Aura, usada por 4 milhões de usuários por mês, e o I.Ajuda, que fornece um resumo do cliente que está sendo atendido, fez parceria com o AKCIT.

“A Universidade Federal de Goiás é referência no Brasil em inteligência artificial e outras tecnologias imersivas consideradas essenciais para o cenário de mudanças que estamos vivendo”, afirma Virgílio Sousa, gerente de transformação digital da Vivo, ao justificar o acordo.

De Goiás para Goiás

Mas ninguém ilustra melhor o estágio em que se encontrar o CEIA e o AKCIT do que o empresário Rodrigo Aquino, CEO da empresa de software para planos de saúde Américas Health, que é um médico formado pela Universidade Federal de Goiás.

Ele perambulou pelas principais universidades americanas em busca de parcerias para desenvolver produtos de inteligência artificial. E, no fim, encontrou o que precisava em Goiás. “Existe muito preconceito sobre onde as coisas grandes devem acontecer no Brasil. E as pessoas não imaginam que isso pode acontecer em Goiás.”

A Américas Health tem parceria com a UFG antes mesmo da criação do CEIA, em 2020, e já desenvolveu vários projetos. Um deles é o de uma enfermeira virtual que tira dúvidas sobre assuntos de saúde feminina. O outro é de uma ferramenta que é uma espécie de auditor para planos de saúde, que avalia a pertinência das solicitações.

Mas o mais inovador dos projetos é um algoritmo de predição que roda na base dos planos de saúde da Américas Health e de outros planos que a empresa atende que consegue dizer, com mais de 80% de assertividade, a chance de um paciente sofrer infarto, derrame e outros problemas graves com seis meses de antecedência. “O que eles fazem é de nível igual ou superior a outros lugares do mundo”, diz Aquino.