Com o mercado de tecnologia começando a se normalizar depois de anos de euforia, seguido por um período de dura correção, as melhores oportunidades de investimento não estão mais nas mãos do pequeno grupo das big tech reunidas sob o acrônimo FAANG – Facebook (Meta), Amazon, Apple, Netflix e Google (Alphabet). Apesar disso, não é a hora de esquecer o setor tech.

Para Richard Clode, gestor da britânica Janus Henderson Investors, as grandes apostas estão nos nomes que avançarão na transformação digital das empresas na direção da produtividade. E por um simples motivo: com a inflação em alta e a perspectiva de recessão nas principais economias globais, as empresas não podem mais se dar ao luxo de serem ineficientes.

“O mundo é um lugar bem ineficiente e tem muitas tecnologias que estão ajudando as companhias a serem mais produtivas”, diz Clode, em entrevista exclusiva NeoFeed.

Diante dessa tendência, o corresponsável pelas estratégias na parte de tecnologia da gestora britânica, que detém cerca de US$ 287 bilhões em ativos sob gestão, está olhando para companhias que consigam oferecer ferramentas com inteligência artificial e computação em nuvem para melhorar a eficiência das companhias.

Com 20 anos de experiência, Clode diz que esses temas estão se sobrepondo àqueles que dominaram o mercado nas últimas décadas. Ao mesmo tempo em que olha para as novidades que tornarão o mundo mais produtivo, a Janus Henderson também busca por companhias que estejam transformando mercados pouco explorados.

Na América Latina, um dos seus principais investimentos é no Mercado Livre, pelo fato de a companhia atuar em duas áreas em que a Janus Henderson entende que existe espaço para crescer na região: a bancarização e o e-commerce. Clode não informou a participação da gestora na companhia.

Outro mercado que vê com bons olhos é o de gig economy, destacando o iFood. Embora a Janus Henderson concentre seus investimentos em companhias de capital aberto, Clode diz que a gestora está de olho nessas companhias, que mais para frente podem abrir seu capital.

Richard Clode, gestor da Janus Henderson
Richard Clode, gestor da Janus Henderson

Em visita a São Paulo na semana passada, onde participou de reuniões com o BTG Pactual, parceiro da Janus Henderson no Brasil, Clode também falou dos paralelos entre o momento atual do setor de tecnologia e o estouro da bolha da internet e o crescimento da China na área.

Acompanhe os principais trechos da entrevista ao NeoFeed:

Qual é a situação atual do mercado de tecnologia em termos de investimentos?
As tendências de longo prazo do setor de tecnologia sempre estiveram presentes. Vimos na pandemia uma aceleração dos investimentos e, desde então, há uma ressaca com o fim dos lockdowns. Houve uma extrapolação do ritmo de crescimento das empresas, que não eram justificados. Tivemos ainda um cenário econômico extremo, com respostas contundentes dos bancos centrais, com injeção de liquidez, juros zero. Dinheiro barato estimula maus comportamentos. Vimos muito isso em 2020, com investidores pagando caro por empresas. Num mundo com dinheiro abundante, todo mundo parece desejável, mas com juros altos, não dá para simplesmente sair investindo. Estamos de volta a um mundo em que nem todas as empresas irão bem, mas algumas sim. E, para mim, que sou um stock picker, isso é bom. Você não quer que todas as companhias se valorizem, você quer que as empresas boas vão bem e as fracas sejam punidas. Acredito que estamos de volta ao normal.

"Dinheiro barato estimula maus comportamentos. Vimos muito isso em 2020, com investidores pagando caro por empresas"

Com a alta dos juros, investidores passaram a exigir que as empresas passassem a apresentar bons retornos. Você vê boas oportunidades para companhias de growth?
É preciso separar growth e algumas coisas que vimos em 2020. Sou um investidor de growth, mas elas precisam ser lucrativas. Não faz sentido uma companhia crescer indefinidamente e não ser rentável. Sempre investi em companhias que são lucrativas agora ou tem perspectiva de serem. Mas muitas companhias não tinham esse mindset em 2020 e aí que você viu as dores. Os juros não vão voltar a zero, os bancos centrais não vão ficar injetando dinheiro. A ideia de que você não precisa ser lucrativo acabou. Os valuations caíram bastante, estamos caminhando para uma recessão, as taxas de crescimento serão baixas, mas muitas companhias de tecnologia conseguirão crescer e ser lucrativas. Elas devem ser avaliadas de forma mais razoável, porque as expectativas estão mais razoáveis e algumas das tendências de tecnologia estão fortes. Dadas as incertezas, quero ver crescimento secular.

Mesmo antes da pandemia tinha excesso de liquidez, com o venture capital assinando cheques elevados. A situação atual vai resultar em uma mudança comportamental dos investidores e das empresas?
Quando digo volta ao normal, quero dizer que estamos em um período parecido ao de 2005 a 2007. Os tempos atuais me lembram bastante aquele momento, em que o mundo tinha acabado de sair da bolha da internet, da recessão no começo dos anos 2000, o dinheiro não era mais barato, haviam dúvidas a respeito do setor de tecnologia. Mas as boas companhias se saíram bem. Enquanto diversas outras empresas se tornaram zumbis, fecharam, a Amazon foi muito bem. O mesmo ocorreu após a crise financeira de 2008. Se uma empresa consegue sobreviver a essas situações, é porque ela tem algo, ela é uma boa empresa. E acredito que vamos ver algo similar a isso agora.

Tem algum tema ou segmento que está chamando mais atenção?
Tem duas questões no momento: a inflação e a perspectiva de recessão. E ambas pressionam as empresas e os consumidores, forçando a fazer mais com menos. Muitas das tecnologias que estamos olhando para investir são a respeito de soluções para produtividade. Pensando nesse movimento de desglobalização, se uma empresa vai trazer de volta sua linha de produção da Ásia para perto de casa, essa região deve ser mais cara. Como produzir um bem sem que ele seja tão caro? Seja automação industrial, RFID (tecnologia de microchips utilizada em etiquetas para rastreamento de produtos), Inteligência Artificial (IA) ou análise de dados, vemos que essas serão tecnologias em que as empresas vão querer investir, porque vão tornar seus negócios mais eficientes. Essas são as tecnologias que estamos buscando. Achamos que a maior parte das tecnologias que serão resilientes na recessão são aquelas que ajudam na transformação digital.

"Os juros não vão voltar a zero, os bancos centrais não vão ficar injetando dinheiro. A ideia de que você não precisa ser lucrativo acabou"

Quais áreas perderam apelo?
Estamos diante de uma grande transição. Buscando entender qual foi a tecnologia, as empresas e os setores que definiram a última década, vimos que foram o FAANG [Facebook (Meta), Amazon, Apple, Netflix e Google (Alphabet)] e todas as companhias que se beneficiaram dos apps e da internet móvel. Agora, estamos num ponto em que todo mundo tem smartphones, fizeram downloads dos apps, estão 24h por dia em seus telefones. Existe menos crescimento neste mundo. As empresas do FAANG se deram muito bem na última década, acabaram crescendo muito mais rápido do que o mercado e foram recompensados em valuation. Mas o crescimento deles daqui para frente será mais lento, por conta da saturação que vemos nessa tecnologia. Estamos vendo novos nomes emergindo, como a Nvidia e as empresas de IA generativa. A dúvida é se conseguimos encontrar nomes nessas áreas chaves que podem ser os líderes.

Você vê algum nome, ou alguns nomes, com potencial de ser uma empresa do tamanho das companhias do FAANG?
Devemos ver grandes nomes em diferentes áreas. A transformação digital que vem ocorrendo é bem ampla, o mundo é um lugar bem ineficiente e tem muitas tecnologias que estão ajudando as companhias a serem mais produtivas. A IA generativa, a habilidade de criar novo conteúdo de forma inteligente e automatizar esse processo, é um agregador massivo de valor. Pensando sobre o que acontecerá com a integração do ChatGPT ao Microsoft Office. Ao invés de ter que criar suas próprias apresentações, você pode explicar a mensagem que deseja passar e a IA fará o que pedir. Isso dará um grande impulso para a produtividade. Tem ainda as tecnologias para tornar as cadeias de fornecimento mais eficientes. Vimos durante a pandemia o quão importante é administrar cadeias de fornecimento. Se estamos preocupados com a escassez de recursos, inflação, reduzir o uso de energia para atingir as metas climáticas, a tecnologia pode ajudar com isso. Esse é o maior desafio e se for possível existir soluções para isso, serão mercados de forte crescimento.

E qual o futuro das atuais empresas do FAANG?
O futuro delas ainda é bom. No caso do ChatGPT, ele foi construído em cima de um modelo transformer (rede neural que permite aos computadores aprenderem contexto). Foi o Google quem avançou no desenvolvimento do modelo transformer. Ele está numa boa posição dentro de IA. A Amazon também é forte em IA, tem uma grande área de computação em nuvem, em que grande parte da tecnologia será armazenada. Esses negócios têm boas perspectivas de crescimento. O que nos deixa menos entusiasmado é a publicidade digital, porque está saturada e com muito mais competição. O e-commerce no Ocidente e na China também está saturado. Se quiser encontrar boas taxas de crescimento de e-commerce, tem que ir para América Latina, em que a penetração é baixa, ou no Sudeste Asiático.

"Se quiser encontrar boas taxas de crescimento de e-commerce, tem que ir para América Latina"

Muito se fala que a China está prestes a competir com os Estados Unidos em tecnologia. Qual é a situação dos chineses?
O país avançou muito em termos de inovação. Eles estão desenvolvendo muito rapidamente suas capacidades. A área em que eles são mais fracos é semicondutores, porque os Estados Unidos estão restringindo o acesso dos chineses aos semicondutores mais avançados. Isso limita muito o país na frente de IA. Mas quando se olha o que a China conseguiu fazer no 4G, depois no 5G e agora no 6G, o país se tornou um grande nome nesta frente. Se olhar para as empresas de internet, a inovação que uma Alibaba, uma Tencent provê, elas estão junto com qualquer outra empresa no mundo. Na parte de veículos elétricos, energia renovável, a China está tentando ter uma cadeia de fornecimento local. Os americanos não vão se incomodar com a China desenvolvendo uma cadeia local para veículos elétricos ou para energia renovável. São essas oportunidades que olhamos na China, áreas menos sensíveis em que podem ter players locais fortes.

Os Estados Unidos continuarão sendo o principal nome quando se trata de desenvolvimento tecnológico?
Depende para onde se olha. Quando se trata de IA, os Estados Unidos estarão na vanguarda, assim como computação em nuvem. Quando se for procurar companhias de internet interessantes, fintechs, as oportunidades deverão estar mais em mercados emergentes, como a América Latina. Essas oportunidades não existem nos Estados Unidos e na Europa, porque os serviços financeiros já tem boa penetração Em semicondutores, os europeus estão para lançar sua iniciativa na área, os Estados Unidos já lançaram, mas considerando a necessidade de expertise, é difícil mudar a produção de Taiwan ou da Coreia do Sul, porque existe pouca experiência local com o tema, é caro e os subsídios sendo oferecidos não são tão grandes quando se considera os investimentos necessários. Não espero que em dez anos o percentual de semicondutores produzidos na Europa ou nos Estados Unidos cresça significativamente.

Você comentou um pouco sobre oportunidades na América Latina, citando fintechs especialmente. É isso ou o continente, e o Brasil, apresentam outras oportunidades?
Nós olhamos para problemas que precisam ser resolvidos. Inclusão financeira é um ponto chave na América Latina. A região já experimentou altos níveis de desemprego, então a gig economy e sua flexibilidade pode ser um importante motor de emprego. Vemos um rápido crescimento do Uber, 99, iFood, Rappi. Esses são temas óbvios que analisamos para investir, porque historicamente não há muitas oportunidades de investimento em tecnologia na região. No Brasil, você tem a Totvs, Positivo, nomes do tipo, mas estamos em busca de nomes da internet, considerando a demografia e a penetração dos smartphones. Também tem algumas indústrias com baixa penetração, como serviços financeiros ou e-commerce. Tem muitas áreas em que a internet pode ser muito disruptiva. Vamos ver a próxima grande companhia IA generativa ou uma grande companhia de computação em nuvem vindo do Brasil? Provavelmente não. Mas temos visto muitas companhias de internet bastante interessantes, como o iFood, o Rappi também.

"Nós olhamos para problemas que precisam ser resolvidos. Inclusão financeira é um ponto chave na América Latina"

Tem algum nome que vocês investem na América Latina?
Nós investimos no Mercado Livre no final do ano passado. Uma das razões é a oportunidade no lado da inclusão financeira. A América Latina possui uma população de cerca de 400 milhões de pessoas e tem em torno de 130 milhões desbancarizados e 275 milhões de pessoas sem cartão de crédito. Se forem esperar que os bancos tradicionais atuem, o problema vai demorar décadas para ser resolvido. Uma companhia de e-commerce tem muito mais informações sobre os clientes do que um banco, que muitas vezes não tem informações.

Você vê companhias latino-americanas preparadas para abrirem capital no exterior?
Vemos algumas. O Nubank conseguiu, embora não tenha listado no melhor momento de mercado, mas é um bom negócio. Os próximos dois devem ser o iFood e o Rappi, esses negócios de entrega de comida devem fazer IPO em algum momento. No caso da 99, tem a questão da ligação com a Didi, o que torna uma listagem incerta. Essa deve ser a próxima geração de IPOs.

Qual foi o impacto da quebra do SVB no setor de tecnologia? Veremos consequências nos resultados do primeiro trimestre?
Para as companhias que olhamos, não teve nenhum impacto. Algumas tinham uma pequena porcentagem de seu caixa no SVB, mas foram capazes de recuperar. As implicações foram maiores para o private equity e empresas privadas, porque era o banco delas no Vale do Silício. Sempre que assinavam um cheque para uma startup, eles encorajaram que elas abrissem uma conta no SVB. Foi uma questão específica para a indústria de PE e VC. Houve um pouco de efeito sobre a AWS, porque muitas startups contratavam os serviços de computação de nuvem, mas nada muito grande.

Apesar dos investimentos da Janus Henderson serem concentrados companhias abertas, qual sua opinião a respeito dos cheques gordos assinados nos últimos anos. Isso acabou?
Sempre vai ter um mercado saudável de VC, levantando montantes elevados de recursos. Muitos deles foram bem-sucedidos por muito tempo e acho que eles conseguirão convencer os clientes a investir com eles. O que aconteceu de diferente nos últimos anos foi a chegada do Softbank, que foi disruptivo por conta da escala de seus fundos. Você tinha fundos de US$ 5 bilhões, US$ 10 bilhões. E, de repente, veio um fundo com centenas de bilhões. Como resultado, tudo cresceu fortemente. Não se falava mais em unicórnios, mas decacórnios. Quando uma startup ia conversar com o Softbank buscando um investimento de US$ 200 milhões, avaliando sua empresa em US$ 1 bilhão, não fazia sentido para o Softbank entrar, porque se fosse investir US$ 200 milhões em cada startup, ele teria que fazer 500 aportes, o que não fazia sentido em termos operacionais. Por isso, ele passou a assinar cheques de bilhões de dólares. E isso elevou o valuation das empresas. Mas não vamos voltar a esse tempo, acho que vamos voltar a ter uma posição mais sóbria.